Precisamos falar sobre água – e sobre o fato de que ela está se tornando escassa no mundo


05/03/2024


Por George Monbiot, jornalista, escritor, ambientalista e colunista do The Guardian

Há uma falha no plano. Não é uma falha pequena: é um buraco do tamanho da Terra em nossos cálculos. Para acompanhar a demanda global por alimentos, a produção agrícola precisa crescer pelo menos 50% até 2050. Em princípio, se nada mais mudar, isso é viável, principalmente graças às melhorias na criação de culturas e técnicas agrícolas. Mas tudo mais vai mudar.

Mesmo que deixemos de lado todas as outras questões – impactos do calor, degradação do solo, doenças epidêmicas de plantas aceleradas pela perda de diversidade genética – há uma que, sem ajuda de qualquer outra causa, poderia impedir que as pessoas do mundo fossem alimentadas. Água.

Um artigo publicado em 2017 estimou que, para igualar a produção de culturas à demanda esperada, o uso de água para irrigação teria que aumentar em 146% até meados deste século. Um pequeno problema. A água já está no limite máximo.

De maneira geral, as áreas secas do mundo estão ficando mais áridas, em parte devido à redução da precipitação; em parte devido à diminuição do fluxo dos rios à medida que o gelo e a neve das montanhas recuam; e em parte devido ao aumento das temperaturas, que causam maior evaporação e maior transpiração das plantas. Muitas das principais regiões de cultivo do mundo estão agora ameaçadas por “secas relâmpago”, nas quais o clima quente e seco retira a umidade do solo a uma velocidade assustadora. Alguns lugares, como o sudoeste dos Estados Unidos, agora em seu 24º ano de seca, podem ter mudado permanentemente para um estado mais seco. Rios deixam de alcançar o mar, lagos e aquíferos estão encolhendo, espécies que vivem em água doce estão se extinguindo a uma taxa aproximadamente cinco vezes maior do que as espécies que vivem em terra e grandes cidades estão ameaçadas por estresse hídrico extremo.

Atualmente, a agricultura responde por 90% do uso de água doce no mundo. Bombeamos tanta água do solo que alteramos a rotação da Terra. A água necessária para atender à crescente demanda por alimentos simplesmente não existe.

O referido artigo de 2017 deveria ter provocado uma corrida. Mas, como de costume, foi ignorado pelos formuladores de políticas e pela mídia. Somente quando o problema chega à Europa é que reconhecemos que há uma crise. Mas, enquanto há um pânico compreensível sobre a seca na Catalunha e na Andaluzia, há uma quase total falta de reconhecimento entre poderosos interesses de que este é apenas um exemplo de um problema global, um problema que deveria figurar no topo da agenda política.

Embora as medidas contra a seca tenham provocado protestos na Espanha, esse está longe de ser o ponto crítico mais perigoso. A bacia do rio Indo é compartilhada por três potências nucleares – Índia, Paquistão e China – e várias regiões altamente instáveis e divididas já afligidas pela fome e extrema pobreza. Hoje, 95% do fluxo do rio na estação seca é extraído principalmente para irrigação. Porém, a demanda por água tanto no Paquistão quanto na Índia está crescendo rapidamente. O fornecimento – temporariamente impulsionado pelo derretimento de geleiras no Himalaia e no Hindu Kush – em breve atingirá o pico e depois entrará em declínio.

Mesmo sob o cenário climático mais otimista, espera-se que o escoamento das geleiras asiáticas atinja o pico antes de meados do século, e a massa das geleiras diminuirá cerca de 46% até 2100. Alguns analistas veem a competição por água entre Índia e Paquistão como uma das principais causas dos recorrentes conflitos em Caxemira. Entretanto, a menos que um novo tratado de águas do Indo seja firmado, levando em consideração o declínio do fornecimento, esses confrontos podem ser apenas um prelúdio para algo muito pior.

