Emoção e pedidos de mais agilidade e eficiência nos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade marcaram a entrega da Medalha Chico Mendes de Resistência, na última segunda-feira, 1º abril, em cerimônia realizada no edifício-sede da ABI. Em sua 25ª edição, a premiação homenageou personalidades e instituições que se destacaram na defesa dos direitos humanos. Também foram entregues medalhas
in memoriam para os que perderam a vida na luta pela construção de um País mais justo.
O evento contou ainda com uma apresentação de dança, música e poesia organizada por membros do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra – MST-RJ, em homenagem a Cícero Guedes dos Santos e Regina dos Santos Pinho, líderes do movimento assassinados no município de Campos, no Norte Fluminense, respectivamente em janeiro e fevereiro de 2013.
De acordo com a Presidente do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro – GTNM/RJ, Victória Lavínia Grabois Olímpio, esses dois episódios, assim como o suicídio de Carlos Alexandre Azevedo, o Cacá, de 40 anos, torturado por agentes da ditadura com um ano e oito meses de idade, estimularam a entidade a mudar os critérios para a escolha dos homenageados de 2013.
— Esse ano já começou violento. A morte dos companheiros do MST é resultado da violência dos latifúndios, da demora do Estado brasileiro em realizar a reforma agrária, da demora do INCRA em assentar as famílias e da impunidade. O GTMN exige que os autores dos correspondentes crimes sejam identificados e julgados. Além disso, a morte de Cacá é prova das consequências nefastas da ditadura através das gerações e aponta a necessidade de que tamanho terror nunca mais aconteça, defendeu Victória.
Victória também não poupou críticas à Comissão da Verdade, constituída em 2008. Para ela, os principais problemas do grupo é o número reduzido de comissionados, escolhidos diretamente pela Presidência da República; a ampliação para 42 anos do período a ser investigado, de 1946 a 1988; e a falta de conclusões no trabalho realizado.
— Exigimos que a Comissão investigue as atrocidades cometidas e envie às entidades competentes a responsabilização dos criminosos. Ela precisa divulgar suas conclusões, ela não pode continuar guardando sigilo e produzindo esquecimento. Não podemos simplesmente aceitar uma Comissão que não discutiu amplamente com a sociedade seus fundamentos. Também exigimos que todos os arquivos da ditadura sejam abertos e “publicizáveis”. E que o período de terrorismo de estado de 1964-1985 seja efetivamente investigado.
A Presidente expôs ainda a delicada situação financeira que enfrenta o GTNM/RJ. O Grupo, que não conta com apoio do Estado ou de partidos, assiste ao escasseamento de recursos vindos de parceiros, especialmente do exterior, o que compromete programas de assistência clínica e psicológica a vítimas da violência estatal. Durante o evento, o advogado e jornalista Antonio Modesto da Silveira aproveitou para doar à organização um cheque de R$ 650, em pagamento de um artigo produzido a uma revista alemã.
Representando a ABI, o jornalista Mario Augusto Jacobskind reforçou o apoio da Casa do Jornalista, próxima a completar 105 anos de sua fundação, na busca pela verdade e na defesa dos direitos humanos e da justiça.
— A abertura dos arquivos do Regime Militar é nossa exigência. Nesse momento a ABI também abraça a campanha de Ivo Herzog, para a saída de José Maria Marin da presidência da Confederação Brasileira de Futebol – CBF. Trata-se de uma campanha legítima, que pretende tirar uma figura como essa, envolvida na morte do jornalista Vladmir Herzog, da presidência do esporte mais popular do País.
Comoção
Um dos momentos de maior emoção da noite foi a entrega da Medalha Chico Mendes de Resistência de Carlos Alexandre Azevedo à sua mãe, Darcy Azevedo, e a seu irmão Estevão. Ainda vivendo o período de luto pela morte de seu filho em fevereiro, Darcy defendeu que momentos como esse lembram o quanto ainda é preciso ser feito em nome da Justiça. Os crimes cometidos contra ela e contra seu filho ainda bebê continuam impunes.
