Jornalismo em “off” e as ameaças à democracia: quem está querendo a guerra?


06/02/2022


Por Ricardo Kotscho, publicado no portal UOL.

“A nova guerra entre a esquerda e bolsonaristas: quem ameaça mais a democracia?”, pergunta minha velha amiga Eliane Cantanhede, no título da sua coluna de hoje no Estadão, que virou inho.

Como a respeito muito, desde os nossos tempos de colegas nos áureos tempos da Folha do seu Frias, embora a gente pense muito diferente, li o título e corri para ler que guerra é essa.

Ao final do texto, fiquei frustrado. Para haver uma guerra, nova ou velha, são necessários pelo menos dois lados armados e um motivo concreto para ameaçar a democracia. Lembrei-me daquele humorista português, o Raul Solnado, todo paramentado para o combate, que perguntava: “Aonde está a guerra que eu não vejo?”

Não existe guerra de um lado só como acontece hoje no Brasil. A única guerra que temos é a do governo bolsonarista contra os alicerces da nação, uma guerra de extermínio dos adversários e das instituições nacionais, com o único objetivo de se manter no poder para garantir o foro privilegiado e não ir para a cadeia. Essa é a única ameaça real à democracia.

Escreve Eliane: “Se o Supremo, setores do congresso e da opinião pública trabalham com a hipótese de Bolsonaro reagir a la Donald Trump em caso de derrota, grupos bolsonaristas, inclusive da área militar, reagem na mesma moeda: segundo eles, se alguém tem condições de agitar as ruas do país são Lula e a esquerda”.

Como assim? De onde a “área militar” tirou esta brilhante conclusão? Quem são esses militares, quais são os fatos concretos que eles apresentam para justificar a tal ameaça de “Lula e a esquerda?”. Quando foi que Lula “agitou as ruas do país”, mesmo tendo perdido três eleições seguidas antes de chegar à Presidência da República, e nela permanecer por oito anos, sem nenhum sinal de querer uma guerra, muito ao contrário. Foram tempos de paz e de concórdia.

Nunca os militares foram tão citados como agora nas colunas de política, nem nos tempos da ditadura militar. Curioso é que nunca aparece o nome de nenhum deles, como se “os militares” fossem alguma entidade sobrenatural a prever acontecimentos, assim feito uma Mãe Diná dos quartéis.

Essa é a praga do jornalismo em “off”, que grassa cada vez mais na nossa imprensa, e nos deixa a impressão de não sabermos mais com quem estamos falando.

Podem reparar: na maioria dos textos, são sempre fontes anônimas, e não só de militares, mas também das lideranças políticas civis nas análises sobre a campanha eleitoral, com declarações entre aspas que não sabemos de quem são.

“No discurso público e nos bastidores, oficiais do Exército, Marinha e Aeronáutica garantem que não participarão de nenhuma `aventura golpista´ a favor de Bolsonaro ou de ninguém (…) Nas conversas de pé do ouvido, porém, as três forças trabalham com variados cenários e o mais drástico é o de convulsão nacional. Isso vale para o caso de derrota de Lula, não só para a de Bolsonaro”, relata Eliane Cantanhede.

Quem vem falando em caos e convulsão social, desde que tomou posse, é apenas Bolsonaro. Jamais houve uma ameaça de “Lula e a esquerda” nesse sentido. Calejado pelas derrotas e por 580 dias de prisão, sem culpa formada, não seria agora, que está cada vez mais perto de conquistar um terceiro mandato, segundo todas as pesquisas, que Lula pegaria em armas para ameaçar a democracia.

Eliane não está sozinha nessas análises em “off” sobre a “polarização” ou a “guerra”, colocando esquerda e direita no mesmo balaio.

Ainda esta semana, outros colunistas de renome, como William Waack, da CNN e também do Estadão, e Merval Pereira, do Globo, especularam sobre a possível desistência de Bolsonaro em disputar a reeleição. Que viagem…

Nos textos, também não há nenhuma fonte identificada, nenhuma informação concreta, apenas o desejo de abrir caminho para uma “terceira via” enfrentar Lula, que até eles já acham imbatível, assim como a Bloomberg e o Financial Times, citados na coluna de Nelson de Sá na Folha desta sexta-feira, que eles deveriam ler.

“Principais fundos do Brasil veem os traders abraçando a volta de Lula”, constata a Bloomberg, que cita declarações de Luis Stuhlberger, da Verde Asset Management, dando conta que “Lula praticamente já venceu, e não acho que veremos um Lula vingativo”.

Não verão mesmo, a julgar pelos 50 anos de vida pública do ex-presidente, que se dedica no momento a costurar alianças políticas, em todos os espectros partidários fora do bolsonarismo, para poder governar em paz.

Que a Eliane não me leve a mal, mas ela precisa conversar com mais gente fora dos quartéis e dos gabinetes palacianos ou do parlamento, gente da vida real, que não teme falar em “on”, ou seja, dando seu nome e justificando claramente, com argumentos, as suas declarações.

Se até o mercado já se rendeu à realidade do cenário eleitoral, não serão oficiais anônimos, em conversas de “pé de ouvido” no Forte Apache, que criarão um clima de guerra entre “esquerda e bolsonaristas” para ameaçar a democracia.

“Atenção: não considero esse risco, mas escrevo porque se trata de informação relevante, para ficar no radar o que setores bolsonaristas pensam e, eventualmente, podem usar para validar algum tipo de `reação à altura´”, adverte Eliane Cantanhede.

É necessário, porém, que esses “setores bolsonaristas” sejam logo identificados para que as instituições possam tomar as devidas providências.

Fora isso, é jogar conversa fora.

A única “reação à altura” que vislumbro no horizonte será dada nas urnas no dia 2 de outubro. Escrevo em “on” e dou minha cara para bater: se não estou enganado, cara Eliane, não haverá guerra nenhuma, mas teremos, sim, uma grande festa. Você sabe disso.

Faltam apenas 330 dias para esse pesadelo acabar. Não será uma “escolha difícil”, como dizia aquele editorial do Estadão, na véspera da eleição de 2018.

Lula nunca ameaçou a democracia. Ao contrário, é um produto dela.

Vida que recomeça.