02/09/2022
Por Eleonora de Lucena e Rodolfo Lucena, em Tutaméia
“Bolsonaro dirige a maior organização criminosa familiar do universo”, apontou o jurista José Carlos Dias, ministro da Justiça no governo de Fernando Henrique Cardoso, falando no encerramento da sessão de leitura da sentença do Tribunal Permanente dos Povos sobre as ações do atual presidente do Brasil durante a pandemia. O ato solene foi realizado na manhã desta quinta-feira (1), na Sala dos Estudantes da Faculdade de Direito da USP, com a participação via internet dos integrantes do TPP que vivem em outros países.
A sentença reconhece que a conduta de Bolsonaro, “consistente em ter provocado dolosamente a morte de várias dezenas de milhares de pessoas mediante sua decisão tomada enquanto chefe do Poder Executivo Federal, ao rechaçar a política de isolamento, prevenção e vacinação frente à pandemia de Covid-19, configura um crime contra a humanidade”.
Reconhece ainda que a conduta do presidente, “consistente em incitar permanentemente a violência e estimular pública e continuamente a discriminação desumana de boa parte do povo brasileiro, constitui uma ameaça para esses grupos que resulta em uma redução do seu espaço social, configurando uma grave violação de direitos humanos.”
A sentença assim explica a tipificação dos crimes de Bolsonaro:
“O crime pelo qual o presidente Bolsonaro foi responsável consiste em uma violação sistemática dos direitos humanos, por ter provocado a morte de dezenas de milhares de brasileiros devido à política insensata que promoveu em relação à pandemia de COVID 19. Contrariando a posição unânime de cientistas de todo o mundo e as recomendações da Organização Mundial da Saúde, Bolsonaro não só fez com que a população brasileira não adotasse as medidas de distanciamento, isolamento, proteção e vacinação destinadas a limitar a infecção, como várias vezes criou vários obstáculos a elas, frustrando as tentativas de seu próprio governo de estabelecer políticas de alguma forma destinadas a proteger a população do vírus.”
E prossegue:
“Como resultado dessa conduta, calcula-se – com base na comparação entre o número de óbitos no Brasil e o número de óbitos em outros países que adotaram as políticas anti-covid-19 recomendadas por todos os cientistas – que morreram no Brasil cerca de 100.000 pessoas a mais do que teriam falecido em decorrência de uma política mais responsável. É claro que esse número é bastante aproximado: pode ser um número menor, mas também um número maior. O certo é que a absurda política de saúde do presidente Bolsonaro causou dezenas de milhares de mortes. Pois bem, tal conduta foi qualificada, pela sentença, como crime contra a humanidade. São tais, aliás, diz o art. 7º, parágrafo 1º, art. k) do Estatuto do Tribunal Penal Internacional, além do homicídio, extermínio e outros crimes, todos os “outros atos desumanos de natureza similar destinados a causar intencionalmente grande sofrimento ou grave dano à integridade física ou à saúde física ou mental”. A responsabilidade pessoal do presidente Bolsonaro por um crime contra a humanidade, argumenta a sentença, foi comprovada tanto sob o aspecto objetivo quanto subjetivo do delito.”
Para ter acesso à íntegra do documento e de todo o trabalho da 50ª sessão do Tribunal Permanente dos Povos, visite o site da Comissão Arns CLICANDO AQUI.
Confira a seguir texto lido por Paulo Sérgio Pinheiro, que presidiu a sessão solene.
AUTORITARISMO, RACISMO, VIOLÊNCIA
Paulo Sérgio Pinheiro
Neste momento em que se conclui a 50ª seção Autoritarismo e Pandemia do Tribunal Permanente dos Povos, TPP, importa revermos o contexto no qual se situam a ata de acusação e a relevância da sentença.
A formação do povo brasileiro sempre esteve marcada pela desumanização de pessoas ou categorias de pessoas como menos humanas ou não humanas. Essa desumanização está associada à discriminação racial e à violência contra os negros escravizados e os povos indígenas.
