02/07/2021
Embora o Código Penal Militar (CPM) preveja hipóteses em que as condutas de civis poderão ser consideradas crimes militares, como afirma em artigo nesta Folha o presidente do Superior Tribunal Militar (STM), ministro general de Exército Luis Carlos Gomes Mattos (“Críticas, sim; ofensas, não”, 30/6), o Supremo Tribunal Federal tem entendido que apenas nos casos em que as “instituições militares” são afetadas é legítima a caracterização do fato como crime militar. Nos casos em que não se verifica a capacidade da conduta do autor de “atingir as Forças Armadas”, a corte afasta a competência da Justiça Militar e a aplicação do Código Penal Militar.
Apesar da interpretação restritiva que predomina na jurisprudência do Supremo, os critérios assentados nas expressões “afetar as instituições militares” e “atingir as Forças Armadas” ainda abrem espaço para a aplicação ilegitima do Código Penal Militar e para a fixação da competência junto à Justiça Militar.
Em boa hora, a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) propõe que o STF reaprecie a matéria por meio da ADPF (arguição de descumprimento de preceito fundamental) 826. Em um momento de guinada autoritária, em que o governo trivializa a presença militar na execução de tarefas civis, a atuação do Supremo é urgente e necessária.
O tema demanda reapreciação pelo STF sob o prisma da liberdade de expressão e do direito à informação. A submissão à Justiça castrense e a aplicação do Código Penal Militar produzem efeito resfriador sobre todos aqueles que desejam publicar notícias sobre as Forças Armadas.
Considere-se, por exemplo, jornalista que publica reportagens imputando condutas criminosas a militar na execução de operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO). Por que a eventual calúnia deveria ser caracterizada como “crime militar”? Observe-se que, nesse caso, as Forças Armadas se encontram cumprindo suas funções institucionais amparadas no artigo 142 da Constituição. Por que a crítica aos militares mereceria tratamento diferente da crítica dirigida aos servidores públicos civis?
A distinção não se sustenta, implicando a violação do princípio da igualdade. A circunstância de operarem o monopólio estatal sobre o uso legítimo da força deve tornar as instituições militares mais abertas à crítica pública e não o contrário. A rigor, não tem sentido julgar jornalistas pela prática de crime contra a honra, de modo diferente, com base em critérios especiais, quando se trate de ofendido militar. As instituições públicas, civis ou militares, integram a “res publica” (coisa pública). Devem, portanto, se submeter à permanente fiscalização por parte da cidadania crítica.
Os dispositivos constantes do CPM que limitam a liberdade de expressão devem se aplicar apenas a militares. As Forças Armadas são organizadas com base nos princípios da hierarquia e da disciplina. Trata-se de um regime especial a que se submetem os militares, não podendo ser estendido aos civis.
No atual momento da vida nacional, o Brasil precisa como nunca de uma esfera pública crítica e do estabelecimento de salvaguardas para que a cidadania possa iluminar todos os espaços em que o poder pretenda se exercer secretamente.