Zuenir Ventura para a posteridade no MIS


05/05/2011


O jornalista e escritor Zuenir Ventura foi o mais recente convidado do projeto “Depoimentos para posteridade”, promovido pelo Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro (MIS), no último dia 25.
 
Participaram da banca de entrevistadores o cartunista Ziraldo, os jornalistas Roberto D’Avila, Arthur Xexéo, Mauro Ventura e João Máximo, sendo os dois últimos, respectivamente, filho e primo do homenageado.
 
A coleção Depoimentos para a Posteridade, do Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro(MIS) foi o primeiro arquivo do gênero criado no país. O projeto foi concebido em 1966, com o objetivo de ser programa de história oral para a preservação da memória de diversos setores da cultura nacional. Atualmente o acervo em áudio e vídeo reúne cerca de mil depoimentos totalizando quatro mil horas de gravação.
 
O primeiro depoimento foi realizado em agosto de 1966, por João da Baiana, seguido por Pixinguinha, Heitor dos Prazeres, Almirante, Donga, entre outras personalidade da cultura nacional, como os jornalistas David Nasser, Marques Rebelo, Sérgio Cabral, Luis Fernando Veríssimo, João Ubaldo Ribeiro, Ruy Castro, Carlos Heitor Cony e Bárbara Heliodora.
 
Ao longo de quatro horas, Zuenir Carlos Ventura detalhou sua trajetória de vida e a carreira na imprensa, que teve início em 1956, no jornal Tribuna da Imprensa, na função de arquivista.
 
Às vésperas de completar 80 anos, no próximo dia 1º de junho, Zuenir mantém o perfil otimista e velhos hábitos, como o de fugir de comemorações:
—Sou avesso a cerimônias. Se eu abrir uma exceção para a comemoração do meu  aniversário de 80 anos será para a ABI. Mas no dia do meu aniversário pretendo sumir. Eu nunca quis comemoração. É uma coisa meio assim, doente, sei lá…(risos).
 
Entusiasmado, Zuenir recebeu com alegria o público que lotou o auditório do MIS:
— Sobre o depoimento de hoje vou te dizer, até como furo de reportagem, que estou nervosíssimo! Em toda a minha vida escolar eu sempre tive problemas com exame oral. A sensação é que eu vou fazer um exame oral e com uma bancada de feras. Não sei como vou me sair, já que sempre me fui melhor em provas escritas(risos). E esse negócio de posteridade… acho que nem mereço.
 
Segundo o jornalista, a seleção dos entrevistadores foi um momento importante na organização do evento:
—É com muita emoção que vejo tantos amigos na mesa. A escolha foi em comum acordo com o MIS. Convivi profissionalmente com todos eles, de alguma maneira, sendo que Mauro Ventura é meu filho e João Máximo é meu primo de 2º grau, então é uma coisa muito amigável, mas isso não me impede de ficar nervoso.
 
Ziraldo, um dos mais animados do grupo, recordou os laços de amizade com o homenageado:
—Tenho muitas coisas em comum com o Zuenir. Em primeiro lugar a letra Z, nós fomos sempre os últimos na chamada; em segundo lugar, nós dois usamos colete, sem combinar, além das meias coloridas, também sem combinar. Tenho uma relação de afeto muito grande com ele. Somos do interior, de família grande, patriarcal. Ele vive envolvido com sobrinhos, tias, cunhados, a família poderosa. Nos encontramos na vida em um momento muito importante, durante o golpe militar, quando começamos a nos sentir úteis ajudando a esconder os amigos, participando do movimento, assinando manifestos. Viramos uma dupla. Muita gente pensa que ele é meu irmão. Estou muito feliz em estar aqui nesta homenagem. Vamos fazer uma festa surpresa para os 80 anos do Zuenir sem que ele saiba!
 
Para Mauro Ventura, a oportunidade de participar do encontro com o pai foi uma boa surpresa:
Quando me convidaram para o evento, fiquei assustado e pensando que talvez ficasse estranho o filho participar, meio cabotino. Mas pensei também que, afinal, eu conheço bastante a vida do meu pai, e posso, de alguma forma, dar a minha contribuição, já que é um registro, como o próprio nome diz, para a posteridade, com uma importância absurda, basta observar todas as pessoas que já fizeram este depoimento, como Pixinguinha e outros grandes nomes.
 
