24/08/2021
Querido por colegas professores e jornalistas, alunos e ex-alunos, Nilson Lage lutava contra um câncer e faleceu ontem (23/08/2021).
Considerado bibliografia básica nos cursos de Jornalismo, era graduado em Letras, mestre em Comunicação, doutor em Linguística e Filologia. Iniciou sua carreira docente em 1971, na Universidade Federal Fluminense. Posteriormente, lecionou na Universidade Gama Filho, Universidade Estácio de Sá, Faculdades Hélio Alonso, Universidade Federal de Minas Gerais, Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Hoje a ABI presta homenagem ao grande mestre, assim como universidades (veja link de homenagem da UFRJ abaixo) onde lecionou. A FENAJ (veja link abaixo), sindicatos de jornalistas de vários estados do país, professores e jornalistas manifestaram pesar em seus portais e midias sociais.
Abaixo, texto de Joao Batista de Abreu, jornalista, ex-aluno e professor (aposentado) do Curso de Jornalismo da UFF, e de Álvaro Nascimento, jornalista, ex-presidente do Diretório Acadêmico da Comunicação da UFF.
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Por Joao Batista de Abreu, jornalista, ex-aluno e professor (aposentado) de Jornalismo da UFF
Nilson Lage, um eterno professor
A morte do mestre e jornalista Nilson Lage, 85 anos, deixa órfãs algumas gerações que aprenderam com ele a arte e as agruras do jornalismo. Suas aulas ajudaram a tornar jornalistas críticos e apaixonados pelo país centenas de repórteres, redatores, editores, repórteres fotográficos, cinematográficos e diretores de redação que tiveram o privilégio de ser aluno dele. Por mais de 30 anos Nilson lecionou na Universidade Federal Fluminense, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Facha, Universidade Gama Filho e, por último, na Universidade Federal de Santa Catarina.
Natural do Engenho de Dentro, o jovem Nilson Lemos Lage cursou Medicina até o terceiro ano e abandonou para seguir a carreira de jornalista. Quando começou a lecionar na UFF, em 1971, seu único diploma foi-lhe dado pela experiência intensa de redação. Trabalhou no Diário Carioca, Última Hora, Jornal do Brasil, O Globo, Editora Bloch, O Jornal, entre outros. Enquanto dava aulas de Técnica de Redação para os estudantes de Jornalismo no IACS, estudava russo na UFRJ.
Copidesque arguto e exigente, gostava de provocar os repórteres: “Nunca recebi um Prêmio Esso, mas já escrevi três”. A capacidade de adaptar uma metodologia herdada da Linguística para ensinar técnicas de redação impressionava os alunos. Era incrível como era capaz de produzir textos mentais para dar exemplos em sala de aula. Mas certa vez um grupo de estudantes pregou-lhe uma peça. Em meio a uma aula em que ensinava como ludibriar os censores na redação, um aluno provocou: “E como vamos escrever quando a ditadura acabar?” O professor ficou sem resposta.
Nilson Lage era a tradução prática da dialética, ao mesmo tempo duro e afetivo, comunista e quase religioso com os amigos e ex-alunos. Carioca da Zona Norte, escolheu uma cidade parecida com o Rio para morar quando se aposentou na UFRJ. Mudou-se para Florianópolis e foi lecionar na Universidade Federal de Santa Catarina como professor titular.
Ex-aluno do Colégio Militar, orgulhava-se de haver tido aulas de marxismo no colégio. O corpo será cremado no dia da morte de Getúlio Vargas, um de seus ídolos. Dizia que o aumento do salário mínimo quando era presidente no segundo mandato é que permitiu à família custear seus estudos. Crítico da ditadura civil-militar (1964-1985), Lage elogiava o acordo nuclear com a Alemanha, assinado no Governo Ernesto Geisel, que previa a transferência de tecnologia para o Brasil, ao contrário da usina nuclear construída em convênio com os Estados Unidos. Era literalmente um nacionalista.
Os conhecimentos repassados nas redações e na sala de aula para centenas de discípulos – muitos deles se tornaram mais tarde professores universitários – vão contribuir para eternizar Nilson Lage nos cursos de Jornalismo. Como dizia Guimarães Rosa, certas pessoas não morrem; ficam encantadas. Nilson certamente é um delas.
Permitam-me dizer. Quando se encontrar com Deus lá em cima, vai puxar conversa e lhe mostrar o dualismo aristotélico das primeiras frases do manifesto comunista. E não duvido que converta o velhinho com argumentos humanistas.
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Por Álvaro Nascimento, jornalista, ex-presidente do Diretório Acadêmico da Comunicação da UFF
Nilson Lage não morreu
Tem gente neste mundo que se encaixa de corpo e alma naquela parábola segundo a qual há pessoas que estão fadadas a não morrer. É um tipo de gente que, por ser tão especial, vai deixando pedacinhos dela dentro de cada um que cruza seu caminho. E aí quando elas eventualmente deixam de estar presentes fisicamente não morrem, porque seguem vivas perambulando pelo mundo no interior daqueles que tiveram a oportunidade de com elas conviver e receber seus pedacinhos, que lhes servem de luz, estímulo e lhes dá força para prosseguir. Estes seres especiais ficam.
