29/02/2024
Falar sobre 64 não é remoer o passado, é discutir o futuro
Em entrevista para o jornalista Kennedy Alencar, o presidente Lula afirmou que seu governo não pretende pautar o tema dos 60 anos do golpe, porque ele deseja olhar para o futuro, não “remoer o passado”.
Entendemos que a fala do presidente é equivocada, e gostaríamos de convidar o governo e a sociedade civil a refletir sobre a questão.
Queremos começar destacando que falar sobre os 60 anos do golpe de Estado não se trata de remoer o passado. Pelo contrário, trata-se de colocar em debate o que queremos para o futuro do Brasil.
Lula apresenta um contraponto entre falar sobre o passado ou reconstruir o Brasil e fazer o país se desenvolver economicamente. Pois então, presidente, o golpe de 1964 foi dado para impor um projeto econômico ao país, defendido pelos mesmos setores que seu governo busca enfrentar hoje.
A verdade é que as elites econômicas do Brasil nunca tiveram problema em abraçar o fascismo para impor sua agenda econômica regressiva e de aprofundamento das desigualdades. Foi assim em 1964, em 2016 contra Dilma e em 2018 com Bolsonaro. E é por isso que setores dessas elites financiaram a tentativa de golpe do 8 de janeiro de 2023.
Por isso, falar sobre 1964 é falar sobre os projetos autoritários e elitistas da sociedade que continuam ameaçando a possibilidade de o Brasil se afirmar como um país soberano, capaz de produzir desenvolvimento econômico e socioambiental com inclusão e democracia. É, portanto, falar sobre o futuro.
O segundo ponto da fala do presidente que gostaríamos de discutir é sua fala de que ele está mais interessado em discutir o 8 de janeiro do que 1964. Pois nós queremos defender que é impossível falar de um sem abordar o outro.
É a tradição histórica de não punir os golpistas e torturadores do passado que faz com que essas elites econômicas e setores amplos das Forças Armadas se sintam à vontade para continuar buscando soluções de força para impor seus projetos ao país, ao largo da democracia e da soberania popular.
Não é à toa que a nova palavra de ordem do Bolsonarismo seja por “Anistia”. Bolsonaro e seus aliados sabem que o instrumento da anistia sempre funcionou, na história do Brasil, para perdoar os que atentam contra a democracia. O que eles querem é repetir esse padrão histórico.
Por isso, repudiar veementemente o golpe de 1964 é uma forma de reafirmar o compromisso de punir os golpes também do presente e eventuais tentativas futuras.
Lula tem razão quando diz que pela primeira vez militares de alta patente estão sendo chamados para depor e para responder por seus atos. E temos convicção de que o governo não aceitará qualquer chantagem por uma anistia a Bolsonaro e seus cúmplices.
Ao mesmo tempo, porém, Lula diz que a política adotada pelo seu Ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, é “adequada”. Pois aqui há uma contradição gritante: de nada adiantará a punição a indivíduos específicos se o Brasil não colocar na mesa definitivamente um debate sobre as necessárias reformas institucionais nas Forças Armadas. Punir meia dúzia de generais mas não promover mecanismos de adequação da caserna à democracia e de subordinação dos militares ao poder civil significa, em última instância, que o pedido de Bolsonaro por uma “borracha no passado” estará sendo atendido.
Gostaríamos de enfatizar que o próprio presidente faz uma ressalva em sua fala, ao admitir que ainda há desaparecidos no país. Pois bem, presidente, está em suas mãos enfrentar esse tema. É urgente a recriação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos, cujo decreto está na Casa Civil há quase um ano. O processo de reparação não foi plenamente reconstruído: a Comissão de Anistia está julgando menos que o governo Bolsonaro, não retomou os projetos de memória das gestões passadas, como: Marcas da Memória, Caravanas da Anistia, Memorial da Anistia, Clínicas do Testemunho. Nessa seara a reconstrução não chegou. E ainda, falta avançar na implementação das recomendações da Comissão Nacional da Verdade e no cumprimento das sentenças internacionais ao redor do tema da Anistia como impunidade. Ademais, como pedir às filhas, filhos, irmãos, irmãs, netos e netas, sobrinhos e sobrinhas de desaparecidos políticos, cujos corpos jamais foram encontrados, que esqueçam os seus entes queridos numa vala qualquer desconhecida e abandonada pela própria história?
Ao mesmo tempo, chamamos atenção para o fato de que essas não são as únicas pendências do Brasil em relação à ditadura militar. Localizar os desaparecidos deve ser parte de uma agenda mais ampla, que passa inclusive por uma discussão sobre o quanto inúmeros setores da sociedade foram atingidos pela ditadura e até hoje nem foram reconhecidos como vítimas do regime. Indígenas, camponeses, moradores de favelas e periferias, a população negra, os LGBTQIA+, os trabalhadores – é fundamental que reconheçamos, enquanto pais, o quanto o golpe de 1964 impactou esses setores da sociedade, que historicamente foram e continuam sendo alvos preferenciais da violência do Estado. Nesse sentido, há uma pendência enorme do Brasil em termos de memória, verdade, justiça e reparação em relação a essas violações.
Não aceitaremos que, mais uma vez, os governos negociem ou abdiquem dos direitos das vítimas para poder contemporizar com os militares. Não aceitaremos mais essa tutela cujo preço histórico quem tem pago são os familiares, todos os que foram atingidos por atos de exceção, todos que trabalham pela construção da memória para a defesa da democracia.
Por isso tudo, presidente, falar sobre o golpe de 1964 não é remoer o passado. É algo fundamental para que o senhor e seu governo continuem avançando em uma agenda voltada para transformar definitivamente o futuro do país, com vistas a construir um país cada vez mais justo e democrático.