O racismo no Brasil contemporâneo volta e meia é atribuído ao legado da escravidão, como se o passado se prolongasse automaticamente no presente. Na realidade não se trata de herança, mas de um componente contínuo que se atualiza nos diversos períodos do Brasil República
A democracia no Brasil nunca foi capaz de assegurar para a população negra e para os povos indígenas a plena proteção de seus direitos fundamentais. O funcionamento das instituições do Estado continuou a ser sobredeterminado pela desumanização e pelo racismo. Mas não há dúvida que na esteira das constituições de 1946 e de 1988, vários governos dentro do estado de direito, como os três últimos virtuosos de Fernando Henrique, Lula e Dilma, se considerados sob perspectiva dos direitos humanos, aprofundaram a democratização da democracia
Apesar das políticas afirmativas e da relevantíssima lei de cotas, em pleno século XXI, os brasileiros negros estão quase inteiramente ausentes de todas as carreiras de poder – legislativo, judiciário, tribunais superiores, ministério público, alto comando das forças armadas, docência universitária, postos executivos nas empresas. E ainda estão nos escalões mais baixos de todas as estatísticas sociais, sendo as mulheres negras as mais espoliadas. Nas cidades, nas interações sociais do dia a dia e especialmente na periferia das grandes metrópoles, as polícias militares impõem um apartheid contra os negros, perpetrando o maior número de execuções extrajudiciais no mundo
Em relação aos povos indígenas, no período republicano, prevaleceu uma contradição entre políticas de proteção e incitação ao genocídio continuada. Violações de seus direitos não foram esporádicas nem acidentais como mostrou o relatório da Comissão Nacional da Verdade: são sistêmicas, resultam diretamente de políticas estruturais de Estado, que respondem por elas. Omissão e violência direta do Estado sempre conviveram na política indigenista, ainda que seus pesos respectivos tenham sofrido variações.
A pandemia de Covid 19 escancarou a situação fragílima da população negra e dos povos indígenas perante o virus. Essa revelação brutal ganhou mais nitidez depois das eleições de 2018 com o assalto às instituições de Estado por um governo de extrema-direita de corte neo- fascista.
Como demonstrou a ata de acusação apresentada ao TPP pela APIB, Coalisão Negra por Direitos, Internacional de Serviços Públicos e Comissão Arns, no segundo ano de governo de extrema direita, a pandemia de Covid 19 foi oportunidade para o agravamento das violações de direitos em curso no país, como já indicamos há pouco.
Pediu-se ao TPP que o Presidente Bolsonaro fosse condenado individualmente pela prática de crimes contra humanidade, reconhecendo os efeitos desproporcionais dessa pandemia sobre a população negra, profissionais de saúde, povos indígenas e pela prática de crime de genocídio contra os povos indígenas. Esperemos que a sentença que daqui a pouco será apresentada acate essa acusação.
Essa sentença é exarada por um mundialmente reconhecido tribunal de opinião e poderá se constituir como a única condenação dos crimes internacionais cometidos pelo presidente Bolsonaro. Além desse valor, essa sentença se somará à queixa contra ele submetida pela Comissão Arns e a APIB ao Tribunal Penal Internacional, em Haia, que está em exame pelo secretariado do mesmo.
A sentença do TPP se situa na esteira da “Carta às brasileiras e aos brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito! ” e da carta das Entidades “Em Defesa da Democracia e da Justiça” publicadas no dia 11 de agosto aqui mesmo na Faculdade de Direito, em defesa do constitucionalismo democrático. E esse julgamento final do TPP ocorre a uma semana do 7 de setembro, no qual a comemoração dos 200 anos de nossa independência será sequestrada, como já foi anunciado, por um governante que ameaça um golpe de estado. Será a primeira vez depois de todos os governos democráticos após da carta de 1946 que as três armas das forças armadas apoiarão e participarão de um ato de campanha política, possivelmente incorrendo em grave ilegalidade.
A reunião de hoje nesse espaço de grande dignidade e bravura como é esta Sala dos Estudantes, assume, contra as ameaças de retorno a ditadura, um inegável conteúdo de conclamação à resistência democrática.
Abaixo o golpe de Estado! Viva a democracia! Viva o Brasil!