Suprimir direitos é dar um soco na democracia, e o jornalismo precisa estar atento a isto


22/06/2024


Por Francisco de Assis, jornalista e professor da ESPM-SP

Faz tempo que Gilberto Gil e Caetano Veloso deram a letra: é preciso estar atento e forte. Sempre. Nas nossas frágeis democracias, nenhum direito conquistado é permanente. Em qualquer momento de descuido, as forças autoritárias – que chegam ao poder até por vias tidas como democráticas – dão algum jeito de mudar as coisas ao seu gosto, e os atingidos são sempre aqueles cuja existência é periférica. O PL 1904/2024, pautado a toque de caixa pela Câmara dos Deputados, é exemplo de que qualquer desatenção pode ser fatal.

De autoria do deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), o que tem sido popularmente chamado de PL do Estupro visa impedir que o aborto legal a que tem direito as vítimas de estupradores, garantido pela legislação brasileira desde a década de 1940, seja limitado às 22 primeiras semanas de gestação, tornando-se crime hediondo o procedimento após esse prazo. Visível retrocesso – um passo atrás em pelo menos 80 anos –, o projeto atinge prioritariamente mulheres, ainda que seja bom lembrar que outros corpos, como os de homens trans, também podem gerar e estão suscetíveis à violência sexual.

Entre o muito que se pode dizer a respeito, quisera aqui chamar a atenção para três aspectos. O primeiro é que – nada de novo sob o sol – os homens cis-heterossexuais, em sua maioria, amparados em impressionante autoestima, continuam sentindo-se na condição de decidir (e legislar) por outrem, por vidas tidas por eles como incapazes. Na terceira década do século XXI, não deveria sequer ser aceito que homens propusessem o que quer que seja em relação às mulheres, principalmente sobre aquilo que afeta somente a elas. É pressuposto de civilidade que nós, homens, não conduzamos ou atrapalhemos esses debates, mas apoiemos a luta de quem tem, de fato, lugar de fala no assunto.

O segundo ponto é que essa histeria no Congresso mostra que as pautas morais, marca de partidos e políticos conservadores, continuam avançando e se constituindo mais um perigo à democracia, justamente por desejarem impor padrões de conduta limitados. Não se trata de posição antagônica, saudável ao regime da soberania popular, mas de mecanismo de controle responsável por dizer quais pessoas podem viver, de que maneiras e em quais circunstâncias.

Por fim, veja-se que, justamente pelas instabilidades do Estado Democrático de Direito, estar atento diuturnamente requer comprometimento do jornalismo, no sentido de tornar evidentes as armadilhas de propostas como esta e, principalmente, não deixar que decisões tão sérias sejam tomadas por debaixo dos panos. A suspensão temporária da discussão do PL, anunciada, no último dia 18 de junho, pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), após os protestos que se sucederam à aprovação do caráter de urgência da pauta, em sessão relâmpago realizada no dia 12 do mesmo mês, parece manobra para arrefecer a pressão popular. Ainda que alguns analistas vejam esse recuo como estratégia para não se admitir derrota, não podemos ignorar a hipótese de que sua mira seja tirar o assunto das discussões de primeira hora e preparar terreno para a aprovação do PL na calada a noite, tal como foi feito com a votação que validou o requerimento de urgência da questão. É importante, portanto, que, até o segundo semestre, quando o debate deve ser retomado no âmbito do Poder Legislativo, o tema não desapareça do noticiário e das mobilizações da sociedade civil.

Num país com números alarmantes relacionados a abusos, estupros, gravidez na infância e na adolescência, feminicídios, violências contra a população LGBTQIA+, entre outros reflexos do machismo, uma imprensa que não enfrenta o poder exercido sobre corpos socialmente precarizados acaba conivente com o autoritarismo que não tarda a bater em sua porta.

Atenção para o refrão!