Angenor de Oliveira, o
mestre Cartola


13/10/2020


Cartola (Imagem da internet)

Angenor de Oliveira, o mestre Cartola 

Por Diana Aragão, membro da comissão de Cultura e Lazer da ABI  

Angenor de Oliveira, o mestre Cartola, só descobriu que era Angenor no dia em que foi tirar certidão de nascimento para se casar com Dona Zica. Até então, era o Agenor, carioca da gema nascido no bairro do Catete em 11 de outubro de 1908 e falecido no dia 30 de novembro de 1980 deixando um vazio na nossa cultura. Apesar do reconhecimento tardio de sua obra que só aconteceria depois dos seus 60 anos, ele ainda teve tempo de ser reconhecido em vida através das inúmeras gravações de suas obras-primas como “As Rosas não Falam”.

Filho de Sebastião Joaquim de Oliveira e Aída Gomes de Oliveira, de numerosa prole, a família morou ainda em Laranjeiras e, em seguida, foi para o morro de Mangueira, quando Cartola havia completado seus 11 anos. Morando em Laranjeiras, o menino Angenor tomou gosto pela música, pelo samba, aprendendo a tocar cavaquinho e a participar da vida dos ranchos, coqueluche da sua vida de menino pois escola de samba seria criada por Cartola.

Nessa época os ranchos predominavam no Catete, Botafogo, Gávea e Laranjeiras. E foi exatamente em Laranjeiras que Cartola tomou paixão pelo Arrepiados nas cores verde e rosa que iriam adornar a futura Estação Primeira de Mangueira. Cartola relembrou essa época em vários depoimentos: “…Mas sejamos honestos. O micróbio do samba me foi injetado pelo velho. Eu era muito garoto quando saía com toda a família no Rancho dos Arrepiados. E com minha voz, que era boa, cheguei à ala do Satanás. Saíamos, eu, papai, que tocava cavaquinho profissionalmente no bando, minha mãe e meus irmãos. A primeira vez que vesti uma fantasia. Sabe lá o que é isso?…”.

O nascimento de outros três filhos obrigou o pai da Cartola a se mudar para um lugar mais barato, no caso o Buraco Quente, do Morro de Mangueira, situado entre os bairros de São Cristovão e Engenho Novo. O menino Angenor foi obrigado a trabalhar, primeiro numa gráfica, tomando depois o ofício de pedreiro conforme seu própio relato: “Quando tinha 15 anos, trabalhava numa gráfica. Ia para o trabalho e passava por uma obra e via o pessoal todo trepado nos andaimes a assoviar para as garotas. Às vezes davam sorte. Pensei: isso é que é emprego. Passei a trabalhar na obra e como o cimento caísse sempre sobre minha cabeça, arranjei uma cartola e passei a usá-la, mas não só nas horas de serviço, mas na rua também. Tinha grande carinho por ela. Todas as noites a escovava e pela manhã ia trabalhar de cartola. Meus companheiros passaram a me chamar de Cartola e ninguém me conhece diferente hoje”.

Parceiros de sambas e de vida, Cartola e Carlos Cachaça fundaram o Bloco dos Arengueiros, em 1928. Logo ampliado para uma escola de samba também fundada por Euclides Roberto dos Santos, Saturnino Gonçalves, Marcelino José Claudino, José Gomes da Costa (Zé Espinguela), Pedro Caim e Abelardo da Bolinha. Estava criada, em 28 de abril de 1928, a Escola de Samba Estação Primeira da Mangueira. Cartola dizia que “eu resolvi chamar de Estação Primeira, porque era a primeira estação de trem, a partir da Central do Brasil, onde havia samba”.

Angenor de Oliveira caiu no samba compondo “Chega de Demanda” e na década de 30 vivia para escola onde era seu diretor de harmonia e para suas composições que começaram a ser conhecidas fora do morro devido a uma prática muito comum na época: compositores e cantores famosos compravam músicas de autores desconhecidos. Casos de Francisco Alves e Mário Reis que compraram de Cartola os sambas (Cartola não cedia a autoria) “Que Infeliz sorte”, “Divina Dama”, “Qual foi o mal que eu te fiz?”, gravados na Odeon, na década de 30.

Carmen Miranda gravou, em 1932, o samba “Tenho um novo amor” e, no ano seguinte, Cartola cria, junto com Oliveira da Cuíca e Wilson Batista, um conjunto vocal e instrumental de curta duração. Mesmo ano da parceria com Sílvio Caldas no samba “Na floresta” lançado em 78 rotações. Nessa época, Cartola foi gravado também por Araci de Almeida com o samba “Não quero mais”, na parceria com Carlos Cachaça e Zé da Zilda, que ficaria famosa na voz de Paulinho da Viola, em 1974 com o novo título de “Não quero mais amar a ninguém” também cantada por Elizeth Cardoso e Ciro Monteiro.

