21/12/2023
De Miriam Leitão em O Globo
A ministra Cármen Lúcia afirmou que a censura é vedada pela Constituição e esclarece que o caso em que o Supremo considerou o veículo de imprensa responsável por crimes de calúnia cometido pelo entrevistado não é o que está sendo interpretado. Ela me disse que o órgão “não é responsável pelo que o entrevistado afirma”. A ministra teme que já esteja havendo autocensura dos jornais e informa que o assunto “será objeto de esclarecimento para se impedir essa interpretação”. Em entrevista que me concedeu, Cármen Lúcia lamenta ser a única mulher no Supremo, admite saudade pessoal de Rosa Weber, afirma que os eventos de 8 de janeiro foram premeditados. Fala de marco temporal e da limitação das decisões monocráticas.
— O “cala a boca já morreu” não morreu. Não morre enquanto não morrer a democracia — disse ela sobre a responsabilidade do órgão de imprensa.
Segundo a ministra, no caso, a acusação feita à vítima era amplamente desmentida e já tinha sido objeto de decisão judicial. O que houve foi um “descompromisso total à honra e à imagem de uma pessoa”.
— Mas se você me entrevista e eu digo algo, não há qualquer responsabilidade do veículo. Você não sabe e nem é responsável pelo que o entrevistado afirma. A não ser que veiculasse algo sabidamente desmentido sem sequer uma nota explicativa. Nem cogitamos o caso de entrevistas ao vivo. É vedada a censura e nós somos a guarda da Constituição. A censura é impossível. Ouvi que os veículos podem estar fazendo autocensura. Não é isso que se quer. Isso vai ser objeto de pormenorização ou de esclarecimento para impedir esse tipo de interpretação. Vou repetir: se alguém cala o próprio eu do outro, não haverá mais comunicação na sociedade. Por isso é que a liberdade de expressão é tão séria e a da imprensa mais ainda. O “cala a boca já morreu” persiste porque persiste a democracia — disse a ministra referindo-se a um famoso voto dela pela liberdade de expressão.
A entrevista foi ao ar na quarta-feira (20) na GloboNews, está disponível no Globoplay, e tocou em outros temas relevantes. Ela disse sobre a votação dos senadores limitando o voto monocrático que “o Senado tem todo o direito de votar” e é “amplamente favorável a que o Congresso cumpra o seu papel”, e “pode questionar todos os poderes constituídos”. Lembrou, contudo, que a ministra Rosa Weber já tinha feito alterações com o apoio unânime dos ministros. O caso “vai ser submetido a controle de constitucionalidade. Se for constitucional, se mantém. Se não for, não persiste”.
O mesmo caso para o marco temporal. Perguntei se por projeto de lei é possível mudar a Constituição e o entendimento de ministros do STF sobre a não existência de um marco temporal para a homologação de terras indígenas.
— O Congresso não muda a interpretação do Supremo. Sobrevindo nova legislação, imagino que vá de novo ser submetido ao STF e aí o Supremo verifica. Mas o entendimento firmado há pouquíssimo tempo é o que prevalece para nós: que não haveria razões para desconhecer a realidade indígena de 500 anos que antecederam a definição constitucional. O que foi adotado que é o indigenismo como marca ou critério para que a gente pudesse saber o que era a Terra Indígena protegida constitucionalmente.
A ministra Cármen, única ministra do STF, elogiou as escolhas do presidente Lula, mas vê a falta de representatividade da mulher como uma falha da democracia.
— A democracia se constrói com todos, mulheres e homens. Nenhuma dúvida de que neste momento histórico ter dez homens e uma mulher no STF causa estranhamento. Para mim, o sentimento primeiro é o da amizade com a ministra Rosa Weber, de quem sinto enorme falta do contato direto. Todos os dias praticamente nos falávamos — diz ela, acentuando que faltam mulheres em todos os espaços de poder.
Para Cármen, há evidências de que o 8 de janeiro foi premeditado. Em todos os três poderes, foram destruídas as fotos dos ex-presidentes. No STF jogaram não água, mas substâncias que corroeram os equipamentos de imagem e parte dos arquivos. Queriam destruir a simbologia do poder. Perguntei se o risco à democracia foi superado.
— Acho que foi, mas aprendi em 2023 que a democracia é planta frágil. Precisa ser cuidada permanentemente. O Brasil para mim, hoje já mais velha, não é uma pátria mãe gentil, é quase uma filha com a qual quero ser gentil.