14/10/2008
Colaboração de Altamir Tojal, jornalista e escritor
Há uma guerra feroz pelo espólio da crise financeira global. Sabe-se que os mercados não serão como antes e que o capitalismo não será o mesmo. Mas que mundo surgirá daqui para frente?
Não se trata de adivinhar o mundo do futuro fugidio, mas de viver o mundo de amanhã mesmo, aquele no qual acordaremos depois da próxima noite. Ele está sendo moldado agora, minuto a minuto, no calor da crise, no embate entre os que querem os mercados mais ou menos vigiados pela sociedade e, sobretudo, na definição de quem pagará a conta dos danos e quem ganhará com a recuperação da economia global.
Aqui, o nosso Ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, disse que “se precisar”, vai “enfiar a faca”, referindo-se a cortes nos investimentos públicos e ao adiamento de programas sociais. E não são poucos os que preconizam mais do mesmo, ou seja, do mesmo catecismo da submissão da sociedade aos mercados, o catecismo que nos guiou para a crise.
Estes são os que acusam “a mão intervencionista do Estado” de ter provocado a crise global, exatamente por desmontar e subverter os limites e controles que existiam no sistema financeiro norte-americano e de outros países. E qual foi o resultado disso? Foi deixar “a mão invisível do mercado” mais à vontade para multiplicar lucros sem lastro na realidade da economia.
Estes são os mesmos que acusam agora os governos de “estatismo exacerbado”, porque decidiram comprar ações dos bancos para evitar que a ruína deles seja a ruína de todos nós.
Ora, não existe a rigor, no capitalismo, conflito entre “mão do Estado” e “mão do mercado”. A maior prova disso é esta megaoperação de salvação de bancos pelos governos de todo o mundo. Diz o economista Robert Shiller, renomado especialista em crises financeiras: “O envolvimento dos governos com a economia é uma questão de medida, não de absolutos.”
O Estado intervém sempre, mesmo quando não intervém. Deixar os mercados à vontade é uma das formas mais perversas de intervenção. Significa soltar os predadores para o banquete na sociedade. Primeiro se saciam com os mais fracos; depois partem para se devorar. Aí, a bolha — ou a bomba — explode.
Muito mais que um embate de idéias, a guerra feroz pelos despojos da crise é uma guerra de interesses. É uma luta pelo controle. Quem vai controlar quem a partir de agora? Quem vai mandar mais e fazer o mundo ser de acordo com o que quer?
O que testemunhamos nos últimos anos foi a exacerbação do controle sobre os indivíduos e a sociedade e a absoluta leniência com os mercados e o capital.
Vivemos sob um sistema capaz de saber tudo sobre cada um de nós, que nos vigia o tempo todo. Pense no que acontece se você deixar de pagar a conta do cartão de crédito ou se não declarar cem reais ao Imposto de Renda. Ao mesmo tempo, esse sistema fingia ignorar a farra irresponsável das finanças bilionárias.
Bem, agora os governos estão tendo de pagar o maior resgate da História da Humanidade para evitar que a sociedade seja massacrada pela crise causada pela orgia financeira.
As leis e os Estados são produções dos homens e de seus interesses. O que precisamos mais nesta hora é de ação política, para evitar que os mesmos homens que nos levaram a esta crise mantenham o poder absoluto de antes, submetendo a sociedade aos mesmos interesses.
Esta grande e urgente missão política é irmã de outra, igualmente desafiadora e imediata: não deixar o Ministro enfiar a faca no social.
Ao contrário, Ministro, a crise deve nos deixar com mais vontade de investir e trabalhar para que o mundo da próxima manhã seja melhor que este. O senhor sabe que a sustentabilidade da economia brasileira hoje vem de políticas econômicas responsáveis com a moeda e com o orçamento público. Mas o outro componente disso são as políticas de investimento, emprego, valorização dos salários e transferência de renda para os mais pobres.
É preciso acreditar e apostar nisso. E pensar livre do medo e do terror do mesmo. Estão presentes hoje possibilidades poderosas de mudança, não só para vencer esta crise, mas também para construir um modo de vida que corresponda à extraordinária capacidade do homem de produzir mais com menos trabalho e menos capital. Em vez resultar na próxima bolha, isso pode e tem de ser conduzido — pela ação política da sociedade — para a introdução de padrões distributivos funcionais para os novos meios produtivos.
É esta escolha que está em jogo na guerra de palavras e de idéias pelo espólio da crise.