Mauro lembrou o apoio que recebeu da família diante da opção em seguir a carreira na imprensa:
Como os meus pais eram jornalistas, eles tinham muito medo de que eu tivesse uma visão romanceada do jornalismo. Achavam que eu teria a ilusão de que jornalismo era apenas conhecer artistas, intelectuais, ter a casa cercada de pessoas interessantes, receber convites pra shows, quando na verdade o jornalismo, tem um lado muito duro, de muito trabalho. Na verdade, eles nunca me deram força para eu ser jornalista, tanto que cheguei a fazer quatro anos e meio de Engenharia, e detestava, depois passei para o curso de História, mas não cheguei a cursar, e pensei em estudar Economia. Até que chegou o momento em que abandonei tudo e decidi seguir o jornalismo, recebendo o total apoio de meus pais.
 
Antigo parceiro profissional, Artur Xexéo destacou o papel de Zuenir em sua trajetória no jornalismo:
Acho este evento do MIS muito importante porque nós temos o privilégio de conviver com Zuenir, conhecer suas histórias. Entretanto, daqui a dez anos, 20 anos, 30 anos, alguém vai querer saber e é bom estar registrado. A minha relação com Zuenir é muito especial porque eu devo a ele toda a minha carreira. Trabalhamos juntos na revista Veja em 1978, e, desde então, ele tem sido uma aula de Jornalismo para mim. Zuenir me levou da Veja para a Isto É, daí para o JB. Quando ele saiu da Revista Domingo para editar o Caderno B, fiquei no lugar dele. Quando ele deixou o Caderno B para fazer uma reforma no Caderno Idéias, assumi a função de editor do Caderno B. Durante muito tempo a minha carreira seguiu paralela ou logo atrás da dele. É a pessoa mais importante da minha vida profissional.
 
João Máximo também sublinhou a importância do primo na vida e na carreira:
Eu estou aqui neste encontro no MIS também porque conheço um lado da história de Zuenir anterior ao profissional. Passávamos juntos as férias de verão até 1953, moramos juntos no início da faculdade. Ele foi importante na minha escolha profissional, me indicou para estágios na Tribuna da Imprensa, no Correio da Manhã e no JB. Atualmente, trabalho com o Mauro Ventura no Segundo Caderno de O Globo.
 
A representatividade de Zuenir na imprensa brasileira foi acentuada por Roberto D’ávila:
Ele é uma figura muito generosa, um grande mestre, uma inspiração constante. Tem uma vida tão rica de personagens tanto nacionais como universais. Ele é mais do que um mestre para mim. Eu me sinto honrado em ter trabalhado com ele, e, principalmente, em ser amigo dele.
 
Biografia
 
O primeiro bloco do depoimento de Zuenir Ventura foi dedicado aos dados biográficos, lembranças da infância e adolescência nos anos 1930 e 1940, os estudos no Seminário Colégio Salesiano Dom Helvécio, em Ponte Nova (MG), a relação com a religiosidade cristã, a paisagem mineira, a transferência da família para Nova Friburgo, no Rio de Janeiro, em 1941, o novo círculo de amizades na cidade, as primeiras experiências profissionais, a dedicação ao basquete, a descoberta do prazer da leitura.
 
No segundo bloco, Zuenir falou sobre o início da carreira na imprensa, o ingresso na Faculdade de Letras Neolatinas na UFRJ (1954-1957), a diversidade cultural do Rio de Janeiro na década de 1950, o trabalho ao lado do filólogo Celso Cunha na cátedra da Língua Portuguesa da Faculdade de Jornalismo da UFRJ (1955), a experiência como redator da publicação “A História em Notícia” (1956), o emprego no jornal Tribuna da Imprensa a partir de 1957.
 
