Os dias em que Minas vira mar


06/07/2022


Por Maria Luiza Busse, diretora de Cultura da ABI

Um mar de histórias é no que Minas Gerais vai se transformar por causa da onda literária que celebra 70 Anos da Viagem de 1952 – A Boiada e 60 Anos do livro Primeiras Estórias, obras de Guimaraes Rosa, o João. como o poeta Drummond chamou o escritor e diplomata nascido em Cordisburgo. No próximo domingo, dia 10, começa a 34ª Semana Rosiana que se estende até 16 de julho na pequenina cidade mineira distante 120 quilômetros da capital Belo Horizonte.

          

O evento realizado pela Academia Cordisburguense de Letras Guimarães Rosa oferece grande diversidade de atividades artísticas. Tem narração de estórias pelo Grupo de Contadores de Estórias Miguilim, caminhada literária Urbana e Ecoliterária pelo Grupo Caminhos do Sertão, roda de leitura, palestras, mesas redondas, saraus, oficinas de arte, apresentações teatrais, lançamento de livro, entrega de medalhas pela Câmara Municipal de Cordisburgo, posse de novos acadêmicos, e feira de gastronomia.

Guimarães Rosa viajou mundo servindo ao Brasil como diplomata. Falava muitas línguas e no jogo de dentro-fora do país construiu uma literatura em que o seu local de origem encerrou a universalidade do sentimento humano expressa em linguagem própria oral e imagética. Longe das terras estrangeiras, em 1952 partiu em viagem com oito boiadeiros pelo sertão de Minas Gerais o que resultou no livro  Grande Sertão Veredas, lançado em 1956. Da experiência, Guimarães Rosa dizia que “o sertão é dentro da gente”.

Além dos 70 Anos da Viagem de 1952 – A Boiada, a semana Roseana comemora ainda os 60 Anos do livro Primeiras Estórias, que recebeu esse título do autor por ter sido sua primeira incursão literária no gênero conto a que chamou de “estórias”. Mais uma vez, o escritor das travessias existenciais e poéticas espantou de encantamento leitor e crítica. São 21 estórias que alguns estudiosos conceituam como Prosoema, misto de prosa e poema, contos fantásticos porque Guimarães Rosa via a vida como uma realidade mágica em que os acontecimentos estão para aquém e além das ocorrências aparentes. “Parecia não acontecer coisa nenhuma (…). Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo”.

Os escritos de Rosa dão escuta, voz, e lugar, a silenciados e excluídos. A especial atenção é para com os loucos e as crianças. Muitos dos prosoemas fazem ver que a loucura é capaz de sensatas soluções que a razão cínica despreza. Por essas e todas as demais evidências é que não se deve chamar de louco o blasfemífero, desadoroso e grossoso que ocupa a presidência da República.

No link, ACESSAR A PROGRAMAÇÃO OFICIAL EM PDF

Mais informações: Museu Casa Guimarães Rosa (31) 996183291 e https://cordisburgo.mg.gov.br/

 

Um chamado João (*)

(Carlos Drummond de Andrade)

João era fabulista?

fabuloso?

fábula?

Sertão místico disparando

no exílio da linguagem comum?

Projetava na gravatinha

a quinta face das coisas

inenarrável narrada?

Um estranho chamado João

Para disfarçar, para farçar

o que não ousamos compreender?

Tinha pastos, buritis plantados

no apartamento?

no peito?

Vegetal ele era ou passarinho

sob a robusta ossatura com pinta

de boi risonho?

Era um teatro

E todos os artistas

No mesmo papel,

ciranda multívoca?

João era tudo?

tudo escondido, florindo

como flor é flor, mesmo não semeada?

Mapa com acidentes

Deslizando para fora, falando?

Guardava rios no bolso

cada qual com sua cor de água

sem misturar, sem conflitar?

E de cada gota redigia

nome, curva, fim,

e no destinado geral

seu fado era saber

para contar sem desnudar

o que não deve ser desnudado

e por isso se veste de véus novos?

Mágico sem apetrechos,

civilmente mágico, apelador

de precípites prodígios acudindo

a chamada geral?

Embaixador do reino

que há por trás dos reinos,

dos poderes, das supostas fórmulas

do abracadabra, sésamo?

Reino cercado

não de muros, chaves, códigos,

mas o reino-reino?

Por que João sorria

Se lhe perguntavam

que mistério é esse?

E propondo desenhos figurava

menos a resposta que

outra questão ao perguntante?

Tinha parte com… (sei lá o nome) ou ele mesmo era

A parte da gente

servindo de ponte

entre o sub e o sobre

que se arcabuzeiam

de antes do princípio,

que se entrelaçam

para melhor guerra,

para maior festa?

Ficamos sem saber o que era João

E se João existiu

De se pegar.

(*) Publicado em 1967 no Correio da Manhã três dias após a morte de Guimarães Rosa de infarto fulminante. João tinha 59 anos.