16/10/2020
Há um ano, exatamente no dia 15 de outubro, o site da ABI trazia no destaque a triste notícia: “Carlos Nobre: o Rio perde parte da cultura negra”.
Carlos Nobre, jornalista, professor da PUC-Rio, onde dava aula sobre Jornalismo e racismo, foi um profissional comprometido com a defesa dos direitos humanos, cidadania e igualdade. Em artigo, o jornalista Claudio Renato Passavante faz homenagem ao colega e amigo.
O BUDA DE PORCELANA PRETA
Por Claudio Renato Passavante
Sempre vi no Carlos Nobre a imagem de um Buda rechonchudo de porcelana preta: grandão, desengonçado, risonho, generoso. Refiro-me ao Carlos Nobre que conheci, repórter de polícia, nas coberturas de rua e especialmente na viagem que fizemos em 1994 à Costa Rica, a convite da TurisRio, empresa de turismo do estado. Éramos seis jornalistas. Eu trabalhava n’ “O Globo”; o Carlos Nobre, no JB.
Imaginava uma viagem burguesa: praias quase virgens pré-colombianas habitadas por macaquinhos serelepes, drinques coloridos exóticos, sarahs janes, lambadas, flertes, cruzeiros com noite-do-comandante
Quando chegamos à América Central, a realidade: dieta à base de vitaminas, arvorismo, caminhadas forçadas, rapel, travessia de corredeiras, toque de recolher às 22 horas, obrigação de acordar às 5h. E a injunção de assinar sempre um documento, que, trocando em miúdos, dizia: se você morrer ou se ferir, a responsabilidade é sua!
– Porra, Nobre! Isso é um treinamento de guerrilha! Fiz tudo pra fugir do serviço militar, pra evitar isso…
Olhos puxadinhos, emoldurados por óculos de tartaruga, fundo-de-garrafa, Nobre explodia num riso budista, que se assemelhava ao do Muttley, do Dick Vigarista.
Tive que dividir a primeira noite de guerrilheiro numa tenda com o Carlos Nobre. Foi quando descobri que de fato ele era budista.
A lua cheia ainda espetada na noite, ele começou a recitar um mantra
– Nobre, que diabo é isso?
Rindo de sacolejar, respondeu:
– Claudinho, é pra energizar a nossa jornada…
– Puta que o pariu …
No dia seguinte, depois de uma caminhada de dez quilômetros,.tivemos que enfrentar uma corredeira. Nível quase profissional. Sem tomar uma Kaiser antes. O instrutor decidiu que Carlos Nobre ficasse no comando do barco. “Fodeu, mas antes ele do que eu…”
Na primeira remada, o barco quase adernou E o instrutor, freneticamente, começou a berrar:
– Adelante, Carlos! Adelante!
Ainda não seria dessa vez que morreríamos, porque o instrutor tomou o remo do Nobre a tempo.
Quando fizemos a tirolesa, pendurados a mais de 70 metros do chão, sobre uma densa floresta, fracassamos. Eu me enrolei no meio do caminho. O Nobre bateu com o rosto na copa de uma árvore e os óculos de tartaruga voaram. Milagrosamente, o instrutor conseguiu encontrá -los nos recônditos da selva.
No último dia, balanço de viagem, estava puto. Quando finalmente saímos para beber, bar lotado, perdi a linha:
– Isso é uma republiqueta de merda, quintal dos Estados Unidos! Um país emasculado, que se orgulha de não ter forças armadas!
O Nobre ria de chorar.
A última vez que nos vimos, há três anos, .foi num encontro casual em frente ao quartel dos bombeiros da Praça da República, centro do Rio.
– Claudinho, isso é um quintal dos Estados Unidos, um país emasculado – gargalhou.
-A gente estava em frente a uma sapataria chamada “Nem mais um passo”
– Nobre, olha que nome espetacular!
Já escritor e professor universitário, Carlos Nobre fitou a placa da loja com olhar de semiólogo
– Adelante, Carlos! Adelante!
Ele sorriu com os olhos puxadinhos de Buda crioulo.
E seguiu rumo à Glória.