17/11/2022
Por Lúcio de Castro, associado da ABI, em Sportlight
Morreu ontem Maria Isabel Barroso Salgado, a Isabel do Vôlei, 62 anos (2 de agosto de 1960).
O enterro será hoje no Crematório e Cemitério do Caju. Velório 11h, Capela Histórica. E cremação às 14h.
Amanhã será dia de lembrar e celebrar essa carioca, brasileira, que amou a vida e foi feliz. Quando a gente celebra, segue viva a existência. E Isabel vai seguir entre nós. Como foi.
Ninguém amou uma cidade tanto com Isabel. E nenhuma cidade amou alguém como o Rio amou Isabel.
Se tava complicado, era bola pra Isabel. Nas quadras. Na vida também.
Nunca houve uma mulher como Isabel. Nas quadras de vôlei, na vida. E era tão simples entender: o que Isabel foi na quadra de vôlei, era também na vida. A intensidade e o destemor que ninguém tinha visto antes. A mulher à frente do seu tempo, de suas lutas. Fim dos anos 70, ditadura militar, o esporte brasileiro, uma contrafação dos regimes autoritários, muitas vezes os mesmos personagens em um e outro. E aquela carioca, nascida em 2 de agosto de 1960, com 16, 18 anos, liderando o Flamengo pra ser campeão brasileiro. Era muito mais do que isso. Ninguém falava em igualdade de gênero para salários e premiações naqueles dias. Mas Isabel já falava. As mulheres tinham que ganhar o mesmo. Estamos falando de anos 70. E a atacante de 1,80m desafiava os cartolas exigindo sua parte, igualdade. Se não pagassem direitos de arena tampava a marca do patrocinador. Pagou todos os preços por isso. Deu de ombro, fez seu caminho. Era grande demais pra se enquadrar por títeres infames que queriam delimitar seu espaço. Isabel não podia existir enquadrada. Foi a luta. Carregando 4 filhos no colo, sozinha, Itália, Japão…
O primeiro choque pra quem via aquela mulher libertária, a carioca do Posto Nove dos fins de tarde, era constatar a rigidez da criação que dava aos filhos. Quem não conhecia se surpreendia, estranhava. Quem conhecia, sabia que o pacote Isabel era aquilo: intensa na vida, mãe mais ainda. Deu certo, se orgulhava de ver traços tão caros a ela nos quatro. Dignidade, luta, mas talvez o mais marcante, aquele que fazia dela o que era sem que talvez jamais te se dado conta: uma revolucionária. Porque nunca deixou de se indignar com qualquer injustiça.
Era tenso estar com Isabel algumas vezes. A qualquer hora, podia entrar um sudoeste, o vento que traz tempestade pra praia e Isabel virar. Alguém vítima de preconceito na rua, ver uma cena de racismo… E ela desafiava a polícia toda, o sujeito de qualquer tamanho…Em seu “Ela é Carioca”, Rui Castro conta do morador de rua em Ipanema que tava sendo maltratado por um PM. O fim da história foi o batalhão todo querendo levar o morador de rua e, a essa altura, também Isabel. Foi ela contra o batalhão e suas metralhadoras todas. Isabel ganhou. Ninguém tocou no morador.
Sempre tinha uma dessas.
Contrariou tudo o que tava estabelecido até aqui conciliando maternidade e esporte ao mesmo tempo. A foto histórica, grávida de seis meses em quadra, Leila Diniz viva.
Isabel foi Leila, foi Asdrúbal, foi Circo Voador no Arpoador, foi o Flamengo, a seleção brasileira, foi festa pagã e religiosa juntas e misturadas, a Ipanema que amou como ninguém e viu cada fim de tarde.
Viu muito nova o povo saindo das dunas de Gal já indo para o Posto 9, onde seria estrela, a marca de um tempo e de uma cidade. A atleta que tava louvando o sol junto com os artistas da cidade, com o povo da praia, com todos. Praticava a diversidade antes de falarem, viveu o Rio dos 70, 80, 90 como os ares da redemocratização pediam: com tudo. Diretas já na Presidente Vargas entre um treino e outro, Chico na vitrola e um monte de amigos pra celebrar a vida, se não fosse assim não tinha graça.