O ano de 1940 encontra Cartola na Praça Mauá, a bordo do navio Uruguai. Explica-se: dentro da chamada política de boa vizinhança que os Estados Unidos promoviam, acharam por bem registrar a nossa cultura. Além do filme inacabado de Orson Welles, foi formado um grupo para se apresentar para o maestro Leopold Stokowski. Grupo formado pelos craques Donga, Pixinguinha, João da Baiana e Cartola, Jararaca e Ratinho, Luís Americano, entre outros, que renderia dois albúns lançados nos Estados Unidos. No Brasil, há o registro de “Quem me vê sorrir”, na parceria com Carlos Cachaça, de um 78 rotações com a Mangueira Chorus.

Cartola chegou a gravar – vale registrar que tudo havia sido conduzido pelo maestro Heitor Villa-Lobos, amigo de Cartola – quatro músicas mas sómente “Quem me vê…”entrou no disco que o compositor só foi escutar muito tempo depois na casa do pesquisador Lúcio Rangel que havia recebido os discos dos Estados Unidos através do escritor Fernando Sabino. Toda essa história foi relembrada por outro grande poeta, Carlos Drummond de Andrade que, na véspera da morte de Cartola, escreveu em sua crônica no Jornal do Brasil que “ao gravar seu samba “Quem me vê sorrir” o maestro Leopold Stokowski não lhe fez nenhum favor: reconheceu apenas o que há de inventividade musical nas camadas mais humildes de nossa população”.

Essa época da sua vida, casado com Deolinda, foi das mais criativas para o jovem Cartola que também criou o programa A Voz do Morro, na rádio Cruzeiro do Sul ao lado de outro legenda do mundo do samba e da nossa cultura: Paulo da Portela, um dos fundadores da escola de samba Portela. A essa dupla de mestres foi se juntar outro grande nome, o de Heitor dos Prazeres formando o Conjunto Carioca que viajou para apresentações em São Paulo com grande sucesso.

De 1941 a 1947 a Portela foi campeã do carnaval para desespero dos mangueirenses comandados por Cartola e o ano de 1946 encontra Cartola doente, meningite séria e só depois de um ano se sente bom. Mas um novo golpe estava preparado com a morte de sua mulher Deolinda de um ataque do coração, relembrada pelo companheiro no belíssimo samba “Sim”. Em 1948 Cartola e Carlos Cachaça compõem o clássico samba-enredo “Vale do São Francisco” que não chega a ganhar o campeonato, ficando em quarto lugar enquanto Império Serrano ganhava o primeiro.

Com presidente novo, a Mangueira foi se modificando e Cartola saindo fora. Mais precisamente para morar com Donária, paixão que fez com que ele abandonasse até mesmo o violão! Foram mais de sete anos afastado de Mangueira para onde foi levado de volta pelo amigo Carlos Cachaça com o apoio de Eusébia Silva do Nascimento, a Zica, sua mulher até a morte.

Dessa época Cartola relembra que “…é, eu andei doente, depois perdi minha primeira mulher e acabei me metendo num negócio aí que nem vale a pena comentar. Acabei jogando fora uns seis ou sete anos. Não fiz nenhuma trapalhada, não. Foi um troço que aconteceu comigo que pode acontecer com qualquer um. Eu mesmo é que me escondi de todo mundo”. Foram tempos difíceis para Cartola e Zica que viviam em dificuldades financeiras até a noite em que Cartola foi “descoberto” pelo jornalista Sérgio Porto, o genial Stanislaw Ponte Preta, sobrinho de Lúcio Rangel.

Cartola lavava carros na garagem Oceânica, em Ipanema, quando ao entrar num bar, Sérgio Porto o reconheceu e lhe arrumou emprego no jornal Diário Carioca no final de década de 50. Com a ajuda de outros amigos, Cartola conseguiu outros empregos e, como consequência, sua casa vivia lotada de sambistas e pessoas que queriam conhece-lo. Um desses amigos, Eugênio Agostini, bancou a instalação do famoso Zicartola localizado no nº 53 da Rua da Carioca, no centro do Rio de Janeiro.

O sucesso do bar-restaurante (Zica era cozinheira afamada) foi grande desde a sua inauguração em setembro de 1963 até o fechamento de suas portas, em maio de 1965 devido, principalmente, à má administração. Mas o Zicartola revelou talentos como o de Paulinho da Viola que largou a vida de bancário depois de receber seu primeiro cachê profissional se apresentando nos shows do Zicartola organizados por Hermínio Bello de Carvalho e Albino Pinheiro.

