Libertar o passado, parir outro futuro


21/06/2024


Por Paula Máiran (*)

Sempre ouvi de minha mãe uma história linda da origem da família, da jovem indígena que se banhava num riacho nas matas da Serra da Ibiapaba, no Ceará, quando o filho de um português a avistou e num amor à primeira vista a levou pra casa e com ela casou. Já adulta me dei conta, ao aprender sobre uma outra história do Brasil que não me ensinaram na escola, da realidade do estupro como prática recorrente dos colonizadores ao invadir Pindorama.

Doeu destruir o cenário e o roteiro românticos imaginados desde a infância. Em grande parte, eu me inspirava na virgem dos lábios de mel, a personagem do clássico romance Iracema, de José de Alencar, ambientado na mesma região de onde vim, terra dos Tabajaras, povo do tronco tupi.

A indígena da vida real, batizada com o nome cristão de Feliciana, foi caçada “a dente de cachorro”, segundo admitiu, antes de falecer, recentemente, a minha mãe, Maria do Socorro, mulher de pele clara, mas de cabelos lisos e negros como as asas da graúna, uma tenaz pesquisadora da árvore genealógica familiar e que escreveu, sobre o assunto, o livro Histórias Ouvidas e Vividas. Mamãe não entrou nos detalhes de como a nossa ancestral foi perseguida, alcançada, amarrada, estuprada, levada para a casa do seu algoz, e por ele “amansada”. Dessa situação, nasceram três filhos. Os registros dão conta de que Feliciana morreu aos 36 anos, sem qualquer oportunidade de escolha.

Essa é uma história muito particular, mas que também representa um padrão bastante típico da raiz familiar brasileira. Nossa miscigenação não se deu, muitas das vezes, no doce deleite do amor. Precisamos olhar para esse passado nacional, bruto como ele foi, para identificar a violência matriz da nossa colonização e da formação da nossa cultura, durante séculos tão maquiada por homens brancos europeizados como Alencar.

Dói demais nos dar conta de que guardamos dentro de nós o DNA das mulheres oprimidas e estupradas tanto quanto o dos colonizadores tiranos e estupradores.

Não por acaso somos um país em que na atualidade ainda ocorrem em média dois estupros a cada minuto, segundo pesquisa do Ipea. Essa forma de violência ainda se trata, portanto, de um crime banal, embora de terríveis consequências concretas e subjetivas para as vítimas. Eu mesma sou uma delas. Já era adulta quando um “conhecido” me estuprou. E eu jamais toleraria parir um filho do estuprador. Não imagino a gravidade da condição de uma criança obrigada a aceitar tais circunstâncias.

Vivemos o baita desafio de libertar o passado das mentiras disseminadas pelos colonizadores como premissa da possibilidade de escolhermos transformar o presente. Podemos parir outros futuros possíveis, sem tamanha carga de dor nas entranhas da nossa existência. E nesse afã de enfrentar a nossa origem no tempo presente para determinar novos destinos, cabe a nós escolher se seguimos ou não a carregar e em muitos casos a cultivar e a reproduzir o nosso legado colonizador, violento, sombrio e assustador.

Ter hoje em dia a maioria esmagadora da população brasileira revoltada com a aprovação do PL 1904 na Câmara dos Deputados e contra a aprovação do projeto no Senado é uma luz inovadora. Ver as ruas e as redes em massa contra essa política patriarcal parece apontar para um momento significativo de manifestação do forte desejo de mudar a nossa história. Que esse movimento insista e persista corajosamente até a grande vitória!

(*) jornalista, mestranda no Programa de Pós-Graduação em Mídia e Cotidiano da UFF