19/08/2022
Por Djamila Ribeiro, na Folha
Depois de alguns anos de descrédito da Lava Jato, certa desonestidade intelectual permanece grassando no debate público no país.
Tenho lido algumas entrevistas dizendo que a Lava Jato foi anulada por “questões técnicas”.
Li isso na entrevista do escritor Vargas Llosa nesta Folha e em muitas outras mais.
Mas espera. Que “questões técnicas” são essas?
Seria de menor importância a falta de provas da propriedade de um imóvel no Guarujá, em que pesem todas as instâncias e recursos que foram mobilizados na investigação?
Aliás, a falta de provas nesse caso não é uma questão técnica, mas sim de mérito.
Ainda assim, seria algo irrelevante para a compreensão do caso a exibição pública de inúmeras mostras de comprometimento?
São questionamentos importantes, afinal esse mesmo ex-magistrado assumiu o Ministério da Justiça do candidato que foi beneficiado pelo afastamento do adversário nas eleições.
Alguma iniciativa haveria de guardar para a história todas essas “questões técnicas”.
Haveria de registrar para a posteridade os julgamentos relâmpagos, o PowerPoint e as conduções coercitivas espetaculosas, a interceptação telefônica ilegal de escritórios de advocacia, entre tantos abusos.
Um museu que pudesse mapear de que forma delações eram obtidas de manhã, divulgadas à noite e descartadas no dia seguinte com o estrago feito.
Um lugar em que uma visita nos levasse a questionar se é um funcionamento sadio das instituições a prisão ilegal por 580 dias do principal candidato nas pesquisas, sem crime comprovado e com parcialidade descarada.
De outro lado, um museu que relembre uma das mais emblemáticas ocupações da história recente do país, na porta da Polícia Federal de Curitiba.
A falta de consciência democrática é o que torna necessário dizer como é absurda a relação entre julgador e acusadores, que eram orientados sobre como e quando agir, sobre quem pegar, ainda que por filigranas jurídicas, ou quem não merecia ser melindrado.
Isso não é justiça, mas sim uma trama, uma farsa, que difama a imagem do país pelo mundo, fora todos os prejuízos internos causados.
Do ponto de vista da economia, em face do discurso de que valores teriam sido restituídos ao erário, pergunta-se qual foi o impacto na indústria nacional dessa operação.
Digo em termos de geração de desemprego e perda de potencial de mercado no cenário internacional. Ou seja, restituiu mesmo?
É necessário qualificar o debate para afastar as fórmulas rasas. E um espaço no qual isso possa ser verificado é fundamental.
Do ponto de vista moral, no combate à corrupção, questiona-se se, de fato, essa operação fez alguma coisa positiva nesse sentido.
A última vez que eu soube, o governo presidencial beneficiado pelo impeachment, como também o beneficiado diretamente nas eleições passadas, não era modelo de moralidade pública em lugar nenhum do mundo.
Como também não é exemplo a forma pela qual o Ministério Público Federal pretendeu assumir um fundo bilionário ao arrepio da legislação brasileira.
Isso não é uma “questão técnica”, é um fato grave.
É necessário um local que seja capaz de compilar quantos profissionais dessa instituição foram afastados e ou exonerados por condutas antiéticas.
Lawfare é como tem sido denominado o uso do direito, da mídia e da política como uma arma de guerra.
E é necessário refletir sobre os efeitos de uma imprensa monotemática por anos, que se deixou servir como divulgadora acrítica de notas oficiais de instituições e associações de classe do sistema de justiça.
Inaugurado neste mês, o Museu da Lava Jato é o centro de pesquisa e memória com fotos, documentos, vídeos, um amplo acervo sobre a operação.
Foram 14 profissionais das mais diversas áreas que catalogaram e sistematizaram o espaço, que começa online, mas que terá sua sede própria em 2023.
Idealizado pelo advogado Wilson Ramos Filho, o Xixo, o Museu já pode ser visitado pelo endereço museudalavajato.com.br.
“Lembrar para não repetir. Este é o foco principal do Museu da Lava Jato, a exemplo de tantos outros museus que buscam institucionalizar a memória de períodos de trevas pelos quais passaram determinadas sociedades em determinados períodos históricos”, explica Xixo.
Se não tivermos cuidado, o maior escândalo das instituições de Justiça da história vira uma “questão técnica” no país sem memória.
Avesso a eufemismos, o Museu da Lava Jato é muito bem-vindo.