Um debate urgente. Mirar o futuro para acertar o presente


21/09/2021


João Brant, Doutor em ciência política, é pesquisador em políticas de comunicação e cultura. Foi secretário-executivo do Ministério da Cultura (2015-16) no governo Dilma Rousseff.

Nos últimos 30 anos, o Brasil e o mundo passaram por uma revolução nas comunicações, com a popularização da internet e dos serviços digitais. A forma como a população se informa e os formatos de sociabilidade política foram transformados radicalmente. Meios de comunicação tradicionais seguem tendo impacto significativo na formação da opinião pública, mas as mudanças de hábito da população e os rearranjos econômicos do setor de comunicações criaram desafios novos, que não estavam no horizonte num longínquo 1988, quando a Constituição Federal foi aprovada.

O que não se transformou desde 1988, contudo, foi o vácuo regulatório no setor de comunicações. Diferentemente de quase todas as democracias consolidadas, o Brasil não tem um órgão regulador independente que atue sobre o setor. E a lei que dá as regras para o funcionamento de emissoras de televisão e rádio é de 1962, tendo sido modificada pontualmente desde então.

A ausência de regulamentação da Constituição em aspectos fundamentais faz com que o quadro institucional do país em 2021 seja o mesmo da ditadura militar. E não tem condições de dar respostas institucionais adequadas aos desafios do presente e do futuro. O país não acertou suas contas com o século 20 e começa a acumular débitos com o século 21.

Valores fundantes

Neste cenário, é preciso entender em quais valores queremos fundar os processos regulatórios da comunicação, e mirar o futuro para conseguir acertar o presente.

O direito de o cidadão estar bem informado para tomar decisões e a liberdade para exercer críticas aos governantes são reconhecidos como essenciais em todas as teorias democráticas. Isso faz da liberdade de opinião e expressão um dos pilares da democracia. Contudo, ela precisa ser reconhecida não apenas na sua dimensão individual, mas também na coletiva, de forma a garantir que a sociedade tenha acesso a informações plurais e diversas.

Há décadas existe o reconhecimento por parte do sistema ONU de que pluralismo e diversidade precisam ser garantidos por instrumentos como meios públicos e regulação democrática dos sistemas de comunicação. Os que acusam censura quando se fala em regulação da comunicação desconhecem, ou fingem desconhecer, essa realidade.

Ao mesmo tempo, as mudanças no ambiente informacional renovaram e ampliaram os desafios de se garantir uma comunicação democrática. Embora o número de produtores de informação tenha aumentado, o consumo efetivo de informação tornou-se, para grande parte da população, menos diverso e menos plural.

Os motivos pra isso estão na ampliação da personalização e segmentação na rede, principalmente por meio do uso de algoritmos e inteligência artificial. Esse quadro é fruto da consolidação de um modelo de negócio baseado na coleta e tratamento de dados pessoais em busca incessante pela atenção e engajamento dos usuários. Além disso, a confiabilidade da informação passou a ser uma enorme questão, já que a arquitetura das redes sociais favorece a difusão de notícias falsas e enganosas.

Esses impactos na formação de uma esfera pública democrática vieram junto com outros impactos igualmente significativos de natureza geopolítica, econômica, política, social e cultural. Ao pensar a regulação das comunicações no Brasil, é preciso considerar uma agenda ampla, que dê conta de enfrentar esses diferentes impactos, fortalecer iniciativas brasileiras e garantir soberania econômica, informacional e cultural.

Qual é a agenda?

Do ponto de vista político, isso implica discutir as políticas de moderação de conteúdo pelas plataformas digitais, a exemplo do que fazem hoje o Reino Unido e a União Europeia. Significa também atualizar as políticas de garantia de pluralismo e diversidade em todos os meios de comunicação, e incorporar o desafio do enfrentamento à desinformação.

Do ponto de vista econômico, é preciso enfrentar desde a agenda de tributação das grandes plataformas (cujo modelo gera elisão fiscal) até a transferência de receita de publicidade para empresas estrangeiras como Google e Facebook, que gera perda de recursos fundamentais para a sustentabilidade do jornalismo. Passa também por atualizar o debate sobre concentração econômica, com a identificação de mercados relevantes e a atualização das medidas de promoção à competição.

Do ponto de vista social, é preciso enfrentar o discurso de ódio, a violência online contra mulheres, negros e segmentos LGBTQI e a discriminação algorítmica. É preciso também garantir a proteção de direitos das crianças e adolescentes em todas as mídias. Finalmente, é preciso garantir a proteção e a promoção da diversidade cultural.

A partir dessas bases o Brasil pode, em um novo ciclo democrático que se inicie em 2023, ao mesmo tempo acertar as contas com o passado e se antecipar aos desafios do futuro na comunicação.


Publicado nop portal da Fundação Perseu Abramo