08/08/2022
Por Rodrigo Fonseca, crítico de cinema e âncora do CineClube Macunaíma
Rodrigo Fonseca
Existem sete festivais na indústria do cinema cuja função é referendar correntes estéticas, aclamar vozes autorais e selar tendências de mercado exibidor, como fazem anualmente as maratonas audiovisuais competitivas de Berlim, Cannes, Veneza, Roterdã, Toronto, San Sebastián e, neste momento, Locarno.
Localizada a cerca de duas horas de ônibus de Milão, a cidade situada na chamada “porção italiana” da Suíça hospeda, há 75 verões, um evento dividido em diferentes seções de projeção, debate e reflexão, convidando longas-metragens do mundo todo para concorrerem ao Leopardo de Ouro. Em 2022, um ano depois de ter renovado sua programação e seu conceito estético, com a festejada escolha do crítico Giona A. Nazzaro como seu diretor artístico-, Locarno vive um momento de apogeu qualitativo, de namoro com Hollywood e com vedetes do radicalismo experimental, a um só tempo. Tanto que, em sua abertura, o povo de Ascona, Gordola e outras cidades locais correram para a Piazza Grande, a praça mais famosa desse vale suíço, para conferir o novo filme protagonizado por Brad Pitt: “Trem-Bala” (“Bullet Train”). Passou no evento de quarta-feira, cercado de pompas, e estreou entre quinta e sexta pelo planisfério cinéfilo, faturando US$ 62 milhões em sua arrancada.
Ano passado, ainda sob a sombra da pandemia, quando todas as entradas nas sessões do evento dependiam de testes de covid-19, a abertura foi feita por um thriller Netflix: “Beckett”. Agora, Nazzaro, cujo trabalho se desenha numa conversa fina com narrativas de gênero , resolveu apostar num longa que pode desarranjar as cifras das bilheterias mundiais. E nem tanto pelo carisma de Pitt, que é um chamariz tamanho GG, mas nunca foi infalível na caça a espectadores, e, sim, pelo prestígio pop de seu realizador: David Leitch.
Baseado em um romance de Kôtarô Isaka, já lançado no Brasil, a produção, que estreia em circuito nacional na quinta-feira, é um conflito entre diferentes assassinos de aluguel cujas missões se confundem. E a forma de dar a essa trama movimentada um coeficiente de surpresa foi a convocação de Leitch, um dublê de formação que revolucionou as cartilhas da ação ao estrear na direção com “De Volta Ao Jogo” (2014), o título que iniciou a franquia “John Wick”, com Keanu Reeves.
Depois dela, o cinema de pancadaria reciclou-se esteticamente, passando a apostar em narrativas cinemáticas, em que coreografias de luta inusitadas e ângulos de câmera capazes de desafiar as leis da física dão as cartas. E Leitch comprovou sua tarimba ao dirigir adaptações de HQ como “Atômica” (2017), com Charlize Theron, e “Deadpool 2”, com Ryan Reynolds. Estima-se que “Trem-Bala” possa chegar ao topo das maiores arrecadações de 2022, lideradas desde maio por “Top Gun: Maverick”, com Tom Cruise. Pitt, que atuou com ele em “Entrevista com o Vampiro”, em 1994, pode ser seu maior rival.
“É importante valorizar o que está por dentro do casulo que se chama ‘filme de gênero’, mas não se bastar às suas convenções, pois o que importa não o filão tal ou tal… é cinema, bom e vivo, que pode ser ‘Tristana’ ou pode ser um filme de ninjas de Sam Firstenberg. O que importa é o que podemos extrair de linguagem dos processos fílmicos”, disse Nazzaro em entrevista via Zoom para a ABI.
Gionna A. Nazzaro
Após Locarno, Leitch se enfurna na direção do longa “The Fall Guy”, uma adaptação da série homônima, aqui chamada de “Duro na Queda”, com Lee Majors no papel do dublê Colt Seavers. Já Giona, lá em terra suíças, dedica-se à competição pelo Leopardo de Ouro, que tem entre seus concorrentes o longa “Regra 34”, de Julia Murat, de passagem por aqui nesta quarta. É uma trama sobre uma futura advogada que se envolve em práticas sexuais de BDSM (bondage, com a mescla de prazer e dor).
Conheça a seguir os filmes de mais relevância nesta seleção, até agora:
FAIRYTALE, de Alexander Sokurov: Uma das vozes mais polêmicas da Rússia nas telas, o diretor de “Moloch” e “Fausto” (Leão de Ouro de 2011) volta às telas com uma delirante alegoria com base e imagens de arquivo a partir das quis grandes líderes do século XX, a maioria ligados a II Guerra, como Stalin e Hitler, encontram-se numa espécie de purgatório.
DANS LA NATURE, de Marcel Barelli: Uma hilária animação contra a homofobia centrada na conexão afetiva entre felinos, carneiros e pássaros do mesmo sexo. É um exemplar do fino cinema animado suíço.
BOWLING SATURN, de Patricia Mazuy: Eis aqui “O” filme da competição oficial de Locarno até o momento. A diretora de “Paul Sanchez Está De Volta” (2018) regressa com um thriller de tons existencialistas, falando de fraternidade. Nele, um oficial da polícia francesa, Guillaume (Arieh Worthalter), e seu irmão picareta, Armand (Achille Reggiani), entram em conflito depois de herdarem um clube de boliche.
DRII WINTER (A PIECE OF SKY), de Michael Koch: Exibido em fevereiro na Berlinale, de onde saiu com uma menção honrosa, este drama mapeia a Suíça rural a partir da relação entre um criador de gado e uma jovem funcionária dos Correios, que é mãe solteira. O amor entre eles vai ser atropelado por um tumor no cérebro do rapaz.
UM LUGAR BEM LONGE DAQUI (“Where The Crawdads Sing”), de Olivia Newman: Cifras da ordem de US$ 70 milhões em sua bilheteria fazem deste melodrama com cara de novela das seis um fenômeno popular. A trama vem do romance homônimo de Delia Owens. Daisy Edgar-Jones brilha em cena como uma jovem catadora de mexilhões, Kya, que é acusada de assassinato. Tudo indica que ela matou um bad boy local. Mas um advogado aposentado (David Strathairn) vai ajudá-la.
OBJECTOS DE LUZ, de Marie Carré e Acácio de Almeida: Uma radiografia do cinema português dos últimos 50 anos se desenha nas telas neste documentário ensaístico sobre a dimensão de transcendência da iluminação de um set. É um delicado exercício filosófico sobre a memória do audiovisual, produzida por Rodrigo Areias (de “A Távola de Rocha”). Acácio é um dos mais ativos diretores de fotografia da Península Ibérica e leva para as telas trechos de longas que iluminou de 1967 até hoje.
MEDUSA DELUXE, de Thomas Hardiman: Um concurso de beleza envolvendo extravagantes penteados e cortes de cabelos (supervisionados nos sets pelo bamba dos cabelereiros, Eugene Souleiman) é palco para um mistério ligado ao assassinato de um astro do visagismo. A morte dele deflagra disputas de ego, paixões e desabafos, registrados pela câmera nervosa do diretor de fotografia Robbie Ryan com planos-sequência que desafiam a lei da física.