O jornalista e escritor Zuenir Ventura ministrou uma palestra na noite desta segunda-feira, 25, em celebração à memória de Vladimir Herzog, que completaria 75 anos no dia 27 de junho. O evento, realizado no Midrash Centro Cultural, no Leblon, zona sul do Rio, contou com a presença de cerca de cem pessoas, entre familiares, amigos e admiradores de Vlado, como o cineasta Sílvio Tendler e a publicitária Nádia Rebouças, cunhada do homenageado.
Na abertura do concorrido encontro, foi lida uma declaração de Ivo Herzog, filho de Vladimir Herzog, na qual ele pede ao governo brasileiro o reconhecimento da morte do pai pelos agentes da ditadura e não como suicídio, conforme ainda consta na certidão de óbito do jornalista.
Segundo Zuenir Ventura, Vlado “era apenas um excelente jornalista, preocupado com os rumos do país naquele momento”, e lembrou que eles raramente conversavam sobre política:
—Trabalhamos juntos na revista Visão. De 15 em 15 dias eu ia à São Paulo para fazer a reunião de pauta e costumava me hospedar na casa dele. Ficávamos até altas horas da madrugada discutindo cultura, falando sobre as matérias. Às vezes, acabávamos dormindo na sala. Nós éramos muito amigos.
Zuenir comentou a versão oficial dos militares para a morte de Vlado:
—A repressão conseguiu um atestado de óbito dizendo que tinha sido suicídio. Herzog era judeu e na tradição judaica o suicida tem um lugar especial no cemitério. O rabino Henry Sobel, numa iniciativa corajosa, se recusou a enterrar o Vlado na área para os suicidas.
Ao final do encontro, Zuenir Ventura autografou o seu novo livro “Sagrada Família”, que será lançado durante a Feira Literária de Paraty, a Flip, na primeira semana de julho.
Amizade
Em 25 de outubro de 2000, foi publicado no site do Instituto Vladimir Herzog
www.vladimirherzog.org) um texto de Zuenir Ventura, no qual o jornalista e escritor detalha sua amizade com Vladimir Herzog. O documento tem o seguinte teor:
“O mártir da abertura
Vlado na verdade escrevia pouco – do que ele gostava mesmo era de fazer escrever. E como fazia isso bem!
Não me lembro de um editor mais rigoroso, mais exigente com a qualidade do que ele. Vlado ria primeiro com os olhos. Quando fazia isso e sobretudo quando começava a coçar a careca – uma careca que todo mundo achava parecida com a minha – já se sabia que vinha reclamação.
Irritado quando ele me obrigava a mexer e remexer muitas vezes uma matéria, eu o xingava de “o cobrador”. Ele chegou a mandar Otto Maria Carpeaux reescrever duas vezes um artigo. Carpeaux, grande intelectual e ensaísta que trabalhava conosco na Visão, não tinha propriamente o domínio técnico da reportagem, nem o domínio da paciência, e como Vlado não abria mão de suas cobranças, pode-se imaginar a tempestade que houve.
Contado assim à distância, pode parecer que Vlado fizesse isso por impertinência ou arrogância, como afirmação de poder – uma prática tão comum em quem exerce esse tipo de função. Sinceramente, não.
Nunca cheguei a discutir o que vou dizer com Fernando Jordão, grande profissional e seu maior amigo, mas acho que Vlado era capaz de mandar reescrever uma matéria duas, três vezes, sem qualquer constrangimento, na maior cara de pau, porque era um perfeccionista quase doente. Para ele, não transigir com o erro, não fazer concessão à preguiça, não conciliar com a imperfeição, era a coisa mais natural do mundo. Não lhe passava pela cabeça que alguém não pudesse compartilhar essa tranqüila convicção.
Trabalhei sob suas ordens durante uns dois anos na revista Visão. Ele era editor de Cultura em São Paulo e eu chefiava a redação da sucursal-Rio, cujo diretor Jorge Leão Teixeira era quem mais fazia piadas com a obsessão perfeccionista do Vlado. Como então a produção carioca comandava o movimento cultural do país, eu era quase “exclusivo” da editoria de Cultura, o seu principal fornecer de material. Eu brincava dizendo: “sou full time do Vlado”.