— Diariamente, o povo é bombardeado com notícias de injustiça, de morte, e acaba se acostumando. Torna-se algo banalizado, que não gera mais emoção, torna-se normal. Muito antes da ditadura militar, nossa luta já era por uma sociedade de homens novos, onde não haveria injustiça, nem desigualdade. Agora, nossa luta é para que a verdadeira história venha à tona, e que a justiça seja feita. Considero que essa Medalha da Resistência é significativa, pois acredito que meu filho conseguiu resistir durante 40 anos.
Outro contemplado com a Medalha da Resistência foi o documentarista brasileiro Sílvio Tendler. Dono das duas maiores bilheterias brasileiras de documentários, “Jango”, com 1 milhão de espectadores, e “Anos JK”, com 800 mil, o cineasta foi intimado em dezembro no ano passado a prestar depoimentos em uma delegacia no Rio, acusado de incitar a violência em um protesto contra a ditadura na porta do Clube Militar, oito meses antes, ao qual sequer compareceu.
— Essa é a medalha mais emocionante que recebi na minha vida, porque ela emana da sociedade civil. Ela vem daqueles que sofreram a tortura, foram presos, que perderam seus entes queridos, que ainda buscam familiares. Ela vem dos sem terra, sem teto, quilombolas, índios, mães de maio, de todos que querem justiça.
Tendler cobrou ainda mais incentivo ao cinema não-comercial.
— Gostaria de prestar ainda meu apoio a artistas que lutam por um cinema que vai além de um cinema de mercado. Os cineastas que fazem sucesso nas periferias, nas lages, nos cineclubes, mas que não tem esse público contabilizado oficialmente. As estatísticas consideram apenas os pagantes de salas de cinema, sendo que 89% das cidades brasileiras não têm salas. Esse público não é preconceituosamente contabilizado. O órgão oficial não tem nenhuma política para o jovem de periferia, que filma com telefone celular, câmera barata. Exista apenas uma política voltada apenas para o grande cinema. Nós, cineastas brasileiros, queremos contar a realidade do povo do Brasil. Devemos lutar para que o cinema brasileiro recupere a História do Brasil, a História verdadeira, que emana das periferias.
Entidades homenageadas
A Medalha Chico Mendes também foi entregue a entidades que se destacaram ao longo do ano de 2012 por sua luta de resistência por uma sociedade mais justa e livre. Uma das homenageadas foi o Movimento Mães de Maio, formado por parentes de vítimas da violência policial do Estado de São Paulo. Crimes cometidos por agentes do Estado em maio de 2006 — considerado o maior massacre da história contemporânea nacional —, abril de 2010 e em 2012 foram arquivados sem que ninguém fosse punido.
O grupo luta hoje conta o desarquivamento, a federalização, o julgamento e a punição dos responsáveis pelos crimes, fim dos “autos de resistência seguida de morte” em todo o Brasil e a desmilitarização das polícias. Para Débora Maria da Silva, uma das fundadoras do movimento, cujo filho, o gari Edson Rogério Silva dos Santos, de 29 anos, foi assassinado em 2006, a medalha é um combustível para continuar sua luta.
— Eu, como mãe de vítima de maio de 2006, atravessei São Paulo para vir ao Rio de Janeiro receber essa medalha de resistência, que faz com que nosso grito por justiça seja tão grande quanto o daqueles que perderam familiares na ditadura. Vivemos uma ditadura continuada, onde a história de quem luta não é contada. A Mãe é Maio é mãe da democracia e não se tem democracia sem conhecer o passado. Os crimes continuam, porque a impunidade ainda fala mais alto, mas as Mães de Maio não se intimidam, vão além. Elas são mães de hoje, de ontem e de sempre. Nem um passo atrás pelos nossos mortos.
