Notícias da Ditadura Brasileira na BBC de Londres


01/11/2021


Por Norma Couri, diretora de Inclusão Social, Mulher e Diversidade.

Nunca se esqueçam! Notícias da Ditadura Brasileira na BBC de Londres

Depois de ver o general Brilhante Ustra condecorado pelos militares e ouvir ecos de que nunca houve ditadura no Brasil, Jan Rocha foi buscar as centenas de despachos enviados para a BBC em Londres. Rendeu 467 páginas e são a história viva do período mais dramático da ditadura brasileira. Nossa Correspondente Informa (Alameda) é a cobertura de 1973 a 1985 por Jan em fitas cassete enviadas ou na mala de passageiros para driblar a censura ou por telefone, lendo no papel as notas rabiscadas à mão. No envio por Correio ou telex, os operadores evitavam o olho no olho. Qualquer conivência levava às prisões do Doi Codi, órgão de repressão do governo. Já na capa do livro, a reprodução de uma matéria de jornal protestando contra a Polícia Federal que exi gia da correspondente a identificação de suas fontes.

“Este livro é a prova do absurdo que é negar o que vivemos na pele”, diz Jan, “é a minha indignação pelo que não se pode negar”.
O material era explosivo: notícias proibidas na imprensa. Elas voltavam feito bumerangue pelas ondas curtas de rádios sintonizados na BBC bem na Hora do Brasil. Por isso no prefácio o jornalista Rosental Alves, hoje na Universidade do Texas, considera Jan uma rock star do jornalismo internacional. E na orelha o colega Bernardo Kucinski, ex- correspondente do The Guardian, avisa sobre o livro, “se jornalismo é o rascunho da história, melhor do que este …dificilmente haverá”.

O despacho que abre o livro é de 23 de setembro de 1973, “Dom Quixote brasileiro desafia militares”. Era Ulysses Guimarães, presidente do MDB, único partido da oposição. Só havia dois partidos. Arena apoiava os militares que deram o golpe em 1964 e instituíram o temível AI-5 em 1968. O MDB reunia a esquerda, simpatizantes e políticos vigiados a pente fino, sujeitos a interrogatórios, cassação do mandato, prisão arbitrária, tortura por deslizes reais ou imaginários. Centenas de vítimas: economistas como Celso Furtado e Paul Singer, sociólogos como Fernando Henrique Cardoso, políticos como Jango Goulart, Brizola, Lula. José Genoíno foi preso junto com mais 23 por tentar reorganizar o Partido Comunista do Brasil.< br />
Jan também questionou o sumiço dos deputados Paul Wright (1973) e David Capistrano da Costa (1974), a prisão de centenas de jovens que reorganizavam a União Nacional dos Estudantes (UNE) e de jornalistas como Flavio Tavares, preso político trocado pelo embaixador americano Charles Elbrick em 1969 e novamente preso como “espião” no Uruguai.

No despacho de 1977 Jan descreve o relato de torturados: choques elétricos na cadeira do Dragão ou nos órgãos genitais, estupro de mulheres com cabo de vassoura. O Brasil soube via Londres que o jornalista Paulo Markun assinou na prisão depoimentos sem ler porque ouvia os gritos da mulher sendo torturada. Jan estava lá em 1976 quando a estilista Zuzu Angel entregou ao chanceler americano Henry Kissinger uma carta denunciando a morte do filho Stuart Jones aos 25 anos, com a boca no cano de descarga de um jipe na Base Aérea da Aeronáutica no Galeão. Dois meses depois a própria Zuzu foi morta num estranho acidente.  Um dos líderes do PCB, Marco Antonio Coelho, alegou que foi torturado brutalmente em 1975 mas se recusou a aparecer na televisão para repudiar o comunismo, como era praxe.

Sob censura estavam as rádios, TVs, jornalões. O Estado de São Paulo foi bombardeado. Os alternativos Opinião, Movimento, Ex , tirados de circulação. Por uma charge sobre as cores da bandeira 0 Pasquim foi confiscado, “o amarelo é por causa da nossa icterícia, o azul é da nossa anemia e o verde é o da nossa angústia”. Um homem foi acusado de subversão por tocar o hino nacional num instrumento “inadequado”, a rabeca.

O Comando de Caça aos Comunistas (CCC) estava em ação e um dos alvos eram os padres solidários com os dissidentes, como o bispo catalão Pedro Casaldáliga. O bispo de Nova Iguaçu no Rio, Dom Adriano Hypólito, foi encontrado nu com o corpo pintado de vermelho. Dois padres franceses foram presos, acusados de cantar a subversiva Magnificat – um trecho de São Lucas no Novo Testamento. O Teatro Bolshoi foi censurado por ser russo.

Jan relatava a censura a Chico Buarque, Glauber Rocha, Edith Piaf, Mercedes Sosa. E punha aspas nas declarações do general João Bina Machado, jovens e professores inteligentes eram muito perigosos.

Qualquer semelhança com os dias de hoje é mera coincidência. Figueiredo, o último presidente militar, se gabava da “franqueza grosseira do meu linguajar”.

Jan Rocha sobreviveu a uma pane num avião monomotor, recebeu ameaças, foi atropelada em Brasilia. Mas achou que tudo tinha tudo tinha valido a pena quando em 1985 Tancredo Neves foi eleito presidente. “Foi uma das poucas vezes no Brasil que senti uma pequena sensação de revolução francesa no ar”…

“Naquela época havia muita solidariedade entre s jornalistas, os correspondentes se ajudavam”, diz. “Deve ser muito difícil para um jovem jornalista hoje, com o mundo da Internet cheio de informações falsas”