No terceiro bloco, o tema central foi a diversidade política e cultural dos anos 1960, e a geração de 1968. Zuenir falou também sobre a temporada em Paris com a bolsa de estudos no Centre de Formation des Journalistes (1960 e 1961), o contato com o cineasta Joaquim Pedro de Andrade, o casamento com a jornalista Mary Akiersztein, em 1962, o nascimento dos filhos Mauro(1963) e Elisa(1964), os trabalhos como editor internacional do jornal Correio da Manhã (1962), e professor de Comunicação Verbal da Escola Superior de Desenho Industrial no Rio de Janeiro, a reflexão em torno da experiência didática (a partir de 1962), o panorama político pré-1964, pós-golpe militar e as dificuldades criadas pela censura no cenário jornalístico, a atmosfera criadora dos anos de 1960 no Brasil: tropicalismo, as produções do Cinema Novo, o teatro de militância política, o movimento estudantil, as atividades na década de 1970, na redação do Diário Carioca, como chefe de reportagem da revista O Cruzeiro (ambos em 1965), a direção da revista Fatos & Fotos(1966), a concepção do jornal O Sol (1967) e da revista Visão(1967); o maio de 1968 na França, o cenário de agitação política, cultural, o desejo de mudança e as influências no âmbito mundial; a “geração 68” no Brasil e os personagens antológicos do movimento, o recrudescimento do regime após o AI-5, a prisão em dezembro de 1968, a produção para a Editora Abril da série “Os anos 60 – A década que mudou tudo” (1969), publicada em livro.
 
Após um pequeno intervalo, a sessão foi retomada com detalhes sobre os anos de chumbo na imprensa, o posicionamento político e ideológico no período, a experiência na direção da redação do jornal Correio da Manhã (1970), o retorno para a revista Visão (1971-1977), a cobertura da Revolução dos Cravos em Portugal (1974), o encontro com Glauber Rocha nesse episódio histórico, a colaboração como roteirista no documentário “Que país é esse?”, de Leon Hirzsman, para o rádio e TV italiana, o trabalho na revista Veja (1977-1981).
 
O sucesso na carreira literária foi abordado em seguida, no quinto bloco, juntamente com informações sobre o trabalho na revista Isto É (1981) e no Jornal do Brasil (1985-1999), o ofício jornalístico no período de abertura política brasileira, o lançamento do best-seller “1968 – o ano que não terminou”, em 1988, as coberturas marcantes, como a série “O Acre de Chico Mendes”, com a qual recebeu o Prêmio Esso de Jornalismo e o Prêmio Vladimir Herzog, em 1989, a publicação dos livros “Cidade partida” (1994, Prêmio Jabuti de Reportagem), “Inveja – Mal Secreto” e “O Rio de J. Carlos” (ambos em 1998); o trabalho no jornal O Globo e na revista Época, a publicação do livro “Crônicas de um fim de século”(1999).
 
No sexto bloco, Zuenir falou sobre a publicação dos livros “Cultura em trânsito – 70/80”, em parceria com Heloísa Buarque de Hollanda e Elio Gaspari (2000), “Chico Mendes – Crime e Castigo” (2003) e “As vozes do golpe” (2004- com Carlos Heitor Cony, Moacyr Scliar e Luis Fernando Verissimo), a co-direção do documentário “Um dia qualquer”, a  roteirização do documentário “Paulinho da Viola: meu tempo é hoje”, em parceria com Isabel Jaguaribe (2002), a publicação dos livros “Minhas histórias dos outros” (2005) e “1968 – O ano que não terminou/ O que fizemos de nós” (2008), o reconhecimento internacional da obra: o troféu da ONU (2008) e o importante papel jornalístico para os percursos da cidadania no Brasil, o título de “Jornalista do Ano” pela Associação de Correspondentes Estrangeiros, em 2010, a publicação do livro “Luis Fernando Verissimo & Zuenir Ventura: conversa sobre o tempo com Arthur Dapieve”, em 2010, a função social do jornalista no novo milênio.
 
No sétimo e último bloco, o jornalista comentou sobre os projetos para o futuro e aspectos da vida privada.
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Trechos do Depoimento:
 
Meu nome é Zuenir Carlos Ventura, mas muitos me chamam de Dona Zuenir. Pelo menos uma vez por semana tenho que responder ao telefone: “eu queria falar com Dona Zuenir” eu digo: “ é ela mesma que está falando”. Resolvo a questão assim. Nasci em Além Paraíba, no dia 1º de junho de 1931. Meus pais são Herina de Araújo e Antônio José Ventura, seu Zezé Ventura. Eu nasci em Além Paraíba, mas fui para Ponte Nova(MG). Meu pai trabalhava na Leopoldina nessa época, e ainda era em Friburgo, e minha mãe em Além Paraíba. Fui para Ponte Nova com dias, praticamente, e fiquei lá até os onze anos. Em Ponte Nova eu ia ser padre, na verdade fui interno no Colégio Salesiano Dom Helvécio. Minha mãe lavava as batinas dos padres para eu poder estudar de graça no internato. Depois, descobri que a vocação para a religião era dela e não minha. Ela queria que eu fosse padre, não eu. Percebi a falta de vocação em Friburgo, porque aos 11 anos nos mudamos para lá e eu caí na vida, literalmente. Minha mãe costumava dizer que eu me perdi. Tenho duas irmãs mais velhas do que eu, e um irmão mais novo. Dois nasceram em Friburgo e dois em Ponte Nova.
 
