03/05/2024
De O Globo
Foto: Agência Globo
Em um ano em que ao menos dois bilhões de eleitores vão às urnas, em pleitos que acontecem em mais de 50 países, a jornalista e ativista Maria Ressa alerta para os riscos da deterioração nos mecanismos de controle e segurança das redes sociais, e defende que é preciso acabar com a “impunidade” das big techs. Laureada com o Nobel da Paz, em 2021, a filipina é uma das vozes mais importantes do mundo na defesa da liberdade de imprensa e na luta contra a desinformação.
Em entrevista ao Globo e ao Valor, ela avalia que as mudanças promovidas no X (ex-Twitter) pelo empresário Elon Musk “puxaram para baixo” os padrões de todo o setor, que segue como “a indústria menos regulada do mundo”, acrescenta. A redução na exibição de notícias nas redes e a disseminação da inteligência artificial (IA) nas plataformas acrescentam mais elementos de alerta para a qualidade do conteúdo que circula nas plataformas, de acordo com a jornalista.
Maria Ressa esteve no Brasil esta semana para participar de evento paralelo do G20, em São Paulo, sobre Integridade da Informação e Confiança no Ambiente Digital. O tema é um dos focos do Grupo de Trabalho de Economia Digital do bloco.
A CEO do Rappler, veículo de notícias digital da Filipinas, sugere, ainda, que o Brasil, na presidência do G20, pode ser um agente importante no debate global sobre a regulação das plataformas digitais. Ela ressalta que é preciso uma articulação global para enfrentar a questão.
Este ano quase metade da população global vai às urnas em eleições que acontecem em dezenas de países. As plataformas estão mais preparadas para os riscos de desinformação?
Na verdade, elas estão piores.O ano de 2024 será um ponto de inflexão da democracia. Ainda assim, as pessoas vão às urnas com muito menos barreiras de proteção. Nunca estivemos tão despreparados. O primeiro motivo para isso é a compra do Twitter (agora chamado X) pelo Elon Musk, com a demissão de toda a equipe de segurança e a revogação de medidas de moderação. O que aconteceu é que as outras plataformas, em vez de elevarem seus padrões, foram arrastadas por Musk para o inferno. Elas pioraram. Outro motivo é o que chamo de Operações de Informação. O poder geopolítico está intensificado. Assim, a propaganda e a guerra de informação estão atacando no nível celular das democracias. Em terceiro lugar, estamos recebendo menos notícias nos nossos feeds. A Meta, uma das maiores distribuidoras de informações do mundo, começou a restringir a exibição de notícias no feed. A queda foi de 50% a 90% em relação ao que eles exibiam. O golpe fatal virá com a desativação do CrowdTangle (a plataforma permite análise do que acontece com conteúdo público nas redes da Meta) em agosto, o que vai tornar mais difícil monitorar o que eles têm feito.
Você tem levantado há pelo menos oito anos o alerta sobre como o extremismo disseminado nas redes pode minar as democracias. Não houve avanços?
Não. Essa ainda é a indústria menos regulada do mundo. É como se fosse uma empresa farmacêutica e não tivesse nenhuma lei a seguir. A empresa vai para a praça pública e dá a droga ‘A’ para uma metade e a droga ‘B’ para a outra. Todas as pessoas que tomaram a droga A morreram? ‘Sinto muito’, ela diz. A impunidade é absoluta. Vamos lembrar o que aconteceu em Myanmar, em 2017 (o Facebook foi acusado de ter tido papel significativo na disseminação de ódio e desinformação que contribuiu para o genocídio contra a minoria Rohingya). A ONU e a Meta enviaram equipes diferentes para o país e chegaram à mesma conclusão, mas nada foi feito. Os governos democráticos abdicaram da responsabilidade e permitiram que as big techs tomassem as decisões. E o que elas estão fazendo? A vigilância pelo lucro. Todos os dias que governos democráticos não controlam as big techs, os próprios governos e as pessoas se enfraquecem. É uma guerra assimétrica. A regulação é a nossa única esperança em um cenário global.
Você acredita que a criação de uma governança global das plataformas digitais é possível?
Sim, e é essa parte da razão pela qual estou em São Paulo. O que eu espero é que o Brasil, em parte pela presidência no G20, possa realmente endereçar demandas. Vou começar pelo que deveria ser um ponto de partida: nós devemos acabar com a impunidade das big techs.
Como fazer isso?