Há uma crença generalizada de que esses problemas podem ser resolvidos simplesmente aumentando a eficiência da irrigação: enormes quantidades de água são desperdiçadas na agricultura. Então, permita-me apresentar o paradoxo da eficiência da irrigação. À medida que técnicas melhores garantem que menos água seja necessária para cultivar um determinado volume de safras, a irrigação se torna mais barata. Como resultado, ela atrai mais investimento, incentiva os agricultores a cultivar plantas mais sedentas e lucrativas, e se expande por uma área maior. Isso é o que aconteceu, por exemplo, na bacia do rio Guadiana, na Espanha, onde um investimento de 600 milhões de euros para reduzir o uso de água, melhorando a eficiência da irrigação, acabou aumentando o consumo.

Você pode superar o paradoxo por meio da regulamentação: leis para limitar tanto o consumo total quanto o individual de água. Mas os governos preferem confiar apenas na tecnologia. Sem medidas políticas e econômicas, isso não funciona.

Também é improvável que outras soluções tecnológicas resolvam o problema. Governos estão planejando grandes projetos de engenharia para transportar água de um lugar para outro. No entanto, a deterioração do clima e a crescente demanda garantem que muitas das regiões doadoras também provavelmente ficarão sem água. A água das usinas de dessalinização geralmente custa cinco ou dez vezes mais do que a água do solo ou do céu, enquanto o processo requer uma grande quantidade de energia e gera grandes volumes de salmoura tóxica.

Acima de tudo, precisamos mudar nossas dietas. Aqueles de nós com escolhas dietéticas (ou seja, a metade mais rica da população mundial) devem buscar minimizar a pegada hídrica de nossos alimentos. Peço desculpas por insistir tanto nisso, mas essa é mais uma razão para mudar para uma dieta livre de produtos de origem animal, o que reduz tanto a demanda total de colheitas quanto, na maioria dos casos, o uso de água. A demanda de água de certos produtos vegetais, especialmente amêndoas e pistaches na Califórnia, tornou-se um tema importante na guerra cultural, à medida que influenciadores de direita atacam dietas baseadas em plantas. Mas, mesmo que o cultivo dessas culturas seja excessivo, mais do que o dobro da água de irrigação é usada na Califórnia para cultivar plantas forrageiras para alimentar o gado, especialmente vacas leiteiras. O leite de vaca tem uma demanda de água muito maior até mesmo do que a pior alternativa (leite de amêndoa) e é astronomicamente maior do que as melhores alternativas, como leite de aveia ou soja.

Isso não significa dar passe livre a todos os produtos vegetais: a horticultura pode fazer demandas massivas nos fornecimentos de água. Mesmo dentro de uma dieta baseada em plantas, devemos mudar de alguns grãos, vegetais e frutas para outros. Governos e varejistas devem nos ajudar por meio de uma combinação de regras mais rígidas e rotulagem informativa.

Em vez disso, eles fazem o oposto. No mês passado, a pedido do comissário agrícola da UE, Janusz Wojciechowski, a Comissão Europeia excluiu de seu novo plano climático o apelo para incentivar fontes de proteínas “diversificadas” (livres de animais). A regulamentação nunca é mais forte do que no setor de alimentos e agricultura.

Eu detesto ter que acrescentar mais uma coisa para vocês, mas alguns de nós têm que tentar combater o preconceito interminável contra a relevância na política e na maioria da mídia. Este é mais um desses problemas enormes negligenciados, qualquer um dos quais poderia ser fatal para a paz e a prosperidade em um planeta habitável. De alguma forma, precisamos recuperar nosso foco.

Artigo publicado no jornal inglês The Guardian, em 4 de março de 2024
Tradução: Geraldo Cantarino, Comissão de Meio Ambiente da ABI.

Nota da editora Zilda Ferreira, coordenadora da Comissão de Meio Ambiente:
O Brasil é um dos maiores exportadores de água do mundo devido às exportações de commodities. De acordo com o professor Aldo Rebouças, da Universidade de São Paulo, mais da metade da água utilizada nas lavouras brasileiras é desperdiçada. “Os países hoje em dia são avaliados pela forma como sabem usar a água, e não pelo que têm de água. Porque é mais importante hoje saber usar a água do que ostentar a abundância”, afirma o professor Rebouças no livro Mundo sustentável: abrindo espaço na mídia para um planeta em transformação, de André Trigueiro (Editora Globo, 2005).