Outra organização a receber a Medalha foi a Comissão Pastoral da Terra do Acre – CPT/AC. A sede da instituição, que denuncia irregularidades em planos de manejo florestal e ação de madeireiros e fazendeiros no Estado, já foi invadida sete vezes, a última no dia 30 de janeiro, com roubo de equipamentos, documentos e inclusive do boletim de ocorrência no qual foram denunciadas invasões anteriores. Maria Darlene Braga Martins, agente da CPT ameaçada de morte, denunciou que o Estado usa o nome de Chico Mendes para atrair recursos, mas faz pouco pelos mais necessitados.
— No Acre, temos avenida Chico Mendes, rua Chico Mendes, até restaurante que leva seu nome, mas a luta Chico Mendes está sendo conduzida por poucos. O Estado se apropria de seu nome para trazer recursos, mas os seringueiros estão sendo ameaçados e expropriados por madeireiros em nome do poder econômico. A grilagem aumenta, a pecuária e o agronegócio tem impulso com aval do estado e nosso povo está morrendo.
Veja abaixo a lista completa dos vencedores da Medalha Chico Mendes 2013.
1 – Cícero Guedes dos Santos (in memoriam), líder do MST, assassinado em janeiro de 2013 no Norte Fluminense. Medalha entregue por Rosa Roldan, do Comitê Chico Mendes, a Luciene Guedes dos Santos, viúva de Cícero.
2 – Regina dos Santos Pinho (in memoriam), integrante do MST, encontrada morta em fevereiro de 2013 no Norte Fluminense. Medalha entregue por José Pimenta, do Centro Brasileiro de Solidariedade dos Povos – Cebraspo, a Edel Gomes Pinho Neto, filho de Regina.
3 – Daniel Ribeiro Callado (in memoriam), militante do PC do B e integrante da Guerrilha do Araguaia, desaparecido político. Medalha entregue por Eliana Rocha, do Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Petrópolis, a Miriã e Ubiracy Callado, irmãs de Daniel.
4 – Octávio Brandão (in memoriam), político e ativista brasileiro, militante e teórico do Partido Comunista Brasileiro – PCB. Medalha entregue por Zuleide Faria de Melo, do PCB, a Dionísia e Iracema Brandão, filhas de Octávio, e Marisa Brandão, neta.
5 – Patrícia de Oliveira da Silva, da Rede de Comunidades e Movimento Contra a Violência. Medalha entregue por Rafael Dias, representante da Justiça Global.
6 – Divino Ferreira de Sousa (in memoriam), militante do PC do B e integrante da Guerrilha do Araguaia, desaparecido político. Medalha entregue por Erica da Silva, do MST, a Elizabeth Silveira, do GTNM/RJ.
7 – Comissão Pastoral da Terra – CPT-Acre. Medalha entregue por Marco Antonio dos Santos, da Organização Comunista Arma da Crítica, a Maria Darlene Braga Martins, do CPT.
8 – Movimento Mães de Maio – organização de mulheres que tiveram filhos assassinados em ações violentas da Polícia Militar de SP. Medalha entregue por Rafael, da Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violência, a Vera Lúcia Gonzaga dos Santos e Débora Maria da Silva, integrantes do movimento.
9 – Luis Eduardo da Rocha Merlino (in memoriam), jornalista, militante do Partido Operário Comunista – POC, assassinado na Operação Bandeirantes em 1971. Medalha entregue por Mario Augusto Jacobskind, da ABI, a Angela Mendes de Almeida, sua companheira na época, e sua sobrinha Tatiana.
10 – Macarena Gelman – Argentina, filha de desaparecido político encontrada pelo avô. Medalha entregue por Wadih Damous, ex-presidente da OAB/RJ e presidente do Conselho Estadual da Verdade, a Igor Grabois, militante do PCB e filho de perseguido político.
11 – Silvio Tendler, documentarista brasileiro. Medalha entregue por João Tancredo, do Instituto de Defesa de Direitos Humanos – DDH.
12 – Carlos Alexandre Azevedo (in memoriam), filho de presos políticos, torturado com um ano e oito meses de idade. Medalha entregue por Vivian Fraga, do Conselho Regional de Psicologia – CRP/RJ, a Darcy Azevedo, mãe de Carlos Alexandre, e seu irmão Estevão.