Primeiro emprego
 
Meu pai era de Friburgo e quis voltar para a cidade dele. Minha mãe achou ótimo. Ele retomou o ofício de pintor de paredes. O meu primeiro ofício também foi o de pintor de paredes. Eu fiquei muito emocionado porque aqui na plateia está uma senhora de Friburgo, com a filha. O pai tem uma casa que foi pintada pelo meu pai, e provavelmente, quem raspou as paredes fui eu, né? Comecei como aprendiz de pintor, eu raspava as paredes. Meu pai dizia o seguinte: olha, você quer estudar, então você vai ganhar dinheiro para comprar uniforme e tal. Meu pai e minha mãe tinham uma formação cultural muito precária, semi-alfabetizados, os dois. Mas minha mãe tinha obsessão pelo estudo, pelo ensino. Achava que os filhos tinham que estudar, que era fundamental o estudo. Já meu pai, filho de portugueses, achava que estudar era coisa para rico, que tinha que trabalhar. Era uma combinação muito curiosa. Tenho muito orgulho de meu pai, um dos mais honrados cidadãos que conheci, meu modelo de vida ético, foi ele quem me ensinou que pobreza rima com dignidade, honestidade. É o meu modelo de comportamento de vida.
 
Cordoeira
 
Estive em Friburgo há pouco tempo para visitar o Morro do Cordoeira. Meu pai queria construir uma casa e comprou um terreno lá em cima do morro que não valia nada, e ainda abriu uma rua que tem o nome da minha avó Elisa Ventura. Voltei agora há pouco tempo para tentar rever a minha casa na Rua José de Alencar. Quando cheguei no meio do morro, uns senhores disseram que eu não podia subir porque o local estava tomado pelo Comando Vermelho. E era um lugar onde a gente ia à noite, a qualquer hora, só tinha medo de assombração. Aí eu não subi. Fui também visitar o beco da oficina, que era a zona do baixo meretrício, onde todos nós iniciamos, inclusive o João Máximo(risos).
 
Experiências profissionais
 
Aos 14, 15 anos, trabalhei como contínuo no Banco em Barra do Piraí, no Bar do Alemão, e em um desses laboratórios de prótese. Pode parecer sacrifício, mas foi uma época muito boa. Fui muito feliz na infância e na adolescência, só não fui mais porque eu era muito feio(risos). Tinha essa coisa da proximidade, essa coisa da vizinhança, de todo mundo se conhecer, mas era meio claustrofóbico. Meu sonho era sair de lá e vir para o Rio de Janeiro. Não tinha televisão, não tinha nada disso, mas eu ficava vendo tudo pela revista O Cruzeiro, um fascínio. Quando eu pude mudar para o Rio foi um acontecimento.
 
Primeiras leituras
 
Minhas primeiras leituras foram “Judas, o obscuro”, um livro fundamental na minha vida, e “Ladeira da Memória”, entre outros títulos. Dona Letícia Pinto, que era professora, fez a minha cabeça. Ela me deu o meu primeiro Proust, o meu primeiro Machado de Assis, livros que chegavam e que em Friburgo não se tinha acesso. Depois eu tive um amigo, o André, que a gente chamava de André Maluco porque ele lia muito, tocava violão, era apaixonado pelos filósofos como Shopenhauer. Foi muito importante para a minha formação literária, uma formação cheia de lacunas. Na faculdade, aí sim, eu passei a me organizar na leitura.
 
Vocação
 
Em Friburgo, eu tinha uma bolsa de estudos no Colégio Modelo. Depois, a direção propôs que eu lecionasse para o pessoal do curso primário para fazer o científico de graça à noite. Descobri, então, que a minha vocação era lecionar. Vim para o Rio porque a única escola que dava o diploma de magistério era a Faculdade de Filosofia no curso de Letras Neolatinas. Mas eu também quis ser dentista, motorista de caminhão. Fiz exame para a Escola Naval, mas não passei no exame de saúde por ser muito magro, não podia ser oficial da Marinha, hoje eu seria o Almirante Ventura(risos).
 
