24/02/2021
Em anúncio, grupo de médicos usa informações falsas para defender tratamento ineficaz contra Covid-19
Por CAROL MACÁRIO
Um grupo chamado Médicos pela Vida publicou um informe publicitário em alguns dos principais jornais impressos do país nesta terça-feira (23), com um manifesto em defesa do “tratamento precoce” contra a Covid-19. O texto usa informações falsas ao citar hidroxicloroquina, azitromicina, ivermectina e outras drogas como eficazes em pacientes com o novo coronavírus.
Segundo os profissionais, haveria evidências científicas que comprovam os benefícios do uso desses remédios, mas não há qualquer estudo de metodologia rigorosa que tenha chegado a essa conclusão. O site em que o manifesto foi publicado não disponibiliza formulários para contato com responsáveis e apresentou instabilidade em vários momentos desta terça-feira.
A Lupa checou algumas das frases do manifesto. A associação foi procurada para comentar as checagens, mas não respondeu. Veja o resultado:
“Dentre as abordagens disponíveis na literatura médica para a COVID-19, existe o chamado ‘tratamento precoce’”
Trecho de manifesto publicado por um grupo de médicos como anúncio em jornais impressos em 23 de fevereiro de 2021
FALSO
Não há evidência na literatura médica que comprove a eficácia do chamado ‘tratamento precoce’ contra a Covid-19. Logo, não é correto considerar essa receita uma “abordagem disponível”. Essa suposta solução, que usaria uma combinação de hidroxicloroquina, azitromicina e zinco, entre outros medicamentos, foi tema de uma série de pesquisas que demonstraram não haver benefício no uso dessas drogas contra a doença, seja de forma preventiva ou para curar casos leves, moderados ou graves.
A eficácia de um tratamento só pode ser realmente comprovada com estudos científicos que usam uma metodologia rigorosa. Para isso, são necessárias duas características principais: randomização (ou seja, a escolha aleatória dos pacientes) e duplo-cego (quando nem os médicos, nem os pacientes sabem quem está recebendo o remédio ou o placebo). Também é preciso que os resultados sejam publicados em uma revista científica, o que só ocorre depois da revisão dos dados por especialistas no assunto. As pesquisas feitas sob essas condições não mostraram benefício na aplicação do “tratamento precoce” para pacientes infectados pelo novo coronavírus.
Em julho do ano passado, cientistas brasileiros publicaram um artigo no The New England Journal of Medicine (NEJM) mostrando que hidroxicloroquina, combinada ou não com azitromicina, não trouxe qualquer benefício para pacientes leves ou moderados com Covid-19 — ou seja, a doença se desenvolveu da mesma forma para os que tomaram o remédio e para os que receberam placebo. A droga foi administrada quatro dias depois de essas pessoas serem expostas ao vírus, de modo randomizado e com duplo-cego. Foram recrutados 667 participantes em 55 hospitais.
Um estudo mais recente, publicado em novembro pela revista The Lancet, chegou à mesma conclusão. Pesquisadores do Qatar, do Reino Unido e da Austrália analisaram os efeitos da hidroxicloroquina, com ou sem azitromicina, em pacientes não-graves da Covid-19. Ao todo, 456 participantes dividiram-se em três grupos, com randomização e duplo-cego. Não houve diferença entre os resultados obtidos para cada um deles, mostrando que os remédios não trouxeram benefícios.
Outra pesquisa publicada no NEJM, em junho, por cientistas norte-americanos, mostrou que tomar hidroxicloroquina preventivamente não evitou a contaminação pelo SARS-CoV-2. O estudo também foi randomizado e com duplo-cego e contou com 821 participantes nos Estados Unidos e no Canadá. Em fevereiro de 2021, a NEJM publicou uma pesquisa feita na Espanha, na qual os pesquisadores receitaram o medicamento para pessoas que tiveram contato com pacientes diagnosticados com Covid-19. Novamente, os testes mostraram que a droga não foi eficaz como profilaxia.
As únicas referências positivas ao tratamento preventivo na literatura médica vêm de dois tipos de estudos que não podem ser vistos como conclusivos. O primeiro deles é a análise em laboratório do desempenho da droga, que não reproduz as condições existentes no corpo humano e apenas indica a necessidade de pesquisas mais aprofundadas. O segundo são os estudos observacionais, nos quais os resultados podem chegar a conclusões enganosas e sua comprovação também só pode ocorrer com a realização de novas pesquisas, randomizadas e com duplo-cego.
“(…) há disponível nos sites https://hcqmeta.com, https://ivmmeta.com, https://c19study.com/, https://c19ivermectin.com/?s=08, https://copcov.org e https://c19legacy.com/?s=08 a compilação de diversos estudos e estatísticas envolvendo drogas utilizadas como parte do arsenal terapêutico, entre outros trabalhos disponíveis em bases de dados científicos confiáveis.”
Trecho de manifesto publicado por um grupo de médicos como anúncio em jornais impressos em 23 de fevereiro de 2021
FALSO
O conteúdo dos sites hcqmeta.com e ivmmeta.com, citados no manifesto, remete aos mesmos estudos que constam em outro site mencionado, o c19study.com. Ou seja, não são várias meta-análises, mas apenas duas: uma de hidroxicloroquina e outra de ivermectina, ambas do c19study.com. Essas análises não têm nenhum rigor científico.
Leandro Tessler, professor do Instituto de Física Gleb Wataghin e membro do Grupo de Estudos de Desinformação em Redes Sociais (Edres) da Unicamp, explicou que o suposto estudo é uma meta-análise, ou seja, uma análise feita com base em outros trabalhos existentes. Isso, em si, não é o problema: esse tipo de estudo, quando feito de maneira adequada, é importante para a avaliação da eficácia de medicamentos. O problema é que, nesse caso, a análise é feita sem metodologia e rigor científico.