Durante o tempo em que trabalhamos juntos, produzimos algumas matérias de que me orgulho até hoje, e uma bela amizade – que incluía e inclui a doce e serena Clarice. Pelo menos de quinze em quinze dias, eu ia a São Paulo e em geral dormia na sala da casa deles na Oscar Freire, lá nos fundos, com aquele portão com desenhos infantis que anunciava o astral do lar dos Herzog.
Dormia lá para a gente ficar até de madrugada conversando sobre pautas, matéria, cultura. Raramente falávamos de política. Não é que o assunto não nos interessasse, mas acho que tudo nas nossas vidas passava antes pela cultura. Por isso, a morte de Vlado me pareceu mais estúpida. Ele foi morto pelo que não fazia. Vlado não era um político, um militante, não usava a profissão para fazer contrabando ideológico, uma tentação daqueles tempos em que, por não se respirar, procurava-se em qualquer fresta o ar da liberdade.
Ao contrário – e essa era a mais admirável de suas virtudes profissionais – Vlado não instrumentalizava o jornalismo, não fazia dele um pretexto político; ele acreditava na informação como força transformadora. A gente vivia repetindo aquela frase que é atribuída a Lênin, se não me engano: “A verdade é revolucionária”.
Acho que o projeto mais importante do Vlado – só estou me referindo ao jornalismo escrito – foi a parte cultural da edição especial de Visão sobre os dez anos do golpe militar, em março de 1974, uma edição que por várias razões se tornou histórica.
Quem bancou o número com uma coragem rara naqueles tempos foi o dono da revista, Saïd Farhat. Quem o idealizou, planejou e editou com igual competência foi Luiz Garcia, que chefiava a redação. Muita gente mais esteve envolvida no projeto e eu mesmo escrevi boa parte das matérias.
Mas se credito a Vlado a responsabilidade maior pela importância do número, é porque o projeto ficou famoso pela parte cultural, e o grande animador desta, seu entusiasta comandante foi de fato Vlado. E como ele me fez trabalhar!
O conteúdo da edição trazia como revelação um pouco de luz no fim do túnel. Depois de anos de funda depressão, em que a classe artística estivera mergulhada no desespero ou no desencanto, aqueles artigos e entrevistas carregavam algumas vezes as marcas do lamento, o som de um “grito parado no ar”, para usar o título de uma peça de Guarnieri da época. Mas o que havia de novo não era isso, não era o tom de reclamação; era justamente algo que já anunciava o fim do que se poderia chamar de retórica do queixume – era o que mais tarde viria a se chamar “abertura” e que naquele momento ainda recebia o tímido nome de “distensão”, dado pelo general Geisel.
Na área cultural, o personagem principal do fenômeno e do número de Visão foi Glauber Rocha, com suas declarações sobre Geisel, sobre o general Golbery e sobre Darcy Ribeiro – “gênios da raça” – e, de passagem e de leve, sobre Fernando Henrique, o príncipe dos sociólogos. Quando soube que, em vez das respostas ao longo questionário que eu lhe enviara pelo Correio, Glauber me mandara uma carta curta, pessoal, cheia de idéias loucas, Vlado quase teve um ataque.
Algumas coisas o incomodavam naquela “entrevista”. A primeira delas era justamente a forma heterodoxa e hermética daquele depoimento pouco jornalístico, cujas alegorias e hipérboles chegavam a chocar a vontade de clareza e a ofender a obsessão perfeccionista do meu editor. Mas essa não era a única objeção. Havia também o temor de que aquele depoimento viesse a ser interpretado por Golbery ou por qualquer outro militar como uma provocação. Foi preciso muito argumento para convencer Vlado. O que o convenceu mesmo foi a garantia que me deu Cacá Diegues (que estivera um pouco antes com Glauber na Itália, sumido depois da carta), de que o que estava escrito era sincero, fidedigno e para valer, ou seja, para publicar.