O principal jornal de Friburgo, “A Voz da Serra”, foi criado pelo meu primo. Eu nunca pensei em trabalhar no jornal, nunca pensei em trabalhar como jornalista, nunca pensei em ser escritor. Eu queria ser professor, o que fui por mais de 40 anos. Adoro essa coisa do magistério. Eu gosto de ler, mas não gosto de escrever(risos).
 
Basquete
 
No futebol eu não era bom, mas era bom no basquete. Quando eu vim para o Rio, eu tinha um convite para jogar no Fluminense. O João Máximo e o Hélio, que é o irmão mais velho dele, fizeram a minha cabeça para o Fluminense. Eu jogava razoavelmente bem, era pivô. O apelido que ganhei de “Divino Mestre”, claro que era uma ironia, foi porque eu lecionava e também jogava na Seleção de Basquete de Friburgo, cheguei a bater um recorde de cestas, que hoje deve ser insignificante.
 
Mudança para o Rio
 
Cheguei ao Rio em 1953 e fui morar em Vila Isabel, em uma espécie de república, próximo de minha tia Zinha e de meu tio Pena, avós do João Máximo. Caí em Vila Isabel com toda a mística, todo o carisma do bairro. Depois, comecei a dar aula particular. Nesse tempo eu não tinha grana, não tinha muito dinheiro. Nosso primo mais velho nos ajudava muito, assim como minhas colegas, as moças da faculdade, que davam dinheiro para o sanduíche. A pobreza rimava com dignidade, nada que pudesse deprimir.
 
Primeira atividade na imprensa
 
Quando cheguei na faculdade tinha Manuel Bandeira, Alceu Amoroso Lima, Celso Cunha. Aquilo tudo, usando uma expressão de Manuel Bandeira, foi um alumbramento, a descoberta de um outro mundo. Manuel Bandeira freqüentava a Lapa, os grandes poemas dele são da Lapa. Não é à toa que a poesia de Bandeira é uma poesia suja de vida. Ele e Celso Cunha eram boêmios, amigos de Ismael Silva. Celso Cunha dava aula na Faculdade de Jornalismo. Um dia ele perguntou se eu queria ser assistente dele. Eu  ainda estava estudando Letras e tinha começado a trabalhar na Tribuna da Imprensa.
 
O professor Hélcio Martins, que era muito amigo de Celso Cunha e dirigia o arquivo da Tribuna da Imprensa, me ofereceu um emprego de arquivista entre 18h e meia-noite, o único horário que eu poderia. Eu ficava recortando jornais e arquivando pastas. Um dia, eu estava passando pela redação quando o dono do jornal, Carlos Lacerda, uma figura que metia medo, dava broncas colossais, mas foi um grande professor de jornalismo,  estava procurando alguém para fazer o obituário de Albert Camus, que era uma das minhas paixões. Ele é muito mais atual do que Sartre. Eu me ofereci para fazer o obituário. Escrevi e correu a lenda de que o continuo do arquivo do jornal era um gênio(risos). Fui trabalhar na redação com o salário dobrado, triplicado.
 
Curso em Paris
 
Em 1960, me candidatei a uma bolsa pelo Governo francês para o Centro de Formação de Jornalistas em Paris. Passei um ano lá. A Tribuna complementava a bolsa, que na época era de U$ 50 para eu mandar matéria como correspondente.
 
O Jango estava na China e na volta passou por Paris. Ninguém sabia o que ia acontecer aqui, se ia ter revolução, se ia ter golpe. Como o Jango mal falava o português, acabei sendo intérprete dele. Participei em Viena do encontro do século que reuniu Kruschev e Kennedy.
 
Casamento
 
Quando voltei para a Tribuna de Imprensa, vi na lanchonete do jornal uma moça de olhos verdes, maravilhosa, Mary Akiersztein. Começou uma história de amor que hoje tem 48 anos. Mary me apresentou a muita gente, ela fazia crítica de arte. Vivemos a efervescência intelectual e criativa na casa da Urca, onde moramos durante sete anos. Em 1968, nós fomos presos, eu de manhã, na Urca, meia hora depois a Mary, que tinha ido levar roupa para mim e acabou presa também. Aí veio meu irmão, que também foi preso. O delegado era Antônio da Costa Sena. Expliquei que minha filha estava com coqueluche, tendo acessos de tosse. Ele disse que o problema era meu. Dias depois, fomos levados para o Dops, onde, por sorte, encontramos um inspetor que era amigo de infância do Ziraldo. Foi um momento que eu entrei realmente em pânico, mas essa figura me tranqüilizou, eu confiei nele. Pedi para ele cuidar da Mary, que ficou um mês lá, e eu três meses. Não fui torturado. Fiquei um tempo com o Ziraldo, mas a maior parte dele com o Hélio Pelegrino.
 