A primeira questão é que, quando se vai fazer uma meta-análise, os estudos levados em consideração precisam ter pesos diferentes, de acordo com a qualidade de cada estudo. “Um estudo mal feito não entra, e um estudo que tem 50% de qualidade entra com um peso de 50%. Mas o C19Study dá o mesmo peso para todos, ou seja, um estudo padrão ouro entra com o mesmo peso de uma opinião”, explicou o professor.
Uma segunda questão é que estudos científicos precisam ser chancelados por revistas científicas e passar pela revisão por pares (peer review). “No C19Study, eles misturam pré-prints [não publicados em revistas nem revisados por pares] com erros graves, que provavelmente nunca serão publicados, com outros estudos.”
Outro problema do trabalho do c19study.com é a forma como foi definido o chamado p-valor, uma estimativa do resultado obtido ser ou não fruto do acaso, foi avaliado. Um p-valor próximo de 0 significa que o resultado provavelmente é relevante, e existem técnicas para se calcular esse indicador. “O que o C19Study faz não é seguir essa técnica. Ele simplesmente multiplica os diferentes p-valores, obtendo valores muito baixos, para garantir que o resultado dele é bom. Tudo bobagem”, afirmou Tessler. Como esse número está sempre entre 0 e 1, quando dois p-valores são multiplicados, o resultado é sempre menor do que as duas variáveis.
Entre os links citados, ainda está o https://copcov.org, estudo do professor Nicholas White, da Universidade de Oxford. Não há, até o momento, resultados desse estudo, conforme o National Institutes of Health (NIH), a agência de pesquisa biomédica do departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos.
“Os relatos de cidades e estados que adotaram as medidas para intervenção precoce na Covid-19 têm mostrado bons resultados, com a diminuição da carga sobre os sistemas de saúde”
Trecho de manifesto publicado por um grupo de médicos como anúncio em jornais impressos em 23 de fevereiro de 2021
AINDA É CEDO PARA DIZER
Ainda não há estudos científicos que avaliem como o tratamento precoce da Covid-19 influenciou no número de casos da doença em estados e cidades brasileiras. O que existe, até o momento, são reportagens jornalísticas que tentam traçar paralelos entre o tratamento precoce estabelecido em algumas regiões com a situação epidemiológica daquela área.
Em janeiro de 2021, por exemplo, o UOL publicou um levantamento mostrando que de 10 municípios com mais de 100 mil habitantes que distribuíram o “kit covid”, nove tiveram taxas de mortalidade maiores do que a média estadual. Foram elas: Goiânia (GO), Campo Grande (MS), Natal (RN), Cuiabá (MT), Boa Vista (RR), Jundiaí (SP), Gravataí (RS), Itajaí (SC) e Cachoeirinha (RS). Na época, a única exceção foi Parintins, no Amazonas. Enquanto o estado teve 159 óbitos por 100 mil habitantes, o município registrou 157 óbitos por 100 mil habitantes.
“(…) utilizando uma combinação de drogas, visando reduzir o número de pacientes que progridem para fases mais graves da doença (…).”
Trecho de manifesto publicado por um grupo de médicos como anúncio em jornais impressos em 23 de fevereiro de 2021
FALSO
Embora analgésicos, anti-inflamatórios, anticoagulantes e antibióticos sejam usados para minimizar sintomas ou tratar infecções secundárias da Covid-19, esses medicamentos não diminuem a carga viral e não têm ação efetiva contra o novo coronavírus. Até o momento, não há comprovação científica de que uma combinação de fórmulas de fato contribua para que a doença não evolua para um quadro mais grave. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), são insuficientes as evidências disponíveis sobre os benefícios do uso de cloroquina ou hidroxicloroquina e da ivermectina, por exemplo, drogas sugeridas pelo grupo que assina o manifesto como eficazes, seja de forma associada ou isolada, para reduzir a progressão da doença.
É o caso de um estudo randomizado, publicado em julho do ano passado no periódico The New England Journal of Medicine, que mostrou que pacientes com sintomas leves ou moderados não tiveram melhora no estado clínico depois tomar hidroxicloroquina, sozinha ou associada a azitromicina.
Procurado pela Lupa, um dos autores do estudo, o médico Israel Silva Maia, pesquisador do Instituto de Pesquisa do Hospital do Coração de São Paulo, confirmou que, até o momento, não foi concluído nenhum ensaio clínico que comprove que um ou mais medicamentos, juntos, diminuem a progressão da Covid-19. “O que se tem são estudos observacionais e que precisam ser qualificados”, disse, por telefone. “Seria interessante que o grupo que assina o manifesto e acredita em um tratamento precoce produzisse pesquisa e estimulasse a população a participar de estudos para efetivamente ter uma resposta. Até agora, não temos”.
Já o médico infectologista Estevão Urbano, da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), afirmou, por telefone, que não há eficácia no conjunto de medicamentos no tratamento da Covid-19. “Muito controverso isso tudo, os estudos que mostram benefícios são de má qualidade. Os de boa qualidade, feitos com metodologia científica, são geralmente contrários aos uso. Neste momento não dá para falar que seja efetiva, precisaríamos de mais estudos para comprovar”.
Em dezembro de 2020, a SBI publicou um documento no qual não recomenda tratamento farmacológico precoce com os medicamentos cloroquina, hidroxicloroquina, ivermectina, azitromicina, nitazoxanida, corticoide, zinco, vitaminas, anticoagulante, ozônio por via retal e dióxido de cloro. Segundo a nota, “estudos clínicos randomizados com grupo controle existentes até o momento não mostraram benefício e, além disso, alguns desses medicamentos podem causar efeitos colaterais”.
Editado por: Chico Marés e Natália Leal