O marco temporal, o STF e a bancada ruralista no Congresso Nacional


31/08/2023


Por Eliane Cantarino O’Dwyer, antropóloga

No dia 30 de agosto foi retomado o julgamento no STF da tese do marco temporal que estabelece a data de 5 de outubro de 1988 como marco jurídico, visando a demarcação de terras indígenas, mesmo ano de promulgação da chamada Constituição Cidadã, considerada símbolo do processo de redemocratização nacional, sem levar em conta as injustiças históricas cometidas e as frentes de expansão da fronteira agropecuária sobre os territórios tradicionalmente ocupados como áreas protegidas da União.

Desde 2021 esse julgamento tem mobilizado os povos indígenas no Brasil, e suas associações, atualmente representados no governo recém-empossado por um Ministério próprio. Conforme denunciam, o marco temporal ameaça a sobrevivência de muitas comunidades indígenas e suas áreas preservadas de florestas.

No STF a tese do marco temporal já tinha sido rejeitada pelo voto do relator, ministro Edson Faquin, ao arguir que “a Constituição reconhece que o direito dos povos indígenas sobre suas terras de ocupação tradicional é um direito originário, ou seja, anterior à própria formação do Estado”.

Antecipando-se à retomada desse julgamento por aquela Corte, a CRA (Comissão de Agricultura e Reforma Agrária) do Senado Federal, mediante representação formada sobretudo por membros da bancada ruralista no Congresso Nacional, seguindo decisão já tomada pela Câmara dos Deputados em maio do corrente, votou, no último dia 23 de agosto de 2023, pela aprovação da tese do marco temporal (Projetos de Lei 2.903/2023 e PL 490/2007, respectivamente).

Essa decisão que regulamenta o marco temporal passou a ser comemorada nas redes sociais por políticos como uma vitória e levanta feridas antigas que sugerem um tipo de poder autocrático encarnado em novo “coronelismo, enxada e voto”, já analisado por Victor Nunes Leal, ex-membro do STF, cassado pela ditadura militar.

Do ponto de vista do movimento e organizações indígenas o marco temporal representa um risco ao reconhecimento e demarcação de terras indígenas e infringe o direito à consulta prévia, livre e informada, garantida pela Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), segundo a qual os povos indígenas e tribais têm que participar do processo de tomada de decisões administrativas e jurídicas que lhes afetem diretamente.

A partir dessa perspectiva, deve-se igualmente destacar que a exclusão dos povos indígenas desse tipo de prejulgamento do marco temporal no Congresso Nacional, à revelia dos seus posicionamentos contrários e amplamente divulgados no espaço público, amparados por análises antropológicas e pareceres emitidos por associações científicas do país, como a ABA (Associação Brasileira de Antropologia), a Anpocs (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais), a SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência), entre outras, abala os pressupostos da ética que possam regular a relação entre as minorias étnicas e o Estado-Nação brasileiro.

A retomada do julgamento pelo STF assume grande relevância na medida em que coloca em jogo, para toda a sociedade brasileira e para além da questão dos direitos territoriais e culturais dos povos indígenas, os princípios que devem reger nossa moralidade institucional e política.