16/10/2008
Colaboração de Arthur Poerner, escritor, jornalista, Conselheiro da ABI e membro da Comissão de Ética dos Meios de Comunicação da entidade
Até mesmo no Pelourinho, sorvendo batida de umbu depois de uma palestra na Universidade Católica de Salvador, a convite da UNE, foi impossível ignorar os estrépitos e as marolas do tsunami no coração do capitalismo, no “areópago do mercado mundial” do poema que Drummond dedicou ao FMI. Esse Mercado que, como Deus, mereceria inicial maiúscula padece de moléstia grave e insidiosa, conseqüência da desenfreada cobiça que estimulou nos banqueiros e especuladores, sedentos de lucros fáceis, sem trabalho, a qualquer preço.
O diagnóstico que grassava entre os turistas das mesas próximas já era dos mais sombrios: crise sistêmica, isto é, bem mais ampla e generalizada do que as periféricas que acometeram alguns países e regiões nas últimas décadas, como a da Ásia em 1997. Na medicina, equivaleria a câncer com metástase. As células afetadas que migram, há ano e meio, da lesão inicial, no sistema de crédito imobiliário e hipotecário dos Estados Unidos estão provocando a maior crise do sistema desde a Grande Depressão que se seguiu ao crash da Bolsa de Nova York em 1929, com a derrota do capital financeiro e o “formidável enterro” de uma quimera que não é a única nem a “última” — como a do Augusto dos Anjos — do capitalismo, mas, certamente, uma das mais resistentes: Ele, o Mercado, seria auto-regulável. Falácia promovida, no início dos anos 80, conforme o megainvestidor húngaro-americano George Soros, a “dogma ideológico”, pelo Presidente Ronald Reagan e pela Primeira-ministra britânica Margareth Thatcher.
O candidato republicano John McCain perdeu logo alguns pontos na disputa com o democrata Barack Obama por insistir na tese da solidez dos fundamentos da economia norte-americana, um dos sagrados mandamentos dos fundamentalistas do Mercado, os adoradores do Charging Bull, o touro de bronze que simboliza a força do capitalismo no distrito financeiro nova-iorquino. O que eles estarão pensando agora, depois da estatização de bancos e do pacotão antifalências, socorro governamental, à custa dos contribuintes (socialização dos prejuízos), de US$ 850 bilhões para a compra dos papéis podres das subprimes, que os economistas estão chamando de “lixo tóxico” — para Soros, um band-aid para quem está com hemorragia? E as receitas neoliberais que nos prescreviam? Será que os “irmãos do Norte”, como eram chamados pelos “revolucionários” da ditadura, entendem de finanças tanto quanto de direitos humanos e respeitam os princípios da economia tanto quanto o Direito Internacional e a autodeterminação dos povos?
Sei que, lá do alto dos templos de Wall Street, Ele, que tudo vê, sabe, mercantiliza e coisifica, inclusive eu e o umbu, pode não gostar, mas quero mais uma batida. Que desce ainda mais redonda quando me lembro de que, antes de ACM, a Bahia viveu sob o reinado de Juraci Magalhães, também criador, em 1965, de um dogma ideológico, sacralizado pela ditadura e responsável por uma era de vassalagem em nossa política externa: “O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil.” Não era, como também não é necessariamente mau para nós o que é ruim para eles.
Com a redução da nossa vulnerabilidade externa nos governos Lula, podemos, ao longo do maremoto, diminuir, com os três outros emergentes do Bric (Rússia, Índia e China), a distância que nos separa dos países ricos. Desde 2003, a dependência do Brasil para os EUA em relação às exportações caiu de mais de 23% para 15%; na China, é inferior a 3%. E é por isso que o vagalhão chega ao Pelô como marola, sem os redemoinhos em que se afogam os bancos norte-americanos. Aqui, o processo de submissão ao Consenso de Washington, iniciado com a atabalhoada abertura da economia no governo Collor e continuado com as privatizações e desnacionalizações de Fernando Henrique, ainda pôde ser contido.
Embora o colapso de Wall Street assinale a decadência do império norte-americano e a História já tenha demonstrado que hegemonias e sistemas não são eternos, ainda não é hora de comemorar o acerto das previsões de Marx quanto ao fim do capitalismo. Mesmo porque é impossível prever que sistema o sucederia. Para o cientista político norte-americano Imannuel Wallerstein, no momento, “a única alternativa no cardápio é o Fórum Social Mundial”.
No que se refere à hegemonia, que ele define como “um fenômeno do sistema capitalista mundial”, a China desponta como favorita, inclusive porque já vem promovendo a reconversão da sua economia para o mercado interno. A se confirmar o prognóstico, que o Embaixador brasileiro Miguel Osório de Almeida já fazia, baseado em projeções econométricas, há algumas décadas, eu me permitirei uma profecia: a Grande Muralha desbancará a Disneylândia como supremo objetivo de consumo cultural da nossa classe média.
Nada mais havendo a festejar por enquanto, peço a saideira ao dono da Cantina da Lua, Clarindo Silva, que acumula a função de Rei Momo do carnaval baiano. Os 70 anos do monarca não foram objeto de contestação, mas os seus 60 e poucos quilos, num físico que lembra os maratonistas etíopes e quenianos, causaram indignação entre os obesos candidatos soteropolitanos que derrotou na eleição. Será que, na essência, não é este o mal que acomete o Mercado: o excesso de gordura, sem sustentação muscular? Com a falta de lastro em bens reais, e também — e não menos importante — na ética?