Derrotar o PL 1904 não basta: pelo fim do patriarcado


19/06/2024


Por Renata Souza (*)

Estupro não é sexo. Estupro é o uso vil da força bruta de um corpo para o domínio e violação de outro corpo mais vulnerável. É violência que fere não só a carne. Machuca, no âmago, a alma. É humilhação, demonstração de posse, fetiche do patriarcado com corte de gênero, de raça e etário. O estupro se perpetua a partir da representação masculina e branca que ocupa os espaços de poder e assim se protege. Prova disso, a recente aprovação do PL 1904 na Câmara dos Deputados, que determina pena de 20 anos para a menina que, grávida de um estupro, abortar com 22 semanas de gestação ou mais, em contraponto com penas muito menores aplicadas aos estupradores. Apenas 17,7% dos 511 parlamentares são mulheres. Esse dado, no contexto atual, é autoexplicativo.

Em um país onde, segundo o Ipea, ocorrem dois estupros a cada minuto ou 822 mil por ano, podemos falar do estupro como política agressiva de dominação dos homens. Daí, mundo afora, ser essa, inclusive, uma prática recorrente de tropas em guerra nos territórios conquistados na geopolítica comandada por machos. Não à toa, em 1.500, colonizadores europeus caçaram mulheres indígenas, amarraram-nas e as estupraram. Esses mesmos colonizadores também traficaram mulheres negras, da África para o Brasil, escravizaram-nas e as estupraram.

Tentaram esconder esse passado, chegaram a romantizar o encontro das raças, como em Iracema ou em Ceci e Peri, obras de José de Alencar, mas a verdade vem no século 21 nos revelar que, sim, somos um país fundado por estupradores racistas e, sim, 56,8% das vítimas são pretas ou pardas, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023. E os predadores preferem as meninas: 61,4% das vítimas cujos casos foram registrados não têm 14 anos.
Esses dados nos ensinam que, não bastassem as marcas no nosso DNA de mulheres brasileiras, continuamos, no presente, perseguidas e violentadas por machos tão perigosos quanto os algozes de outrora. E a maioria deles não nos ataca nas esquinas. Eles dormem nas nossas camas ou frequentam as nossas casas, são nossos maridos, pais, irmãos, tios, primos, vizinhos, professores, médicos, enfim, aqueles que víamos como nossos protetores.

Pelo menos agora a verdade grita nas ruas: estuprador não é pai!, criança não é mãe! Somos milhões nas ruas e nas redes, em multidões por todo o Brasil, aos berros, contra o PL 1907. Parece que temos sido até ouvidas. Percebe-se algum recuo no tratamento dessa pauta no Senado, onde mulheres são 15 dos 81 parlamentares. Mas isso não é o suficiente para honrarmos nossas ancestrais e mudarmos radicalmente a nossa história. Precisamos nos movimentar em massa e com persistência. O patriarcado precisa cair.

(*) gestante, mulher preta, jornalista, doutora em Comunicação e Cultura, deputada estadual (PSOL-RJ), presidente da Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher da Alerj