28/06/2022
Por Maria Luiza Busse, diretora de Cultura da ABI
Um livro e muitas vidas serão celebrados nesta quarta-feira (29), às 18:00, no plenário da Câmara de Vereadores de Niterói. Homenagem aos 54 anos da Passeata dos Cem mil e à Geração 68, militantes que lutaram contra a ditadura no Brasil, eternizados em 68 – a geração que queria mudar o mundo: relatos. Organizado por Eliete Ferrer, o livro reúne 170 depoimentos daquelas e daqueles que sofreram o exilio, prisão, tortura, e outras tantas violências de Estado.
O professor Ivan Cavalcanti Proença, decano da ABI e presidente do Conselho Consultivo, e Rose Nogueira, membro do Conselho Deliberativo da ABI, também serão homenageados.
68 – A Geração que Queria Mudar o Mundo reúne histórias reais contadas pelos protagonistas ocorridas de 1964 à abertura política, nas reuniões, tarefas, manifestações, discussões, na prisão, nas ações armadas ou não, nos treinamentos, na clandestinidade, no país ou no exterior. São sensibilidades reveladas de brasileiros então dispostos a enfrentar de corpo e alma o Golpe de 64 engendrado com o imperialismo estadunidense que esmagou a democracia e assombrou o Brasil por 21 anos.
“Em um momento grave como o que vivemos, em que a democracia é posta à prova por aquele que ocupa a presidência, é fundamental celebrarmos todos os que tanto lutaram contra a ditadura em prol da democracia. Para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça”, diz Eliete, ela própria uma exilada política, da qual reproduzimos um trecho dessa experiência impressa no livro:
Passaporte para o Mundo
(…)
“Na documentação da ABIN que obtive por meio de habeas data, consta, entre outras informações, que eu morei no México. Jamais pus os pés nesse país. Às vezes, os caras viajavam! Ou seria falha da Operação Condor? Entrei na Argentina com carteira de identidade. Aliás, a saída do Brasil e entrada na Argentina constituem outros episódios. Velhas recordações, algumas esmaecidas. Cicatrizes indeléveis na alma. É muito difícil contar isto tudo. Mas, de certa forma, é bom estar viva e poder relatar estes fatos hoje.
Nunca soube que houvesse na legislação brasileira alguma proibição de se conceder passaporte a cidadãos contra os quais não haja qualquer processo criminal, civil ou administrativo: cidadão em pleno gozo de seus direitos, com folha corrida “limpa”. Legalmente, não há tal impedimento.
Assim que o meu companheiro Luiz Carlos foi solto, ingressei com pedido de passaporte como qualquer pessoa. Quando ele saiu do DOPS, entramos os dois na clandestinidade e decidimos deixar o país. Tínhamos pressa, pois o Luiz Carlos poderia ser preso, outra vez, a qualquer momento. Não havia tempo para esperar e não sabíamos se o documento iria ser concedido. Tínhamos muita pressa de abandonar o país. Iríamos para o Chile. Estávamos vivos.
Depois de passar pela fase do “pau”, da tortura, no DOI-CODI do Rio e na OBAN de São Paulo, ele foi transferido para o DOPS, onde o vi pela primeira vez desde aquela manhã de abril do dia em que a PE o sequestrou na porta do Correio da Manhã. Ainda estava muito machucado, com marcas de hematomas e feridas dos choques elétricos. Magro e abatido. Menciono as marcas físicas. Quase milagre o fato de ele estar vivo. Temos ciência de que os governos militares que tomaram o poder em 1o de abril de 1964, orquestrados pelo governo estadunidense, cometiam todos os tipos de ilegalidade e atrocidades com supostos opositores do regime: sequestravam, mantinham presos, torturavam, assassinavam e executavam pessoas e, ainda, desapareciam com seus corpos.
O general amigo que conseguiu o relaxamento da prisão para que ele respondesse ao processo em liberdade não podia garantir nada. Tínhamos que agir rápido. No dia seguinte à soltura, a PE foi procurá-lo, de novo, no Correio da Manhã, onde ele trabalhava como jornalista.
“NÃO É VÁLIDO PARA CUBA” estava carimbado na página quatro daquele passaporte, com vigência até 25 de julho de 1975. Um amigo levou-o para mim em Buenos Aires onde estávamos, em agosto de 1973, eu e o Luiz Carlos. Morávamos em uma espécie de aparelho do ERP. Era um belo e enorme apartamento, no Centro, perto da Praça do Congresso, que servia de estúdio fotográfico. Nossos amigos eram publicitários. Certa vez, abrimos um armário e vimos dezenas de coquetéis Molotov.
