comissão nacional da verdadePor Moacyr Oliveira Filho(Moa), jornalista, Membro efetivo do Conselho Deliberativo na ABI, foi preso e torturado no DOI-CODI do II Exército, em maio de 1972, foi colaborador voluntário da Comissão Nacional da Verdade, entre 2013 e 2014.
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A promoção, pelo presidente Jair Bolsonaro, do coronel da reserva, Carlos Alberto Brilhante Ustra, já falecido, ao posto de Marechal, divulgada na semana passada pela revista Fórum (que rende à cada uma das suas filhas, Patrícia e Renata, uma pensão mensal de R$ 15.307,90, totalizando R$ 30.615,80, valor correspondente aos vencimentos de outros “marechais” do Exército), mais do que uma provocação, é uma afronta às quase 3.500 pessoas que foram presas e torturadas no DOI-CODI do II Exército, que ele comandou entre setembro de 1970 e janeiro de 1974, especialmente às famílias e à memória dos 54 brasileiros que foram assassinados nas câmaras de tortura daquele inferno, considerado o mais violento e emblemático órgão de repressão da ditadura militar.
É também uma afronta à memória do Marechal Mascarenhas de Morais, que comandou a Força Expedicionária Brasileira (FEB), e combateu o nazi-fascismo nos campos da Itália, entre 1943 e 1945, na II Guerra Mundial. Esse sim, um Marechal de verdade.
Ustra, que usava no DOI-CODI o codinome de Doutor Tibiriçá, foi o primeiro agente público condenado, em 2008, em ação declaratória por sequestro e tortura, mais de trinta anos depois de fatos ocorridos durante a ditadura militar (1964-1985).
Eu, que fui preso e torturado ali, em maio de 1972, confesso que me senti como se estivesse de novo levando choques e porradas no pau de arara e na cadeira do dragão.
Nas semanas em que lá estive preso tive pouco contato com Ustra. Afinal, eu era um peixe pequeno, um mero militante estudantil de base, e ele dava preferência aos peixes graúdos, especialmente aos militantes das organizações da luta armada, aos dirigentes, e aos que haviam passado por treinamento em Cuba.
Minha mãe acabou tendo mais contato com ele do que eu. E tinha verdadeiro horror do Doutor Tibiriçá. Ela foi recebida por ele nos primeiros dias de minha prisão, quando ouviu que eu não estava preso ali. Só no quinto dia é que ele admitiu que eu estava lá e autorizou que minha mãe levasse roupas limpas pra mim. O que deixou a Dona Marília furiosa.
Mesmo sem ter sido torturado pessoalmente por ele, conheci de perto suas salas de horrores, onde fui torturado 4 dias seguidos, pelos seus comandados, especialmente pelo Lourival Gaeta (Mangabeira), que me recebeu com requintes de crueldade, pelo Pedro Antonio Mira Grancieri (Capitão Ramiro), pelo Aparecido Laertes Calandra (Capitão Ubirajara), pelo Edizio Lima Maciel (Oberdan/Zé Bonitinho), pelo Dirceu Gravina (JC), pelo Aderval Monteiro (Carioca) pelo “Ricardo”, pelo “Padre”.
Um dia, vi o Ustra dar um soco no olho do companheiro Oséas Duarte, pela grade da cela do X-1, que o deixou com o olho roxo por um bom tempo. E o vi também, ao liberar um companheiro para ser interrogado pelo Cenimar, no Rio de Janeiro, dizer para o companheiro não falar nada lá, que ele (Ustra) segurava a onda aqui.
Como se isso fosse possível.
Sim, havia uma disputa entre os órgãos de repressão para ver quem conseguia mais informações.
Apesar disso, por ironia do destino, nossos caminhos se cruzaram várias vezes, anos depois, quando eu já era jornalista profissional e morava em Brasília.
E, confesso, que em todas as vezes em que isso aconteceu, eu venci o “Marechal” de araque.
A primeira delas foi em 1981, quando fui cobrir uma solenidade de troca de comando no QG do Exército, em Brasília, conhecido como Forte Apache. Sai da redação da Veja com a sensação de que aquela solenidade iria render alguma coisa, além da mera formalidade. E foi dito e feito.
Quando a solenidade terminou e a imprensa foi liberada do seu cercadinho e pode circular pelo salão, onde era servido um coquetel, lá pelas tantas, dei de cara com o coronel Ustra, que servia no Estado Maior do Exército.
Com as pernas tremendo, sai atrás do fotógrafo que me acompanhava, Salomon Cytrynowicz, o Samuca, e apontei o Ustra para que fosse fotografado. Foram apenas dois ou três cliques rápidos. Suficientes para Ustra, que nunca gostou de ser fotografado, perceber que tinha sido flagrado, e sumir de cena. Minutos depois, um militar ainda tentou impedir o registro, mas conseguimos escapar com o filme intacto.