Prisão
 
Eu e o Hélio jogávamos basquete na prisão durante os 15 minutos de banho de sol. Falamos para o coronel Quaresma que o Ziraldo também jogava basquete. Conseguimos, assim, a transferência do Ziraldo. Numa confusão do Hélio com o time de basquete dos militares, acabamos transferidos e isolados por desacato à autoridade.
 
O Nelson Rodrigues era quase um irmão do Hélio. Ele apoiava o regime militar e era amigo dos generais, tanto que conseguiu tirar o Hélio, que na hora H avisou que só sairia se o Zuenir saísse também. Saí com o aval de Nelson Rodrigues.
 
Anos de chumbo na imprensa
 
Foi uma loucura aquela paranóia. Eles achavam que eu era o cara que centralizava o Partido Comunista, que o organizava na área de jornalismo. Chegaram a dizer que ninguém era admitido ou demitido de jornal sem a minha aquiescência. Grampearam nosso telefone durante um ano. Nesses anos o mercado jornalístico tinha mais de 20 jornais. Eu nunca tive medo de deixar um jornal e ficar desempregado. Quando ficava meio chateado, ia pra outro. Entre 1964 e 1968, trabalhei no Diário Carioca, O Cruzeiro, Fatos e Fotos, O Sol, revista Visão. Trabalhei na Visão na época braba, uma revista de economia que não era muito visada. Ziraldo era o diretor de arte e diagramador, eu era o chefe de redação, e o Washington Novaes era o diretor de redação. Embaixo da redação funcionava o restaurante estudantil Calabouço. No dia da morte do estudante Edson Luís nós descemos e seguimos o cortejo para o velório. Em 1968 aconteceu essa coisa misteriosa que ninguém consegue explicar até hoje. Um desses grandes mistérios. Tivemos um movimento planetário sem a ajuda da internet.
 
Na Visão saiu a entrevista do Glauber dizendo que o General Golbery era o gênio da raça, que o partido comunista tinha fracassado, e a igreja católica, e que só tinha um jeito que era a saída pelos militares. Tentei entrar em contato com o Glauber, mas ele não estava mais em Roma. Parecia, como ele foi acusado depois, que estava aderindo aos militares. Ele estava negociando com os militares a volta dele. Era uma forma de obter um salvo conduto. Ele dizia o seguinte: “eu não tenho outra saída”. Soubemos depois que o Golbery levou dois dias sem entender a tal entrevista do Glauber, se era contra ou a favor. No ano seguinte em 1975, o Vlado foi assassinado dentro do quartel do DOI CODI em São Paulo. Aconteceu uma coisa muito estranha, quando eu fui chamado a São Paulo para assumir o Jornalismo da TV Cultura. Liguei para o Vlado e disse que tinha uma novidade. Ele disse que também tinha uma novidade para mim. Insisti para que ele contasse primeiro e ele falou que tinha sido convidado para a assumir o Jornalismo na TV Cultura de São Paulo. Decidi não comentar o que tinha acontecido comigo. O Juca de Oliveira falou por muito tempo que eu teria morrido se estivesse no lugar do Vlado, que era o chefe de Jornalismo na TV Cultura quando foi preso e assassinado. A morte dele tem muita relação com a abertura política. Logo depois, foi assassinado Manuel Fiel. O Geisel deu soco na mesa. A morte do Vlado mobilizou muito. Todos nós sabíamos que ele tinha sido morto. Nesse momento começa o primeiro passo para a abertura, porque foi uma coisa tão revoltante inclusive para o próprio Governo, que queria abrir.
 
