Santos, Juca Kfouri e o futebol contra o jornalismo


19/04/2022


Por Martín Fernandez, publicado no portal O Globo

Uma linha perigosa foi cruzada nesta semana

Uma linha perigosa foi cruzada nesta semana, quando o Santos impediu jornalistas do portal UOL de cobrir presencialmente um jogo contra o Universidad de Quito pela Copa Sul-Americana. A medida foi tomada como retaliação ao veículo por causa de um texto publicado dias antes pelo colunista Juca Kfouri. Ao comentar a atuação do Santos contra o Fluminense pelo Campeonato Brasileiro, Juca se referiu ao clube como “Ninguém FC” —uma ironia com o fato de o time não ter dado um chute sequer a gol no segundo tempo; por ter, segundo o colunista, “jogado como ninguém”.

As justificativas apresentadas pelo Santos para sustentar sua decisão não param de pé. “Queremos um posicionamento do UOL se concorda ou não (com Juca), por ser corresponsável na publicação do texto. Se concordar, o UOL não será bem-vindo à casa do Santos.” Na prática, o Santos exige que uma publicação censure publicamente um jornalista remunerado por ela para emitir opinião. Consequências práticas: os repórteres do portal estão proibidos de entrar na Vila Belmiro para produzir um noticiário melhor para os torcedores do Santos. E Juca Kfouri, ainda bem, continua escrevendo o que quiser.

Mais preocupante do que a atitude do Santos foi a repercussão entre alguns clubes da elite do futebol brasileiro. Incapazes de sentar à mesma mesa para discutir soluções conjuntas para seus problemas comuns, paralisados pela onda de violência da qual são vítimas, os clubes rapidamente se uniram para celebrar um ataque ao jornalismo. Nas redes sociais, infelizmente o único termômetro disponível para medir essa temperatura, a aprovação foi quase total. Um deleite para quem já odeia a categoria. Outra consequência triste, mas de nenhuma maneira surpreendente, foi constatar quanta gente razoável topa sacrificar princípios quando o clube do coração está envolvido.

O debate em torno do que seria um “desrespeito” ao clube é estéril. É possível concordar com os cartolas do Santos que usam esse argumento — mas isso nem deveria estar em discussão. É natural que torcedores se incomodem e manifestem sua irritação. Mas dirigentes não deveriam tomar decisões tão importantes e tão equivocadas sob influência da gritaria das redes sociais. Levada ao limite e transportada para outras áreas em que há atritos entre jornalistas e o objeto de cobertura (governos, empresas, autoridades, a lista é infinita) a aplicação desse raciocínio inviabilizaria a existência da atividade.

A situação é especialmente lamentável porque esta gestão do Santos, que está no segundo de três anos de mandato, tem se pautado pela transparência — algo que já foi elogiado recentemente neste espaço — e por ações que podem soar impopulares hoje, mas tendem a tornar melhor o futuro do clube. O episódio não combina com essa trajetória.