17/07/2020
MEMÓRIAS LGBTIQ: MAIS DO QUE VAGAS LEMBRANÇAS
Por Alexandre Gaspari, jornalista e doutorando em Ciências Sociais, na área de gênero e sexualidade
Cresci escutando de meu pai que, por estar envelhecendo, ele já não tinha mais memória, mas apenas uma “vaga lembrança”. Brincadeiras à parte, sabemos que o tempo nos leva muitos fatos e nos deixa momentos cuidadosamente selecionados por nossas mentes. É para amenizar essa seleção nada natural que existem arquivos, documentos, registros, fotos, enfim, tudo aquilo que pode (re)construir histórias que vão muito além do que o que vivemos e que escolhemos lembrar – ou que nossas mentes nos permitem lembrar com o passar do tempo.
Muito se fala que o atordoado momento político que vivemos no Brasil atualmente é resultado de “falta de aula de História”. De fato, as redes sociais e seu bombardeio de informações e de (muita) gente que confunde opinião rasa com informação fundamentada mostram que temos sérias falhas nesse ponto. O que reforça ainda mais a necessidade de resgatarmos histórias e memórias, cuidar delas, preservá-las, oferecê-las amplamente ao público, torná-las acessíveis e disponíveis a toda e qualquer pessoa. E essa disponibilidade tem de se dar não apenas com os chamados “grandes fatos históricos” – já tão distorcidos em tempos de “pós verdade” e fascismo à solta, não apenas no Brasil, mas em várias outras partes do mundo –, mas também com o resgate de ações de pessoas e grupos que fazem parte daquela “história que não está nos livros de História”.
Uma iniciativa de reconstrução histórica de um desses grupos que não aparecem nos livros é a revista “Memórias LGBTIQ+” (www.memoriaslgbt.com). Criada em 2013, a “Memórias” é uma publicação digital e colaborativa. Trata-se de um projeto de registro, preservação e difusão da história e da memória LGBTIQ+ – Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans, Intersexos e Queer – que surgiu entre museólogos, a partir da criação da Rede LGBT de Memória e Museologia Social.De lá para cá foram 11 edições, ou seja, menos de duas publicações por ano, e, segundo os responsáveis pela revista, 128 memórias registradas.
A primeira edição, de outubro/novembro de 2013, dedicada a discutir a condição de lésbicas, gays e trans negros e negras, trouxe como destaque de capa o pernambucano José Francisco dos Santos. Seria o nome de mais um “malandro” da boemia da Lapa não fosse sua “identidade” (nada) oculta:Madame Satã. A “Memórias” reproduziu uma entrevista feita pelos mestres Sergio Cabral, Paulo Francis, Millôr Fernandes, Chico Júnior, Paulo Garcez, Jaguar e Fortuna no saudoso Pasquim em 1971. História LGBT pura. E também do jornalismo brasileiro.
De 2014 até setembro de 2015, a revista manteve edições trimestrais regulares. Três delas – ser lésbica, ser gay e ser trans na favela –, publicadas em abril e agosto de 2015, integraram um projeto contemplado pelo II Programa de Fomento à Cultura Carioca, da Prefeitura do Rio. Mas, já refletindo o conturbado processo político que corroía o país na época e que culminou com o impeachment da presidenta Dilma Rousseff em maio de 2016, a “Memória” travou. Uma nova edição, com capa dedicada aos Dzi Croquettes, foi publicada em agosto/setembro de 2016. Depois disso, somente o último número (edição 11), com data do primeiro semestre deste ano. Ou seja, a revista ficou quase quatro anos fora do ar.
Mas, em tempos de pandemia e de tentativas crescentes de apagamento da memória de modo geral, não há nada tão ruim que não possa piorar. A “Memórias LGBTIQ+” pede socorro e lançou uma vaquinha virtual para arrecadar recursos. Afinal, é uma publicação gratuita, e mesmo sendo construída de forma colaborativa há despesas. Sobretudo porque resgatar o que ficou “no armário” durante tanto tempo –não por escolha, mas por ações constantes de invisibilização da população LGBT – precisa de gente capacitada e disposta a descobrir, pesquisar, apurar, buscar. Aquilo que nós, jornalistas, sabemos muito bem como é (ou como deveria ser).
É fato que a situação da “Memórias” não é diferente da realidade de várias revistas e jornais que vêm e vão no mercado editorial. Mas esse sufoco se torna mais dramático porque não se trata de apenas um insucesso comercial, de um “projeto que não deu certo”. Não são apenas as “forças ocultas do mercado” agindo, mas sim uma mão nada invisível que empurra a população LGBT para o armário do qual ela não pediu licença para sair. A mesma mão que empurra mulheres, negras e negrose todas as minorias de poder para “seus devidos lugares”.
Assim, não falo aqui de uma revista, uma publicação, um jornal. Falo de um processo árduo de reunir as “vagas lembranças” que estão aqui e ali e transformá-las numa memória, numa história que precisa ser (re)conhecida, não apenas por jovens que não viveram tais momentos, mas por gente que “estava lá” sem estar. A população LGBTIQ+ vem conquistando direitos civis igualitários que não caíram do céu ou foram concedidos por boa vontade. São o resultado da ação de muita gente que lutou, apanhou, correu, gritou e até morreu para ter o direito de ser quem é. Histórias que precisam ser conhecidas, contadas, registradas, exibidas. E nós, jornalistas, temos papel crucial nessa história.