15/08/2022
Por Jorge Ramos, jornalista e pesquisador, diretor da Associação Bahiana de Imprensa (ABI) e do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (IGHB), membro do Conselho Curador da Fundação Hansen Bahia (Cachoeira)
Francisco Gomes Brandão (Montezuma)
Há 200 anos, em 21 de agosto de 1822, ocorreu o primeiro atentado à Liberdade de Imprensa no Brasil. Ao entardecer daquele dia, soldados portugueses, cumprindo ordens do Brigadeiro Madeira de Melo – Governador das Armas da Província da Bahia, nomeado pelas Cortes de Lisboa – invadiram a gráfica Viúva Serva & Carvalho, na Cidade Baixa, em Salvador, e a empastelaram, quebrando equipamentos e danificando o prelo. Estragaram sobretudo as placas (contendo os tipos) prontas para a impressão de O Constitucional. Este jornal tinha como principal redator o bacharel, formado em Coimbra, Francisco Gomes Brandão (1794-1870), cujo pseudônimo era Montezuma, também vereador em Salvador. Na tribuna do Senado da Câmara e em artigos vibrantes no jornal ele fazia uma tenaz oposição ao militar português e críticas ao domínio português no Brasil. Montezuma pregava ainda uma “União Sem Sujeição” do Brasil em relação a Portugal e defendia a causa brasileira na tensa disputa que então se travava entre o governo regencial de Dom Pedro, no Rio de Janeiro, e as Cortes de Lisboa, que preparavam a primeira Constituição do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. Muitas decisões desta assembleia constituinte eram contrárias ao Brasil e tinham um caráter nitidamente recolonizador. E contra elas o Príncipe Regente e muitos brasileiros reagiram
O ataque ao jornal foi executado por uma tropa comandada pelo tenente-coronel Vitorino Serrão, o Ruivo, apontado por muitos como tendo sido o autor do golpe de baioneta no ventre da Abadessa do Convento da Lapa, Joana Angélica, que a levou à morte. O fato, que a tornou a Mártir da Independência, ocorreu cinco meses antes. Em fevereiro, brasileiros e portugueses se enfrentaram armados nas ruas de Salvador, no conflito que teve como causa justamente a recusa dos baianos, com Montezuma à frente, em empossar Madeira de Melo no comando de todas as forças militares da Bahia. Defendendo que esse comando cabia a um brasileiro, os baianos negaram-lhe a posse e os portugueses reagiram. Com a derrota dos brasileiros nesses embates, e a fuga dos seus principais líderes para o Recôncavo, Madeira de Melo impôs-se perante a Junta Governativa e, a ferro e fogo, foi empossado. Em seguida ele ocupou militarmente todos os pontos de Salvador e impôs severa repressão a brasileiros partidários da Independência.
Como tinha ordens de levar preso o jornalista Montezuma e não o encontrando, os militares espancaram o sócio dele, e também redator do jornal, Francisco Corte Real, quebrando-lhe um braço, sequela que lhe ficou pelo resto da vida. Esse atentado significou o fim de O Constitucional. Era, segundo Alfredo de Carvalho (Anais da Imprensa Baiana, publicado em 1911 pelo Instituto Geográfico e Histórico da Bahia/IGHB) “o único periódico que ousava lançar em rosto aos oficiais lusitanos as suas arbitrariedades, injustiças e barbaridades”. Com a cabeça a prêmio, o jornalista conseguiu fugir em um saveiro para o Recôncavo e na Vila de Cachoeira ajudou na resistência ao domínio português. Cachoeira tinha aclamado um mês antes, em 25 de Junho, o Príncipe Dom Pedro Defensor Perpétuo do Brasil. Naquele contexto, isto significava adesão ao governo dele, no Rio de Janeiro, e dizer não às Cortes de Lisboa. Por isso naquele mesmo dia a vila foi bombardeada por uma barca canhoneira portuguesa ancorada no Rio Paraguaçu, dando início, três meses antes do 7 de Setembro, à Guerra pela Independência, que somente foi concluída em 2 de Julho do ano seguinte.