Sempre com Pilar, Maria Clara, Pedro e Carol a tiracolo. Com eles viveu os verões que vieram depois. E ainda no auge, conjugou ser avó, mãe, seguir sua luta. E depois que tinha chegado a hora de descansar, os 4 filhos feitos, independentes, resolveu adotar um menino. Escutou falar que tinha um menino num abrigo de Campinas que ia estourar a idade de 12 anos e ter que ir pra rua. Pegou o avião pra entender. Todo mundo falou pra ela que era loucura, pra sossegar, agora que ia viver…Naquele momento, todo mundo que conhece sabia que ela já era a nova mãe de Alison. Hoje com 20 anos, filho de Isabel. Um filho preto, Isabel se reinventou pra entender o que era ser mãe de um menino preto, os sobressaltos do filho sair de noite na espreita do racismo de todo dia. Levou na primeira escola que escolheu pra matricular. Arrumou briga, continuou fazendo o que sempre fez: defendeu a cria. Tava feliz demais com o Alisson.
Ninguém tava tão feliz como ela nos últimos tempos. Foram 4 anos de angústia. Aquela vida em abundancia contida em quatro paredes de pandemia, sem praia, sem a luta. Sem celebrar. O exercício que amava do debate. Acalorado, chegando a parecer sem volta com o oponente em alguns momentos. Só tinha graça assim. Um almoço dos Salgados era um reality show. Na cabeceira, Isabel comandava. Saia-se de cinema pra política, pra música, pra arte, pro Rio, pra falar mal dos outros.
Isabel era também a festa. A festa de São Sebastião toda numa pessoa só. No dia 30 último, quis ver sozinha o segundo turno. Mas quando o Brasil começou a ficar de pé de novo, quando o nordeste virou, não aguentou e saiu pra rua. Queria beijar os seus, celebrar.
A alegria era maior que tudo. Tinha sido chamada pra participar do grupo de transição do esporte no governo do Lula. Tava tão feliz com isso. Ia meter a mão na massa, interferir. Na vida, no Brasil. Ser Isabel. Voltou pros bancos escolares, estudar tudo pro projeto. Não queria chegar lá pra contar suas experiências. Queria falar de projeto de Brasil, de botar preto e pobre pra dentro do jogo. Tava feliz como nunca. No fim de semana, o filho Pedro de volta ao pódio depois de 5 anos. Carol também. Era alegria demais.
É tão injusto isso agora. Ela sonhou tanto com o Brasil dela de volta, o Rio que é dela. Logo agora, com a certeza de que esses tempos ficarão para traz, desse Brasil de genocidas, de louvação à tortura, de generais fora da sua praia, de homofóbicos, misóginos, racistas, capitães do mato. Era tudo tão anti-Isabel ali… Sobreviveu a isso. Ela tava tão feliz. Era água nova brotando e todo mundo se amando sem parar. A vida voltando. Isabel por inteiro. Intensa, Da única forma que ela concebia a vida.
A Isabel que desdenhou quando começou a moda de botarem chuveiro na praia. Mesmo se fosse almoçar, e adorava os almoços pós-praia, ria de quem tirava o sal pra sair da praia. É um gesto tão simples. Mas diz tanto de Isabel. Ela saia com sal. Gostava de sair da praia com o sal. Era ela, todo o sal da terra numa mulher só.
Nesse auge, na plenitude de tudo, dos seus, da fome de beleza da vida que tinha, de uma alegria imensa por um Brasil que renascia e ela já era parte dessa reconstrução, sentiu uma gripe, passou mal… e nos deixou ontem.
Sua fome de viver, de estar com os seus, sua forma de viver, sem limites, da gente se encontrar na luta, nos faz ter certeza de que é dela que Gabo falava aqui ao explicar o que é vida: “É a vida, mais do que a morte, que não tem limites”. Por isso que Isabel vai seguir. Uma vida maior. Que não tem limites e vai seguir em todos nós.