Internet
 
Está acontecendo uma revolução tecnológica. Não sabemos sabe o que vai ser da internet, qual é o papel da internet. Parce que o tempo acelerou com a informação em tempo real. Não acredito que aconteça o antagonismo das mídias, Acho que, na verdade, vai haver uma convergência. Essa coisa meio apocalíptica de que um meio vai acabar com outro, que o jornalismo escrito vai acabar, que os livros vão acabar não vai acontecer. Sempre que surgiu uma tecnologia nova, houve o aperfeiçoamento da anterior. O cinema não acabou com o teatro enfim, nem a televisão acabou com o jornalismo e com o livro. Estamos vivenciando uma certa  perplexidade, assusta porque é essa avassaladora presença desse negócio do Twitter, por exemplo. E há pessoas que acham que se pode fazer tudo com 140 toques. Pode escrever os Lusíadas em 140 toques. Isso é ótimo para analfabeto. No nosso tempo tinha o telegrama, mas não dá conta de tudo. A leitura é uma necessidade biológica, você pode mudar até o meio, já foi na pedra, na árvore, em vários suportes. Daqui a pouco teremos um novo tipo de folha, aliás, já existe.
 
Eu tenho a maior pinimba com a internet, que até já me matou. Hoje eu estava mexendo nas minhas coisas e encontrei a tal notícia: Morre o escritor Zuenir Ventura. Hoje a gente acha graça, mas o Mauro ficou três horas procurando o meu corpo nos hospitais do Rio de Janeiro. Aconteceu o seguinte: um menino ligou para um telefone meu muito antigo, e a mulher que era a nova dona do número já estava de saco cheio e resolveu ir à forra. Disse que o Zuenir não estava porque tinha morrido atropelado ao meio-dia, e que o corpo estava no Hospital da Lagoa, deu todos os detalhes da morte. Mary ficou inconsolável. Na verdade, eu estava participando da reinauguração do Instituto Moreira Salles, onde também estavam o Presidente da República, o Governador, e o Prefeito. Ninguém entrava nessa sala, ninguém conseguia. O Mauro viu a notícia e começou a correr a cidade procurando. Não tinha celular na época, é bom dizer. Todos os repórteres estavam do lado de fora do evento querendo entrar e começaram a mandar me chamar. Achei que queriam alguma informação sobre a cerimônia e deixei pra lá. Como ninguém conseguia confirmar se eu estava ou não no evento, a jornalista do site botou a notícia da morte no ar, e permaneceu durante três horas. Teve gente que levou três dias para tirar. Quando eu cheguei em casa às três horas da manhã, a notícia continuava lá e terminava assim: “Sua última coluna deve sair amanhã no O Globo”. Aí me bateu aquela coisa, se estava escrito ali, eu podia ter esperado mais um tempo para ver o que falariam de mim. Para reclamar, claro! Achei a notícia muito pequena(risos).
 
Amizade
 
Eu tenho uma teoria de que a amizade é mais duradoura do que o amor. Na amizade não há cláusula de exclusividade, não tem libido, não tem ciúme, a não ser o do Ziraldo. Ele me liga todo dia reclamando porque ele me liga e eu não ligo para ele. Eu sou um amigo relapso, mas adoro os meus amigos. O Ziraldo realmente morre de ciúmes de mim e vive fazendo intriga. Um dia ele me ligou de São Paulo para dizer que todo mundo estava dizendo que eu tinha um caso com o Xexéo, e que aqui no Rio todo mundo estava dizendo que ele tinha um caso comigo. Rubem Vagner diz que ciúme de homem é o pior ciúme(risos).
 
Projetos
 
Em primeiro lugar, vou querer mais um neto. O Mauro prometeu que não vai me negar. Sem nenhuma demagogia, a vida me deu mais do que eu merecia. Claro que no trabalho se quer produzir mais, faz parte dessa angústia que é bom ter, senão eu morreria. Acho ótimo estar trabalhando e olha que eu nem gosto de escrever. Quero esta mesma vida, quero a mesma mulher, quero meus dois filhos e mais netos. Uma família incrível. Quero ser um honrado cidadão brasileiro. Eu não sou modelo de nada, nem espelho de nada. Tenho qualidades e defeitos, e uma coisa que hoje está fora de moda chamada otimismo. Espero que quando eu morrer o otimismo esteja na moda. Eu realmente acredito no país, na cidade. Estamos atravessando problemas que são superáveis. O Brasil tem potencial, o povo brasileiro tem energia vital, alegria, vontade de viver, de celebrar. O Rio de Janeiro não nasceu pra ser uma ‘cidade partida’. A vocação do Rio é o encontro e a celebração. Um beijo para todo mundo!

*Colaboração de Renan Castro, estagiário do Departamento de Jornalismo da ABI.