18/07/2021
Por DANIELA MERCIER, publicado no El Pais
“Na minha geração, ninguém vai poder falar que o negro não tem memória, porque vai ter. Eu vou fazer essa memória.”
A frase proferida em uma entrevista há um ano é de Januário Garcia. Autor de imagens que estamparam capas de discos marcantes, como Alucinação (Belchior em um close hipercolorido) e Muito (Caetano Veloso no colo de Dona Canô), ele também foi um importante fotógrafo dos movimentos negros, acompanhando manifestações e ativistas que ocuparam as ruas contra o racismo e a violência policial desde a década de setenta. Com um acervo da ordem de 65.000 arquivos analógicos, além de imagens digitais, ele tinha consciência da necessidade e da urgência de preservar seus registros e, desde julho de 2020, vinha trabalhando com acadêmicos para catalogar o seu trabalho. No último dia 30 de junho, aos 77 anos, faleceu por complicações da covid-19. A pandemia levou a vida de um dos militantes mais ativos pela história e valorização da cultura negra no Brasil e, com ele, também um pedaço da memória da luta racial dos últimos 40 anos.
A perda histórica não é banal. Não somente fotografias, mas gravações, correspondências, atas de reuniões, rascunhos de discursos, panfletos e cartazes que contam a trajetória de organizações e movimentos sociais negros do país ainda estão guardados, em grande parte, devido ao esforço pessoal de seus integrantes, ao mesmo tempo em que pesquisadores enfrentam a lacuna de registros oficiais e da grande imprensa para resgatar essas informações. A preservação da memória documental do ativismo negro está ainda mais fragilizada no Governo Bolsonaro, com a escolha de Sérgio Camargo —crítico da militância e negacionista do racismo estrutural— para o comando da Fundação Palmares, que tem entre suas missões justamente proteger a história negra. Em junho, Camargo anunciou a retirada de circulação de 95% do acervo bibliográfico da entidade, incluindo cerca de 4.000 livros, catálogos, panfletos e folhetos com temática negra, mas considerados inadequados por conterem “militância política explícita”, “demonização da polícia”, entre outros critérios. Após ação popular, a Justiça Federal do Rio de Janeiro concedeu uma decisão liminar (provisória) impedindo a doação do acervo.
É nesse contexto que três grupos de pesquisadores uniram esforços em um projeto de captação, conservação, digitalização e divulgação do acervo de entidades e militantes, lançado neste mês: o Afro Memória. A iniciativa é coordenada por Paulo César Ramos, pesquisador do Afro, o núcleo de estudos sobre a questão racial do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). Na elaboração de sua tese de doutorado sobre a mobilização contra a violência policial em São Paulo, ele conversou com ativistas sobre suas experiências. “Chegava um momento das entrevistas em que eles diziam: ‘Eu não me lembro desse detalhe’ ou ‘essa informação existe, mas eu não consigo me lembrar agora. Se você tiver interesse pode ir lá em casa pegar os papéis que eu guardei’”, conta Ramos sobre a situação que o levou a iniciar o projeto. “Chegando à casa desses militantes eu descubro que eles tinham relíquias. Em estantes, em caixas, guardadas das maneiras mais variadas”, explica o pesquisador.
A ação encabeçada pelo Afro-Cebrap é realizada em parceria com duas instituições: a Universidade da Pensilvânia, nos EUA, e a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Na instituição norte-americana, o professor Michael Hanchard desenvolve desde a década de oitenta estudos sobre os movimentos negros do Brasil e já havia iniciado um trabalho de organização de documentos e de entrevistas que resultaram, entre outras pesquisas, no seu livro Orfeu e o poder: movimento negro no Rio e em São Paulo, que ganhou edição brasileira em 2001. Já a universidade paulista possui o Arquivo Edgard Leuenroth (AEL), criado em 1974 para preservação de acervos de movimentos sociais em geral e onde toda a documentação do novo projeto está sendo abrigada.
Entre as primeiras coleções obtidas pelo Afro Memória está a de Milton Barbosa, de 73 anos, militante e dirigente histórico do Movimento Negro Unificado (MNU). Foi ele que leu o discurso que lançou o movimento nas escadarias do Theatro Municipal de São Paulo, em 7 de julho de 1978, em um ato público contra a discriminação e a violência policial que moldou a dinâmica do ativismo negro contemporâneo. Com Barbosa estavam até hoje as diferentes versões do panfleto do protesto, por exemplo. Para o pesquisador Ramos, manuscritos que geraram textos históricos, como esse, são o grande achado do projeto. “Os rascunhos que registram a evolução de uma determinada ideia e a construção de um consenso em torno de uma discussão são muito interessantes”, comenta. “A partir deles você consegue entender as crises que estavam sendo instaladas.”