Primeiro, os Estados Unidos deveriam revogar a seção 230 do Ato de Decência nas Comunicações, de 1996 (a lei garante que as plataformas não se responsabilizem pelo conteúdo que propagam). Eu disse isso no meu discurso no Nobel. A premissa ali está completamente errada. Essas empresas são publishers e, mais do que publishers, elas determinam o que terá a distribuição mais ampla, o que incluiu insuflar o medo, a raiva e o ódio. Um estudo do MIT de 2018 mostrou que as mentiras espalham-se seis vezes mais rapidamente do que os fatos. É um design projetado para manipular nossas emoções, e que está matando a realidade. Esse então é o primeiro ponto: reformar ou revogar a seção 230. Além disso, temos em setembro o encontro da ONU para lançar o Pacto Digital Global. O plano tem sido desenhado também pelo Fórum de Governança da Internet, que conta com 150 grupos regionais. É a sociedade civil surgindo e trabalhando com governos porque temos que encontrar maneiras de trazer de volta a integridade da informação. Precisamos de uma articulação global para isso.
Qual o papel do Brasil nesse cenário?
O Brasil está avançando dentro dos parâmetros do G20, incluindo a abertura para consultas sobre o tema. Eu espero que isso faça a diferença, e que o Brasil assuma um papel de liderança para o Sul Global. Até porque vocês são um país que sobreviveu ao autoritarismo, certo? Basta lembrarmos o que houve no 8 de Janeiro. Existem lições para o restante do mundo.
Há algum modelo de regulação internacional que poderia ser aplicado para as big techs?
Ainda não existe. E essa é parte da razão pela qual estou bastante aflita. Porque, agora, as empresas de tecnologia dizem que, bem, a responsabilidade é dos usuários. Essa impunidade deve parar. E cada um dos países tem a responsabilidade de fazer isso. As empresas não deveriam estar ganhando dinheiro à custa de danos aos cidadãos.
Que complexidade a expansão da inteligência artificial (IA) generativa traz para esse cenário?
Vai ser significantemente pior. Na verdade, já está ficando pior. Como é muito fácil você ter conteúdo de baixa qualidade nesses sistemas e porque há poucas salvaguardas (de segurança), a IA generativa vai confundir as pessoas.É como se houvesse 20 pessoas em uma sala e você personalizasse a realidade para cada uma das 20 pessoas. Estamos vivendo algo assim, um desdobramento da ideia de personalização.
Qual o impacto da IA generativa no ecossistema de notícias?
A IA generativa poderá retirar tráfego dos produtores de notícias. Basta olhar para algo chamado Search Generative Experience (ferramenta do Google que apresenta, nos resultados de pesquisa, textos gerados por IA). O SGE foi construído com base no conteúdo das buscas do Google. Acontece que se os jornais decidirem não ter seu material usado pelo SGE, eles simplesmente vão sumir das buscas. Ninguém está olhando para isso. E eu sei porque eu lidero um site de notícias. Eu acho que a única maneira de as notícias sobreviverem neste cenário é construindo nossa própria tecnologia. Vamos ter que pensar em uma espécie de sistema federado em onde as big techs não vão poder determinar as regras.
No Brasil, a Justiça teve uma série de embates recentes com Elon Musk e alguns grupos passaram a alegar que a liberdade de expressão no país estava sob ataque. Como estabelecer esse limite da moderação de conteúdo e da proteção à liberdade de expressão?
Essa não é uma questão de liberdade de expressão. É uma questão de distribuição. Qualquer um pode dizer qualquer coisa. Você tem um tio maluco que acha que a lua é feita de queijo e ele pode dizer isso. Mas o algoritmo não deveria tornar isso o destaque principal, que é justamente o que essas empresas de tecnologia fizeram. Não podemos cair nessa armadilha. Nós temos que entender que o mundo foi polarizado também por causa do que foi projetado por essas empresas de tecnologia. E elas se basearam não em criar ferramentas para fatos, mas para obtenção de lucro. A economia da indignação em que vivemos é realmente a mais eficiente para corroer democracias ao redor do mundo. Eu acho que a parte chave aqui é olhar para o mundo como ele é, polarizado. O que você está vendo é o que Sophia Noble chamou de um achatamento de significado.
Você obteve vitórias recentes na Justiça em acusações levantadas na época do então governo de Duterte. Qual é o cenário atual nas Filipinas em relação a perseguição judicial que sofreu?
Eu costumo dizer que no último governo nós estávamos no inferno. Agora estamos no purgatório. Eu comecei a ser alvo de investigações pelo governo em 2017. No ano seguinte, eles tentaram fechar o Rapper. Eram diversos inquéritos, alguns com mandados de prisão, o que me fazia ter de pagar fiança. Hoje, dos 11 casos que moveram contra mim, restam apenas dois, sendo que um deles está na Suprema Corte e o segundo foi encerrado. Só estou aqui (no Brasil) porque tive autorização da Suprema Corte para viajar. O que eu faço é seguir lutando nos tribunais. Tenho que ter fé nas mulheres e nos homens da Justiça. Eles podem ter ficado com medo em algum momento do tempo, mas ainda temos as regras da lei.