Semanas depois, a foto do Ustra foi publicada num box, na página 27 da edição nº 665, da Veja, de 3 de junho de 1981, numa matéria sobre a comunidade de informações. Essa foi a primeira foto do já famoso torturador publicada na imprensa brasileira.
Em agosto de 1985, a então deputada Beth Mendes, numa viagem oficial ao Uruguai, reconheceu Ustra, ocupando a função de Adido Militar na Embaixada do Brasil em Montevidéu, em pleno governo Sarney, na chamada Nova República. Beth Mendes, que havia sido presa e torturada por Ustra, escreveu uma carta a Sarney, denunciando a presença do notório torturador naquele posto diplomático, e Ustra acabou sendo demitido.
Na época, eu era editor de política da Última Hora de Brasília, e aproveitei o episódio para escrever um artigo, que foi publicado na página 3 da edição do dia 17 de agosto de 1985, contando uma cena que me impressionou muito, durante a minha passagem pelo DOI-CODI.
Intitulado Brinquedo Macabro, o artigo contava que Ustra levava a sua filha Patrícia, então com apenas 3 anos de idade, para passar algumas tardes no DOI-CODI, brincando com as presas, às vezes no pátio, às vezes na própria cela feminina, o X-6, e concluía dizendo: “Uma pessoa que levava a própria filha para um centro de torturas, não pode alegar que não sabia o que estava fazendo”.
Ustra não só não desmentiu o artigo, como o transcreveu num capítulo do seu primeiro livro – Rompendo o Silêncio. Intitulado Um Brinquedo Macabro? (páginas 239 a 248), o texto diz que a presença da filha entre as presas era uma demonstração do “carinho” que ele e sua esposa, Maria Joseíta, tinha com elas.
Mais do que isso, o livro traz, num dos primeiros capítulos, a transcrição de uma carta de Joseíta às filhas Patrícia e Renata. Intitulada A revolta de uma mulher (páginas 16 a 18), na carta ela também cita o artigo e diz que a presença dela e da filha Patrícia no DOI-CODI era uma “pequena obra assistencial”.
Durma-se com um barulho desses.
Finalmente, o último episódio, talvez tenha sido o mais gratificante.
Eu era assessor parlamentar da Assembleia Nacional Constituinte, e no dia 11 de julho de 1987, um sábado, a Comissão de Sistematização iria votar o texto final do capítulo referente à questão agrária. A poderosa União Democrática Ruralista (UDR), então liderada pelo fazendeiro e latifundiário goiano Ronaldo Caiado, hoje governador de Goiás, havia programado uma grande manifestação na Esplanada dos Ministérios para pressionar os parlamentares a não votar um texto que permitisse a desapropriação para fins de reforma agrária das terras que não cumprissem a chamada função social. Quando cheguei para trabalhar, fui para a porta do Congresso para ver a passeata e relatar o acontecimento para a bancada do PCdoB, que eu assessorava. Assim que cheguei na calçada percebi que, na minha frente, estava o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, ainda na ativa, então lotado no Estado Maior das Forças Armadas, em Brasília.
A passeata passava e Ustra aplaudia e ia se empolgando. De repente, sem conter a empolgação, Ustra entra na passeata e segue em frente, marchando com os ruralistas.
Esbaforido, saí correndo pelo gramado central da Esplanada dos Ministérios, atrás de um fotógrafo, que registrasse a cena inusitada. Afinal, militares na ativa são proibidos de se manifestar politicamente.
Um pouco depois do Ministério da Justiça, acabei encontrando o fotógrafo Kim Ir Sen Pires Leal, da Agência Agil Fotojornalismo, e mostrei Ustra no meio da passeata. Ele fotografou Ustra em frente ao Ministério das Minas e Energia.
Chegando ao gabinete, telefonei para o Ricardo Noblat, que então dirigia a sucursal do Jornal do Brasil, o velho e bom JB, em Brasília, contei a história pra ele que, é claro, se interessou pelo assunto, comprou a foto da Ágil e publicou a notícia na página 5 da edição do JB de domingo, dia 12 de julho de 1987.
Por conta da matéria, Ustra cumpriu uns dias de cadeia, por transgressão ao RDE – Regulamento Disciplinar do Exército, que não permite manifestações políticas de oficiais na ativa, e logo depois passou para a reserva.
Tempos depois, comentei a história com Noblat, que não se lembrava dela, e comentou, com seu conhecido com humor: “Quer dizer que nós já prendemos o Ustra”.
É, faz sentido.
Mais do que isso, esses três episódios, apesar de absolutamente involuntários e frutos de uma ironia do destino, mostram que nós, que fomos presos e torturados no DOI-CODI do Doutor Tibiriçá, vencemos o “Marechal” de araque.
Vencemos porque sobrevivemos à prisão e às torturas. Para denunciar suas arbitrariedades e seus crimes e para continuar lutando pela liberdade, pela democracia e pelo respeito aos direitos humanos.
Tortura Nunca Mais!
Ditadura Nunca Mais!