Em Cachoeira, Montezuma foi eleito deputado representante da vila no Conselho Interino de Governo da Província da Bahia, o governo rebelde que se instalou, em 6 de setembro, representando todas as vilas do interior. Salvador, ocupada por tropas portugueses que resistiam à independência, ficou isolada do resto da Bahia e deixou de receber víveres e mantimentos, produzidos no Recôncavo. Isso ocasionou uma grave crise de abastecimento, que mais tarde foi fator essencial para a vitória dos brasileiros na guerra. Montezuma, por delegação do Conselho Interino, foi ao Rio de Janeiro levar a Dom Pedro, já coroado Imperador do Brasil, um relatório completo sobre a situação da Bahia, a notícia da formação do “governo para todas as vilas” e o pedido de ajuda para combater as tropas de Madeira de Melo. Na mesma escuna que o levou de volta à Bahia vieram o reconhecimento de Dom Pedro ao governo de Cachoeira, armas e munições para a reação armada e uma tipografia. Com ela, Montezuma e Corte Real criaram em Cachoeira, capital da Bahia livre, o jornal O Independente Constitucional, certamente um dos primeiros criados no Brasil após a Independência.
Ele começou a circular em 1° de Março de 1823 e publicava atos e notícias do governo imperial, fatos da campanha, decisões do Governo Interino e relatava os combates que estavam sendo travados no Recôncavo Baiano desde junho de 1822. Cercada por terra pelo Exército organizado pelo General Labatut, e por mar pela esquadra de Lord Cochrane, que isolou a Bahia de Todos os Santos, Salvador ficou meses sitiada. Os dois militares, um francês e o outro escocês, tinham sido contratados pelo recém-criado Império do Brasil para derrotar os portugueses que, ao resistirem à Independência, tentavam manter a Bahia e o norte do Brasil ainda unidos a Portugal. Em 2 de Julho de 1823 os portugueses foram finalmente expulsos e a data é até festejada pelos baianos como sendo a verdadeira independência do Brasil.
Montezuma teve um papel decisivo em todas as fases do processo que levou à guarra que os baianos travaram em terra e mar contra milhares de soldados portuguese aquartelados em Salvador. Nesse período inclusive mudou o seu nome civil para Francisco Gê Acaiaba de Montezuma, numa atitude nacionalista. Ele foi o orador inflamado, impulsionador dos baianos contra o domínio português, o jornalista combativo que não se atemorizou com as ameaças e violências, o articulador político da aclamação de Dom Pedro, da união de todas as vilas e o secretário do governo provisório que centralizou e, até certo modo, coordenou as ações na guerra que consolidou a Independência do Brasil. Ainda em 1823 ele foi um dos eleitos pela Bahia para compor a Assembleia Constituinte convocada por Dom Pedro para redigir a primeira Constituição do Brasil. Nesse cargo, ao enfrentar a tirania do Poder foi preso e exilado quando Dom Pedro, insatisfeito com algumas decisões dos parlamentares, num arroubo de absolutismo, fechou a Constituinte e outorgou uma Carta Magna. Ao retornar do exílio de oito anos na França foi eleito deputado e, nos anos seguintes, Senador (sempre representando a Bahia). Foi ainda Ministro da Justiça e também das Relações Exteriores, além de Embaixador do Brasil na Inglaterra. Teve presença ativa por mais de 50 anos na política e no serviço público. Presidiu o Banco do Brasil e como advogado fundou o órgão que deu origem à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Em sua longa vida parlamentar apresentou diversos projetos para abolir a escravidão. Era negro e foi agraciado com o título de Visconde de Jequitinhonha, sendo um dos poucos negros a obter uma honraria nobiliárquica.