Nilson Lage é uma destas raras pessoas que não morrem. E eu sou uma das centenas (talvez milhares) de pessoas que teve a sorte de receber meu pedacinho dele quando ainda tinha magros 18 anos recém feitos, dando meus primeiros passos no curso de jornalismo da UFF, em 1975. E como esse pedacinho de Nilson Lage me serviu nestes quase 50 anos em que o carrego comigo!
Não vou me deter aqui no fato de Nilson ter dado uma enorme contribuição intelectual e política à construção de uma Teoria do Jornalismo, construindo conceitos já devidamente conhecidos por quem estuda a profissão lendo seus vários livros, sendo o mais conhecido “Ideologia e Técnica da Notícia”, de 1979, onde ele analisa de forma primorosa não apenas os aspectos históricos, mas também ideológicos na imprensa.
Também não vou analisar sua invejável carreira acadêmica como Doutor em Linguística e Filosofia; Mestre em Comunicação; Bacharel em Letras; Professor Titular da UFSC, Adjunto da UFRJ e da UFF. Tampouco me debruçarei sobre outros livros escritos por ele, como “A reportagem: teoria e técnica de entrevista e pesquisa jornalística”, “A linguagem jornalística”, “Teoria e técnica do texto jornalístico” e “A estrutura da notícia”. E menos ainda sobre sua carreira como jornalista, no Jornal do Brasil, Última Hora, TV Educativa do Rio e mais recentemente no blog Tijolaço.
Além desta capacidade intelectual invejável, de na prática ser um professor de ética inigualável, de – como cidadão apaixonado pelo Brasil e por nossa gente – sempre ter estado do lado certo da História, enfim, predicados já bastante conhecidos, Nilson Lage encharcava de emoção tudo o que fazia. E é este aspecto de sua personalidade que quero homenagear, citando um fato que me marcou de forma definitiva.
Em 1975 estávamos no primeiro ano do curso de jornalismo na UFF e Nilson enfrentava a perseguição do regime militar por seus posicionamentos antiditadura, o que lhe trazia problemas no âmbito universitário. Ele, como alguns outros professores, sofria o pão que o diabo amassou. Nilson ministrava a disciplina “Técnica de Redação de Jornal Diário I” e a direção da faculdade tentou utilizar como forma de punição a ele a colocação de suas aulas aos sábados e, pior, às 8 horas da manhã. Isso em um curso cuja opção no vestibular dizia ser noturno, onde a esmagadora maioria dos alunos morava no Rio e formado principalmente por jovens de origem pobre que, como eu, já trabalhavam. E que tinham na sexta-feira à noite, historicamente, o melhor horário de relaxamento, com as indefectíveis noitadas em bares e casas de dança, que em muitas ocasiões enveredavam por paqueras e namoros madrugada a dentro. Imagina estarmos inteiros às 8 da manhã do dia seguinte, numa sala de aula, em Niterói, para aprender técnica de redação!
Quando notamos que aquilo se revestia numa punição dissimulada ao Nilson, começamos entre nós, alunos, um movimento para dar uma resposta a mais contundente que o momento de ditadura permitia. Vale lembrar que estávamos sob a égide do famigerado Decreto-lei 477, que tornava legal a expulsão do aluno que promovesse qualquer atividade política no interior do campus universitário. Vigia o AI-5, as prisões arbitrárias de inimigos do regime, a tortura e foi naquele ano que mataram Vladimir Herzog nos porões do Doi-Codi paulista.
Para não deixar barato, fixamos o compromisso de, acontecendo o que acontecesse na sexta-feira e madrugada, estaríamos “inteiros” todo sábado daquele semestre, às 8 em ponto, na sala de aula, de forma a demonstrar que a tentativa de esvaziar a disciplina do Nilson não tinha surtido nenhum efeito. E como éramos uns chatos de marca maior, ainda chamamos alunos de outros semestres, até porque as aulas do Nilson eram realmente notáveis. Até gente que tinha feito a disciplina e sido aprovada em semestres anteriores retornava para tirar uma “casquinha”. Era nossa resposta à direção da Faculdade e o que o momento permitia fazer.
Lembro do primeiro dia da aula como se fosse ontem. Nilson não sabia de nada que havíamos aprontado, chegou cedo e esperava obviamente encontrar meia dúzia de gatos pingados. Quando ele chegou e ao invés de gatos pingados encontrou uma sala lotada, com todas as cadeiras ocupadas, parou ao lado da mesa do professor, colocou sua pasta sobre ela, cruzou os braços ainda de pé e ficou a olhar demoradamente para o rosto de cada um de nós por vários minutos. Já no meio deste olho no olho, os lábios de Nilson começaram a tremer levemente e duas lágrimas desceram pelo seu rosto. Ele não as retirou. Instintivamente começamos a bater palmas em sua direção e alguns de nós – eu inclusive – nos emocionamos também, fomos até ele e o abraçamos. Não foi dita uma só palavra, fosse sobre a punição dissimulada, fosse sobre nossa mobilização para lotar a disciplina dele. Não era preciso.
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FENAJ presta homenagem a Nilson Lage