São também filhos do Zicartola os shows Opinião e Rosa de Ouro redutos de resistência ao golpe militar acontecido em 1964 instalando a ditadura no país por mais de 20 anos. Como o pessoal do grupo Opinião frequentava o bar, o pessoal da Bossa Nova também começou a ir ao local, principalmente o compositor Carlos Lyra. Mas a idéia de juntar o morro e o asfalto nasceu ali com o convite feito a Zé Keti e a João da Vale para se apresentarem ao lado de Nara Leão no show que marcou época. Apresentando, inclusive, o mestre Cartola para o povo da Zona Sul com a gravação de Nara Leão para “O Sol Nascerá”, na parceria com Elton Medeiros.

Outro show antológico – o Rosa de Ouro idealizado por Hermínio Bello de Carvalho também marcou época revelando para o grande público os nomes de Paulinho da Viola, Elton Medeiros, Nelson Sargento e Anescarzinho do Salgueiro, além de Clementina de Jesus e Araci Cortes. Hermínio Bello de Carvalho declarou que “todos esses movimentos que aconteceram foi tudo um resultado desse Zicartola, dessa aglutinação que provocava. O Zicartola não foi um restaurante, foi um movimento cultural…”

O Zicartola voltaria a funcionar em São Paulo, em 1974, no bairro de Vila Formosa mas também logo foi passado adiante. Mesma cidade onde Cartola participaria, em 1968, da I Bienal do Samba promovida pela TV Record onde ganharia o quinto lugar com “Tive sim”. O primeiro lugar foi de “Lapinha”, de Baden Powell e Paulo Cesar Pinheiro; o segundo foi “Bom Tempo”, de Chico Buarque; terceiro, “Pressentimento” de Elton Medeiros e Hermínio Bello de Carvalho. O quarto colocado foi “Canto Chorado” de Billy Blanco. “Coisas do mundo, minha nega” de Paulinho da Viola foi o sexto colocado e o sétimo ficou com “Marina”, de Sinval Silva.

Cartola entra na década de 70 como mito, descoberto pelos estudantes que vão escutá-lo no show Cartola Convida que era realizado no incendiado prédio da UNE (União Nacional dos Estudantes) na Praia do Flamengo. Mesma época em que recebe um terreno do então governador Negrão de Lima para erguer sua casa em Mangueira, na Rua Visconde de Niterói, vizinha à quadra da escola de samba. Pintada de verde e rosa, sua casa continuaria sendo ponto de encontro até sua mudança para outra casa em Jacarepaguá, na praça As Rosas não Falam, título de uma de sua músicas mais famosas, pela qual ele gostaria de ser lembrado ao lado de “O Inverno do meu tempo”, parceria com Roberto Nascimento, e “O mundo é um moinho”.

“Bate outra vez / com esperanças o meu coração / pois já vai terminando o verão, enfim…/queixo-me às rosas / que bobagem! / as rosas não falam / simplesmente as rosas exalam / o perfume que roubam de ti…”

O mestre, enfim, estava descoberto para o chamado grande público reeditando o sucesso da década de 30 pois começou a ser gravado por cantoras do quilate de Elizeth Cardoso no LP Enluarada e no disco Fala Mangueira! onde Cartola divide vozes com Odete Amaral, Clementina de Jesus, Nelson Cavaquinho e Carlos Cachaça. Seu grande sonho de um disco solo seria realizado sómente em 1974 quando gravou o LP Cartola, em selo Marcus Pereira. O poeta tinha 65 anos de idade e ao lado de clássicos como “Tive sim” e “O sol nascerá” apresentava um novo parceiro, Dalmo Castelo, em duas belas músicas: “Disfarça e chora” e “Corra e olhe o céu”.

O disco recebeu todos os prêmios da crítica e, em 1976, sairia o segundo LP, Cartola, produzido pelo jornalista e escritor Juarez Barroso. A obra-prima “As Rosas não falam” é sucesso imediato e Cartola começa a fazer shows pelo país e em 1977 lança seu terceiro LP, o Verde que te quero rosa, já em selo RCA e produção do jornalista e escritor Sérgio Cabral. Data dessa época sua mudança para a casa de Jacarepaguá pois na Mangueira não tinha mais sossego para compor em paz e Dona Zica voltaria para a casa de Mangueira depois da morte de Cartola.

O ano de 1978 traz o show “Acontece” com Cartola e o conjunto Galo Preto, grande sucesso, e 1979 marca o lançamento do LP Cartola 70 anos. Seus 70 anos foram comemorados com muita festa, missa e seu último desfile pela Mangueira pois sua saúde já se encontrava minada pelo câncer que o mataria em 1980 depois de ficar internado desde o começo de novembro na Casa de Saúde São Carlos, no Humaitá, Rio de Janeiro, onde viria a falecer em 30 de novembro de 1980. Como bem definiu o cantor e compositor mangueirense, Nelson Sargento, Cartola não existiu, foi um sonho que a gente teve.

 

Crítica de Diana Aragão, no Globo, de outubro de 1988, de disco histórico de Cartola