21/11/2021
Por Muniz Sodré, jornalista, sociólogo, professor da UFRJ e USP. Publicado no portal Folha de S. Paulo e UOL.
Em meio ao reinante caos político, administrativo e social, é mais relevante do que nunca ponderar sobre o Dia de Zumbi dos Palmares, de comemoração tão próxima à da Proclamação da República.
É que, segundo o explicador-geral da nação Alberto Torres, a sociedade escravagista, em termos sociopolíticos, sempre foi a mais bem organizada do país até a República.
Uma ordem social tão cúmplice de si mesma que as palavras escravidão e tortura não podiam, oficialmente, ser proferidas no Parlamento.
Nada de grande espanto numa história nacional atravessada pelo vício fundador que foi a concentração das benesses em famílias, compadres e aliados, com a escravidão na base.
Primeiro, o Estado é casa-grande e Império. Com a República, o Estado é casa-grande sem senzala visível.
O regime republicano foi instaurado para assegurar a continuidade patrimonialista de apropriação de riquezas e poder sob o manto do capitalismo industrial.
Proclamado como uma maquiagem liberal do passado escravista, o novo regime abriu caminho para uma federação que apenas consolidava os direitos das oligarquias estaduais.
Acomodando o aparelho de Estado ao arcaísmo, a República já nasceu Velha.
A Proclamação foi um evento de última hora, de cima para baixo.
A tal ponto que, confundida no Rio com desfile militar, os negros temeram que pudesse se tratar da restauração do escravismo.
Havia precedentes históricos: em 1802, Napoleão Bonaparte restaurou, nas colônias francesas, a escravidão que tinha sido extinta em 1794.
Em 1856, o presidente da Nicarágua (William Walker, um aventureiro e pirata americano que tinha tomado o poder) simplesmente revogou a abolição da escravatura.
Entre nós preservou-se um modelo duplo de dominação político-social, que combina o autoritarismo da custódia militar com o sistema baseado em relações de família e de compadrio.
A igualdade cidadã, apregoada na Constituição de 1891 por influência liberal, era coisa feita para inglês ver e ouvir.
Em consequência, o poder se exerce como uma herança de formas senhoriais, com focos de trabalho semiescravo e uma hierarquização racial que associa patriarcado a capitalismo.
Cidadão pleno seria aquele que passou pelo crivo da cor, do parentesco ou do status.
Daí o nível baixo da cultura republicana: privilégio se mede pelo “desigualitarismo”, como no episódio sintomático em que alguém proclama “não sou cidadão, sou engenheiro formado”.
No fundo duplo da história das insurgências, há outras repúblicas sonhadas.
Zumbi foi herói guerreiro de uma própria, a República dos Palmares, na serra da Barriga.
Celebrá-lo é redefinir o quilombo hoje, à luz do movimento da consciência negra, como luta democrática pela cidadania sem barreiras.
Fonte:
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/muniz-sodre/2021/11/celebrar-zumbi-dos-palmares.shtml