Naqueles tempos difíceis de viver e trabalhar, Vlado soube viver, trabalhar e morrer com dignidade. Ele é para mim o símbolo da abertura cultural que estava contida naquela edição de Visão, assim como quase 20 meses depois iria se transformar no mártir da abertura jornalística. Não há dúvida de que foi a partir do choque causado por sua morte – com toda a indignação e revolta que espalhou – que a imprensa brasileira tomou coragem de avançar até o horizonte do possível.”
Biografia
Vlado começou sua carreira de jornalista em 1959 como repórter de O Estado de S. Paulo, logo depois de se formar em Filosofia na Universidade de São Paulo. Ali ficou até 1965, tendo sido um dos repórteres destacados para a equipe pioneira que foi instalar a sucursal do Estado em Brasília, nos primeiros meses de vida da nova Capital. Exerceu também as funções de redator e, interinamente, de chefe de reportagem do jornal.
Na televisão, ele entrou em 1963, acumulando com o trabalho de jornal, como redator e secretário do “Show de Notícias”, o telejornal diário do antigo Canal 9 de São Paulo,TV-Excelsior.
Essa experiência, que o colocou em contato, pela primeira vez com o telejornalismo, foi a base para o passo seguinte de sua carreira. Em 1965, Vlado foi para Londres, contratado pelo Serviço Brasileiro da BBC, como produtor e locutor, prestando colaboração também ao Departamento de Cinema e TV do Central Office of Information, órgão do Foreign Office, na produção e apresentação de programas sobre a Inglaterra, para a televisão brasileira.
Foi ainda durante sua estada em Londres – onde nasceram seus dois filhos, Ivo, de 9 anos, e André, de 7 – que Vlado aprimorou seus conhecimentos de televisão e cinema, cursando, como bolsista indicado pela Secretaria da Educação de São Paulo, o Film and Television Course for Overseas Students, no Centro de Televisão da BBC.
Em sua volta ao Brasil, em 1968, Vlado foi trabalhar na revista Visão, onde ficou durante 5 anos, como editor cultural.
Em 1972, foi chamado para secretariar o recém-lançado telejornal “Hora da Notícia” e para a Fundação Armando Álvares Penteado, onde deu aulas de telejornalismo na mesma época, e para a Escola de Comunicações e Artes da USP.
Na TV-Cultura, para onde tinha retornado em setembro, agora como diretor do Departamento de Telejornalismo, Vlado anteviu, finalmente, a possibilidade de comandar um trabalho dentro do conceito que tinha (ver matéria ao lado) da grande responsabilidade social do jornalismo na TV. Não lhe deram tempo.
Na noite do dia 24 de outubro de 1975, o jornalista apresentou-se na sede do DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações/ Centro de Operações de Defesa Interna), em São Paulo, para prestar esclarecimentos sobre suas ligações com o PCB (Partido Comunista Brasileiro). No dia seguinte, foi morto aos 38 anos.
Segundo a versão oficial da época, ele teria se enforcado com o cinto do macacão de presidiário. Porém, de acordo com os testemunhos de Jorge Benigno Jathay Duque Estrada e Rodolfo Konder, jornalistas presos na mesma época no DOI/CODI, Vladimir foi assassinado sob torturas.
Como Herzog era judeu, o Shevra Kadish (comitê funerário judaico) recebeu o corpo e, ao prepará-lo para o funeral, o rabino percebeu que havia marcas de tortura no corpo do jornalista, prova de que o suicídio tinha sido forjado.
A morte de Herzog foi um marco na ditadura militar (1964 – 1985). O triste episódio paralisou as redações de todos os jornais, rádios, televisões e revistas de São Paulo. Os donos dos veículos de comunicação fizeram um acordo com os jornalistas. Todos trabalhariam apenas uma hora, para que os jornais e revistas não deixassem de circular, e as emissoras de rádio e televisão continuassem com suas programações.
No dia 31 de outubro de 1975, foi realizado um culto ecumênico em memória de Herzog na Catedral da Sé, do qual participaram 8.000 pessoas, num protesto contra o regime.
*Com IG, TV Globo e Instituto Vladimir Herzog.