22/01/2023
Por José Henrique Mariante, ombusdman da Folha da São Paulo
“Fotojornalismo é arte”, declarou a fotógrafa da Folha Gabriela Biló ao jornal O Globo na última semana. A polêmica em torno de seu trabalho, uma imagem de Luiz Inácio Lula da Silva filtrada por um vidro estilhaçado no Palácio do Planalto, publicada na Primeira Página de quinta-feira (19), foi tão grande que mereceu a atenção do concorrente. Na verdade, causava barulho desde a noite de quarta (18), quando apareceu no site do jornal e rapidamente no descaminho das redes sociais.
A discussão correu solta. A interpretação de um suposto incentivo à violência bolsonarista e ao golpe só perdeu para a certeza de que a Folha é antipetista, entre as muitas mensagens enviadas por leitores. A própria fotógrafa se sentiu compelida a dar sua versão: Lula sorrindo e arrumando a gravata, por trás de um vidro quebrado na altura de seu coração, seria uma prova da resistência do presidente. Cada cabeça, uma sentença.
Cenas que insinuam uma realidade além da retratada sempre causam polêmica. A fotografia de Dilma Rousseff atravessada por uma espada, publicada por O Estado de S.Paulo em 2011, ganhou prêmios, mas também muitas críticas pela percepção de uma mensagem subliminar de rejeição da mídia à então presidente. Como agora, sobravam cabeças, sentenças e pauladas no PT.
O ombudsman, em um primeiro momento, não percebeu o efeito e considerou a imagem impressionante em crítica interna. Acreditou no que viu como muitos assinantes. Reformou sua opinião ao tomar conhecimento de que a imagem era uma montagem na prática. Ou uma imagem feita com a técnica de dupla exposição, como explica sua sucinta legenda, mas que resultou inevitavelmente em uma montagem. A fotógrafa e o jornal refutam a descrição. Não têm opção, já que o artifício é vetado pelo Manual da Redação (pág. 106): “… são proibidas adulterações da realidade retratada, tais como apagar pessoas ou alterar suas características físicas, eliminar ou inserir objetos e mudar cenários”.
Exceções são listadas, como a preservação da identidade de menores e de informações sensíveis. Montagens só são permitidas em “imagens de cunho essencialmente ilustrativo”. Para um jornal tão cioso de padrões e fundamentos, que não se permite chamar golpistas de terroristas antes da devida apuração, por exemplo, tal leitura de seu próprio livro de regras soa conveniente.
No universo externo ao jornal, segundo profissionais da área, a publicação da Folha tampouco resistiria aos códigos de conduta das grandes agências de notícias.
“A Fotografia da Folha está modernizando o registro imagético tradicional do poder em Brasília. Preferimos correr os riscos da renovação a reforçar a pasmaceira”, afirmou a Secretaria de Redação quando indagada sobre a conexão conceitual desse tipo de trabalho com a linguagem das redes sociais, em geral rápida, estridente e quase sempre óbvia.
Seria bem-vindo que o jornal também corresse outros riscos, como o de participar do debate. Quem falou publicamente do assunto até aqui foi apenas a fotógrafa, parte importante, mas não a única na decisão de edição da imagem. O jornal promete um seminário interno, mas seria muito mais interessante submeter-se ao escrutínio de leitores e especialistas, não apenas convidá-los para escrever artigos.
Teria a chance de explicar por que não teme ver seu combativo jornalismo, conservado a duras penas nos últimos anos, ser confundido com manipulação. Aumentar a realidade é uma ideia tentadora, mas dilata tudo, de intenções editoriais à ambiguidade. Fotojornalismo pode até virar arte, mas nunca dúvida.