10/10/2008
Apesar da atmosfera democrática que envolve o Brasil nos últimos tempos, o clima em relação à liberdade de expressão anda sofrendo mudanças, no caso negativas, que atingem, entre outros, quem se dedica a escrever biografias de grandes personagens da vida nacional.
Já tiveram trabalhos censurados, por exemplo, os jornalistas e escritores Fernando Morais e Ruy Castro. O primeiro com “Na toca dos leões” (Editora Planeta), que conta a história da agência W/Brasil, do publicitário Washington Olivetto. Uma declaração do então Deputado Ronaldo Caiado (PFL-GO), citada no livro, perto das eleições presidenciais de 1989, fez com que o parlamentar movesse duas ações cíveis contra Morais, que teve a publicação da obra interditada, por decisão do Juiz Jeová Sardinha de Moraes, à época titular da 7ª Vara Criminal de Goiânia.
Em 1995, Ruy Castro passou por situação semelhante quando escreveu “Estrela solitária — Um brasileiro chamado Garrincha” (Cia. das Letras). As filhas do homenageado moveram uma ação e a biografia foi recolhida das livrarias, pois a Justiça entendeu que afetava negativamente a imagem do ex-jogador do Botafogo. Depois de um recurso, a decisão foi revogada e o livro pôde voltar a ser vendido.
No ano passado foi a vez do escritor e jornalista Paulo César Araújo, com a biografia de Roberto Carlos, que a Justiça também mandou recolher a pedido do “Rei”, sob a alegação de invasão de privacidade.
Agora, a Justiça mandou interromper a venda de “Sinfonia de Minas Gerais — A vida e a literatura de João Guimarães Rosa” (LGE Editora), do escritor goiano Alaor Barbosa, por entender que a biografia contém informações erradas sobre o autor de “Grande sertão: veredas”.
Prejuízos
Em seu despacho, o Juiz Marcelo Almeida de Moraes Marinho, da 24ª Vara Cível do Rio de Janeiro, alega que a venda do livro poderá trazer prejuízos aos direitos das herdeiras do escritor, Vilma e Agnes Guimarães Rosa. Na ação conjunta proposta contra a LGE e Alaor, Vilma e a editora Nova Fronteira — donas dos direitos autorais das obras de Guimarães Rosa —, alegam que foram surpreendidas ao tomar conhecimento, pela imprensa, do lançamento da biografia. Dizem, também, que ninguém da família foi consultado pela editora ou pelo autor “para opinar, dar entrevistas ou qualquer espécie de contribuição para o livro”.
Em entrevista à repórter Marina Gonçalves, do Globo, publicada na última terça-feira, 7, Vilma alega que a obra de Alaor é plágio de um livro que ela escreveu, em 83, intitulado “Meu pai”. O autor contesta e diz que há cinco anos, quando começou as pesquisas para o seu “Sinfonia”, vem tentando sem sucesso um diálogo com a família de Guimarães Rosa:
— Em 2003, escrevi uma carta para Vilma, comunicando que estava escrevendo o livro e pedindo informações. Ela não me respondeu. Alguns meses depois, telefonei a ela para pedir novamente sua colaboração, que também me foi negada.
Risco
Para Fernando Morais, a produção de biografias corre sério risco se tiver que ser submetida à censura prévia dos descendentes dos biografados, o que configura caso grave de ameaça à liberdade de expressão:
— É uma barbaridade, pode-se abrir um precedente nacional de uma hora para outra, parece uma ação corporativa. Além do mais, é uma maneira de impedir a sociedade de se informar. Uma medida como essa é uma violência que está causando um efeito muito negativo no escritor —, diz ele, referindo-se a Alaor, cujo livro tem 387 páginas e informações colhidas em muitas viagens a diversas regiões de Minas, como Codisburgo, terra de Guimarães, e Itaguara, onde ele morreu, em 67.
Alaor, que já publicou dois livros sobre Monteiro Lobato — “Lobato e as crianças” (ed. Caminhos, 1960) e “Um senáculo da paulicéia” (ed. Projeto, 2004) — diz que gosta de escrever sobre a vida dos grandes autores brasileiros. Por isso, sentiu imensa tristeza ao saber da ação judicial:
— A notícia trouxe muita dor moral, a mim e à minha família. Há dois anos, publiquei um estudo sobre o romance regionalista brasileiro, em que falo da obra de vários escritores, como José de Alencar, Visconde de Taunnay, Rachel de Queiroz, José Lins do Rego e Graciliano Ramos, até chegar a Guimarães Rosa. Analisei a obra e escrevi um perfil biográfico deles. E não tive qualquer tipo de problema.
O autor considera a censura prévia “uma coisa inadmissível”:
— Além disso, verificar se um livro contém ofensa à imagem de alguém é algo que tem que ser feito em um processo regular. Só depois da produção de provas, e se houver uma sentença transitando em julgado, é que se pode determinar alguma coisa.
Alaor Barbosa |
Apoio
Alaor Barbosa vem recebendo apoio de outros escritores e de diversas entidades, como a União Brasileira dos Escritores, que, em 1º de outubro, publicou nota de repúdio à retirada de sua obra das livrarias. O texto é assinado pelo Presidente da UBE, Levi Bucalem Ferrari, e diz que a instituição “manifesta-se, prontamente, contra esse ato arbitrário, atentatório à liberdade de expressão e criação artística, como bem define o Código Civil”.
Claudio Willer |
No artigo “Em defesa das biografias”, Claudio Willer, poeta, ensaísta, tradutor e Conselheiro da UBE, que já presidiu, diz que as obras sobre os grandes autores brasileiros são do interesse de historiadores, sociólogos e críticos e “contribuem para o conhecimento, na razão direta do seu valor literário”. Mais adiante, ele escreve: “Guimarães Rosa não escondeu esqueletos no armário. A argumentação de Vilma Guimarães Rosa, fundamentando sua ação, trata de supostas incorreções na biografia por Alaor Barbosa. Mover ação por isso é idiossincrático e contraproducente.”
Claudio diz ainda que isso é “assunto para a crítica literária, e não para o Judiciário”. E conclui: “Agora, temos o juiz dublê de crítico literário: dupla usurpação, do nosso direito à leitura, do nosso direito ao julgamento. O certo teria sido convocar algum dentre os nossos bons especialistas em Guimarães Rosa, pedir-lhe um parecer, e divulgá-lo.”