As estratégias de articulação dos movimentos e seus impasses também são vistos nas correspondências. Em uma carta aos “companheiros do MNU-Campinas” em outubro de 1984, a comissão executiva nacional expressa a sua preocupação com a aproximação do movimento com partidos no Estado, evidenciando um dilema da militância no período da redemocratização. “O MNU, ao longo de sua existência, tem conseguido a duras penas em alguns momentos, manter uma posição firme no que tange à sua autonomia, buscando […] afirmar uma perspectiva política onde a questão racial é o ponto de partida para o entendimento das questões gerais da sociedade”, escreveram os dirigentes, no original doado pelo militante Reginaldo Bispo, ex-coordenador nacional da entidade e um dos fundadores da Organização pela Libertação do Povo Negro (OLPN). “Entendemos a legitimidade da formação de tendências, desde que sejam resguardadas a democracia interna do movimento, seus documentos básicos e a linha política definida pelo congresso”, dizia o documento.
“São pérolas que as pessoas sabem um pouco ou ouviram falar, mas é importante destacar que há documentos, que há materialidade”, ressalta o cientista social Mário Medeiros, que dirige o AEL, na Unicamp, com o historiador Aldair Rodrigues. Entre 2017 e 2020, os pesquisadores haviam realizado um trabalho semelhante com documentos dos primeiros clubes negros de São Paulo. “Falando da experiência anterior, a gente achava que a documentação dos movimentos negros mais recentes estaria em melhor estado do que aquela do final do século XIX e do início do século XX. Mas não é verdade”, conta Medeiros. Ele aponta que as dificuldades para conservar essa memória das organizações mais recentes permanecem pela falta de recursos. “Papel, fotografia, VHS, cassete: preservar é muito caro e tudo isso vai se perdendo com o tempo.”
Também integram a primeira leva do projeto os acervos das entidades Soweto Organização Negra e Geledés Instituto da Mulher Negra —esta última a organização criada pela filósofa e referência do feminismo Sueli Carneiro. Medeiros afirma que com toda a documentação, que junta chega a dezenas de milhares de itens, é possível contar uma história da cidadania negra mais recente. “É a história da luta contra o racismo e organizações antirracistas. Dos movimentos de mulheres negras que vão criando o feminismo negro no Brasil, que é uma pauta superimportante hoje. As diferentes conexões internacionais que os diferentes movimentos negros vão tendo no Brasil. Uma agenda contra a violência policial, contra o genocídio da população negra, que é algo que parece uma agenda muito contemporânea, mas que nos últimos 40 anos tem sido o mote dos movimentos negros”, afirma o pesquisador. Na Unicamp, a coleta desse acervo se insere no projeto A Cidadania é Negra. O AEL também trabalha em parceria com a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) para a preservação dos Cadernos Negros, coletânea anual de contos e poemas e importante meio de difusão da escrita literária afro-brasileira desde 1978.
Completam o acervo atual do Afro Memória, por fim, os guardados de Januário Garcia. “Ele faz parte de uma geração de intelectuais negros que se preocupam com a memória, e no caso dele temos a memória documentada pela fotografia, extremamente importante para a experiência negra”, conta o pesquisador da Unicamp, que no último ano trabalhava com o fotógrafo na catalogação das peças. “Ele estava ajudando a identificar o material. Com o falecimento do Januário, a gente perde uma parte significativa da memória desse acervo”, lamenta Medeiros.
O arquivo do fotógrafo ainda está em fase de organização, e os pesquisadores analisam como continuar o trabalho. Já as coleções dos militantes do MNU e do Geledés estão em processo de tratamento (higienização e acomodação), antes de ficarem disponíveis para consulta no espaço da Unicamp.
Até lá, os destaques do material coletado pelo projeto serão exibidos em uma série de lives no canal do Cebrap no Youtube. A primeira foi transmitida na última terça (6), com a presença de Milton Barbosa. “Esse contato com a realidade histórica do processo de luta é de fundamental importância”, declarou.