Inverno. Muito frio. Adorei aquela linda cidade. Apesar da ótima hospitalidade e carinho dos argentinos, sentíamo-nos muito perdidos em Buenos Aires, recém saídos do Brasil. Ele, da prisão, tortura e do medo da morte. Tínhamos receio de sair na rua por causa de nossos documentos, especialmente, ele, por estar com identidade falsa.
Finalmente, viajamos para o Chile, depois de receber notícias daquele país. O povo chileno era legalista e lá não aconteceria nenhum golpe, apregoavam. Primeiro, de Buenos Aires a Mendoza, de ônibus. De Mendoza a Santiago, viajamos de trem. Muito frio e, por causa das greves de transporte, jornada mais que longa onde me impressionou a imponência dos Andes, cordilheira masculina, com certeza. Andes. Másculo, colossal, alto, forte, quase sem vegetação, seco, duro, silencioso … lindo e assustador!
Sem tempo hábil para acalmar as águas turbulentas turvas das emoções, mudanças muito rápidas e radicais na vida, mundo que ficou para trás, sem falar no perigo de morte. Ainda muito abalados com a prisão, torturas, saída do Brasil, curta permanência/passagem pela Argentina, passaporte na bolsa, sem uso, chegamos, poucos dias antes do golpe. Santiago, cidade singela emoldurada pelos mistérios dos Andes. Na viagem, ninguém, nenhuma autoridade, pediu, para verificação, aquele passaporte virgem.
Muita alegria e alívio ao rever os amigos! Fomos acolhidos na casa do Reinaldo que vivia com a Dora, Maria Auxiliadora Lara Barcellos. Mais dois amigos já estavam lá. Muito frio.
Não vou falar do Chile ou do golpe nem daquele filme vivo de terrores, nem da cidade cheia de cachorros abandonados. Hordas de cães nas ruas.
Acordamos, naquela manhã, com a companheira Lenise que chegou, nervosíssima e avisou: “O golpe! O golpe!” Estávamos na casa do Reinaldo e da Dora. Dia 11 de setembro de 1973. Tinha começado a segunda fase de terror da minha vida. Ligamos o rádio e ouvimos o discurso de despedida do presidente Allende. Teve início implacável perseguição e caça aos estrangeiros. Para não sermos presos, por segurança, saímos da casa do Reinaldo e da Dora e rumamos para a casa da Lilliam e do Jaime, onde, se supunha, todos estaríamos a salvo. Apartamento no Centro, calle San Antonio perto da sede do Partido Socialista. Manhã cinzenta. Simulando naturalidade, saímos dois a dois, apressadamente devagar, caminhamos meio aos tiroteios, ouvindo rajadas de metralhadora. Estrondos. Lembro-me como se fosse hoje e entristeço-me.
Nunca mais vi a solidária querida companheira Dora. Ela e o Reinaldo refugiaram-se na embaixada do México, em Santiago. Em 1o de junho de 1976, ela se suicidou em Berlim.
No dia seguinte ao golpe, 12 de setembro, fomos presos todos da casa. Éramos sete brasileiros, estrangeiros naquele país aviltado pela sanha que patrocinava a subversão da ordem constitucional e tomada de poder por militares raivosos. Junto com dezenas de objetos úteis e inúteis, como cigarros, dinheiro, relógio de pulso, utensílios de cozinha e tubos de tinta óleo, meu passaporte foi surrupiado pelo pelotão de carabineiros que invadiu a casa, armados até os dentes.
– Manos arriba! Manos arriba! Manos arriba!
Depois de uma simulação de fuzilamento no terraço do prédio, trouxeram as três mulheres para o apartamento, onde houve tentativa de estupro. Os homens foram capturados e levados ninguém sabia para onde. Violência. Terror. (…) Aprendi, naquele dia 12, o verdadeiro significado da expressão “tremer de medo”. O corpo todo treme, especialmente as pernas. Para manter-se em pé, ou para disfarçar tal constrangimento, a solução é encostar ou apoiar uma parte do corpo na parede, caso seja possível” (….).
68 a geração que queria mudar o mundo: relatos, foi publicado pelo Projeto Marcas de Memória, da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, em 2011.
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