20/07/2021
Por Helyn Thami, Rebeca Freitas e Maria Cristina Franceschini. Publicado no jornal O Estado de S. Paulo
Vivemos duas pandemias em uma: a da covid-19, com ritmo lento de vacinação, e a transmissão
acelerada da desinformação. Define-se infodemia como o fluxo excessivo de informações sobre um
dado assunto oriundas de fontes não confiáveis, sobretudo nas redes sociais. Aumentam os relatos
de consequências negativas provocadas por esse tipo de conteúdo.
Pela primeira vez uma pandemia se verifica no contexto de uma sociedade hiperconectada. Com a
expansão da internet e das redes, as informações espalham-se cada vez mais rapidamente. Em
2019 a internet já estava em oito de cada dez domicílios do Brasil, conforme dados do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e da pesquisa Datasenado. E a cada cinco brasileiros,
quatro usavam o Whatsapp como fonte de informação.
A dimensão da capilaridade das notícias falsas na saúde foi objeto de estudo publicado no American
Journal of Tropical Medicine and Hygiene, que analisou mais de 2 mil publicações sobre a
pandemia em redes sociais: apenas 9% traziam informações verdadeiras. No Brasil, segundo o Ibope,
67% dos brasileiros, quando expostos a dez informações falsas sobre vacinas, acreditaram em
pelo menos uma.
O fenômeno pode explicar, ao menos em parte, a queda na disposição dos indivíduos de se vacinar
contra a covid19 – caiu de mais de 70% para menos de 50%, segundo estudo sobre vacinação e
pandemia em vários países do mundo. Os dados atuais reforçam esse achado: só no Brasil, mais de
1,5 milhão de pessoas não retornaram para a segunda dose.
A infodemia não se traduz apenas em desconfiança, mas também em efeitos adversos para a saúde.
Nos Estados Unidos, os casos de envenenamento por desinfetantes de uso doméstico aumentaram
substancialmente depois de o então presidente Donald Trump defender seu uso como “medicamento”
contra a covid-19. Algo semelhante aconteceu por aqui: depois de inúmeros discursos e publicações
em redes sociais do presidente Jair Bolsonaro defendendo o chamado “kit covid”, médicos
observaram aumento da fila de transplante de fígado após o uso dos medicamentos sem eficácia
comprovada desse kit. Houve também três mortes por hepatite relacionadas ao uso das mesmas
substâncias.
Outra consequência do discurso negacionista e das fake news está ligada ao próprio alastramento
da doença. Uma nota técnica do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (Ieps) mostrou relação
positiva entre apoio eleitoral ao presidente e a aceleração da mortalidade por covid-19, em
2021, no Brasil. O fenômeno foi confirmado por outra pesquisa, citada no Social Science Research
Network, que analisou dados dos 5.570 municípios brasileiros: nas cidades onde o presidente teve
quantidade de votos superior a 50% no segundo turno de 2018, a probabilidade de se infectar foi
299% maior e a de morrer, 415%, em comparação com os municípios onde o presidente perdeu a
eleição.
A infodemia é abordada por organizações internacionais como um campo científico emergente. A
Organização Mundial da Saúde (OMS) criou um marco de trabalho para a gestão do problema. A
Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) elaborou propostas para
orientar governos e plataformas online. Ambas as organizações se baseiam em quatro pilares: 1)
infovigilância (informação e monitoramento); 2) alfabetização em saúde digital e científica; 3)
aperfeiçoamento do conhecimento e melhora da qualidade da informação, com checagem e revisão
por pares; e 4) tradução acurada do conhecimento, mitigando fatores de distorção como de natureza
política ou comercial.
As estratégias incluem promoção de habilidades entre a população no uso de informações digitais,
parcerias estratégicas com as plataformas, fortalecimento de competências profissionais para a
gestão da infodemia (medição, monitoramento, desenho de intervenções, avaliações) e ações institucionais
(checagem independente de fatos, transparência de dados).
O tema ainda não é abordado com a urgência e eficiência necessárias. No Brasil existem iniciativas
voltadas para a melhor compreensão do fenômeno, a apuração de fatos e a moderação de conteúdos,
mas são insuficientes, dadas as forças políticas, sociais e econômicas que impulsionam a desinformação.
É necessário construir uma frente ampla para o enfrentamento do problema.
As evidências comprovam que onde há discurso errático e anticientífico também há maior risco de
vida. E se a ciência, por definição, não serve à política, a confusão de informações e a profusão de
inverdades servem a quem? O que podemos concluir, a partir das evidências existentes, é que o
fenômeno da infodemia é um fator-chave para explicar a intensificação dos efeitos da pandemia e
das consequências nefastas para a população brasileira, que chega ao número trágico de mais de
540 mil óbitos por covid-19. ✽ RESPECTIVAMENTE, PESQUISADORA DO INSTITUTO DE ESTUDOS
E POLÍTICAS DE SAÚDE (IEPS); ESPECIALISTA EM RELAÇÕES GOVERNAMENTAIS
DO IEPS; E GERENTE DE GESTÃO DO IEPS
A confusão de informações e a profusão de inverdades servem a quem?
Link do documento da OMS sobre infodemia (tradução da OPAS): https://iris.paho.org/bitstream/handle/10665.2/52054/Factsheet-Infodemic_por.pdf?sequence=14
Foto: summitsaude.estadao.com.br
Infodemia, a outra pandemia que enfrentamos: https://digital.estadao.com.br/o-estado-de-s-paulo/20210720/textview