Refugiados do nazifascismo enriqueceram o Brasil


04/06/2021


Por Norma Couri, diretora da Comissão de Inclusão Social, Mulher e Diversidade da ABI, publicado no jornal Valor


“Vamos Rir” ou Rideamus em latim é pseudônimo de um famoso autor de operetas, com canções na voz de Marlene Dietrich e libretos que viraram filmes. Quando esses libretos começaram a queimar na fogueira de livros degenerados, o alemão Fritz Oliven rumou para Porto Alegre em 1939 porque o Brasil era um dos poucos países que aceitavam refugiados durante a Segunda Guerra. Foi com exílios como este que somamos arte, ciência, filosofia, cultura européiaao nosso DNA.

É esse mergulho na história que o recém-lançado Dicionário dos Refugiados do Nazifascismo no Brasil oferece em 831 páginas e 300 personagens pinçados entre os mais de 15 mil que aportaram por aqui, a maioria entre 1933 e 1945. Penetrar na vida dos outrossó aumenta nossa dívida com esses estrangeiros. Provam que a política de cancelamento e os genocidas fermentadores do ódio, intolerância e da violência existem há tempos.

Exílio nunca foi fácil desde o êxodo dos hebreus para a Babilônia. O editor do Dicionário e historiador Israel Belochcita Dante Aleghieri (1265-1321)como um dos pensadores que, ao longo dos séculos, desde Ovídio (43 a.C), e depois Victor Hugo (1802-1885), Karl Marx (1818-1883) e Trotsky(1879-1940), sofreu banimento pela ousadia de pensar, e sabia o preço de um exílio:

“Deixarás tudo o que mais entranhadamente amas, que é o primeiro infortúnio sofrido no desterro. Verás quão amargo é o pão alheio, o quão duro o caminho quando se deve subir e descer por estranha escada”.

Nunca saberemos o que a travessia custou a cada um dos nossos exilados A dor foi tanta para alguns que esse relato petrificou na memória, como contam os descendentes. Mas aqui Israel Beloch, o historiador Fabio Koifman, a jornalista Kristina Michaelis e pelo menos 15pesquisadoresjogam uma semente contra a xenofobia, o nacionalismo, a exclusão e o antissemitismo que emergemna roda do destino da humanidade outra vez.

O Dicionário leva o selo da Casa Stefan Zweig, escritor austríaco refugiado do nazismocomo Thomas Mann(1875-1955), Albert Eisntein (1879-1955), Sigmund Freud (1856-1939). Mas o único que buscou refúgio no Brasil foi Zweig em 1940.Dois anos depoisele se matou aos 60 anos com a mulher Lotte em Petrópolis. Sua casa virou Museu do Exílio, criação de Alberto Dines,autor da única biografia dosseus últimos anos,Morte no Paraíso (Rocco, 4a edição).A capa é o desenho a lápis sobre o papel que a artista plástica FaygaOstrower fez aos 14 anos durante a travessia para o exílio no Brasil em 1934.A contracapa é um trecho do livro autobiográfico de Zweig, O Mundo de Ontem (Zahar,2014):

“Eu já sabia, desde aqueles dias em Viena, que a Áustria estava perdida – mas claro, nem imaginava ainda o quanto eu perdia com isso”.

Abrigamos atores e atrizes como NydiaLicia (1926-2015), nascida Picherle de família judaica na Itália, que se casou com Sergio Cardoso. Ida Gomes(1923-2009), de sobrenome Szafran e polonesa comoBerta Loran (1926),confinada com a família no Gueto de Varsóvia quando o pai decidiu embarcar com a família para o Rio de Janeiro em 1939 onde sobreviveu trabalhando no teatro ídiche – o único irmão que não os acompanhou foicapturado e morto. Gianfrancesco Guarnieri chegou ao Brasil com dois anos de idade depois que seu pai, comunista, músico e maestro Edoardo de Guarnieri, se recusou a tocarseu Quarteto Veneziano numa festa para Mussolini e ficou impedido de trabalhar. Louis Jouvet, francês de Crozon (1887-1951) partiu com um grupo de 25 atores e técnicos para o Rio de Janeiro após a ocupa&ccedi l;ão de Paris em 1940 pelos alemães. Tanto Jouvet como Ziembinski (Zbigniew Marian,1908-1978), que fugiu para o Brasil depois que os nazistas ocuparam a Polônia, só chegaram aqui graças ao embaixador brasileiro em Vichy, Luis Martins de Souza Dantas, penalizado por fornecer mais de mil vistos a fugitivos do nazismo.

O Brasil seria mais pobre se não tivéssemos escritorescomo Georges Bernanos, Paulo Rónai ou Otto Maria Carpeaux, artistas comoEmericMarcier, Samson Flexor eFranz Krajcberg, bailarinas como Maria DuscheneseMarikaGidali.Nemcientistas, fotógrafos, inventores do nadacomo o colecionador ebanqueiroHugo Simon, acolhido sob nome falso no Mosteiro de São Bento do Rio,que se ocupou com a criação de bichos-da-seda. VierampoliciaiscomoJohan Adler,palhaços comoPhilippe-Louis Cairoli.E os filhos dos filhos do exílioficaram até hoje, nossos conhecidosAntonio Bernardo, Leon Hirszman, Cao Hamburger,Jorge Mautner, Jacques Morelenbaunm, John Neschling, André Singer,LuisSchwarcz,Alfredo Sirkis, Luiz Fux…