16/06/2022
Por Lucas Altino em O Globo
Ricardo Rao depois de uma apreensão em uma terra indígena invadida — Foto: Acervo pessoal
Ricardo Rao e Bruno Pereira tiveram trajetórias semelhantes na Funai. Ambos entraram na fundação através do concurso público de 2010 e passaram pelo mesmo treinamento no Centro de Formação em Política Indigenista do órgão, em Brasília. Apesar de considerar que seu antigo colega era “três vezes mais preparado”, Rao também passou por bases importantes e, assim como Pereira, colecionou ameaças por seu trabalho combativo em defesa dos indígenas. Mas, desde o final de 2019, quando entendeu que “uma morte violenta” seria o seu destino, Rao se exilou na Europa, passando por Noruega e Itália, onde hoje vive.
De Roma, ele acompanhou as recentes e trágicas notícias das mortes de Bruno Pereira e Dom Phillips.
– Eu estou destruído, olha o que estão fazendo com os meus amigos, com os índios, com o Brasil, resume Rao, que mesmo não tendo sido íntimo de Pereira, recorda-se das lembranças positivas sobre o indigenista. – O Bruno tinha uma coisa de santo. A conexão que ele fazia com os indígenas. É difícil ganhar o coração dos indígenas. Mas ele tinha essa pureza, era algo interno, espiritual, não sei exatamente o que era. Se para um indigenista demora-se anos para adquirir a confiança do indígena, ele conseguia de imediato. Por conta disso, ele era muito admirado e invejado.
Na última década, Ricardo Rao passou por Campo Grande (MS), Marabá (PA), Barra do Corda (MA) e Imperatriz (MA). Apesar de ter feito inimigos por onde passou, o indigenista diz que o nível de hostilidade nunca foi tão grande quanto na atual gestão do governo federal.
– Percebi o aumento exponencial de atos violentos e na resistência a comandos legais. Antes, um gangster não tinha coragem de ir na Funai pedir a devolução de uma moto apreendida. Penso que está mais do que provado que o governo brasileiro não tem mais condição de proteger a Amazônia – afirma Rao, que defende até uma intervenção internacional, e é reticente quanto a mudanças mesmo com a repercussão atual dos assassinatos. – A mídia internacional tem me procurado, a repercussão está grande, mas infelizmente acho que nada vai mudar.
Hoje, exonerado da Funai, ele foi condenado pela atual direção do órgão a devolver seus salários e diárias desde 2015, por conta de um suposto erro formal durante seu estágio probatório – período em que sanções a recém concursados custam o emprego. Advogado de formação, o indigenista afirma que ainda possui cinco anos para recorrer e que não vê argumentos jurídicos razoáveis na condenação.
Rao entende estar sendo perseguido por causa de suas denúncias, em especial o dossiê “Atuação miliciana conectada ao crime organizado madeireiro, ao narcotráfico e a homicídios cometidos contra os povos indígenas do Maranhão – Um breve dossiê ” entregue à Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados. Dois dias depois da entrega, ele se mudou para Oslo e pediu asilo formal na Noruega.
– Se eu voltasse hoje para o Maranhão, seria recebido por 10 milicianos na porta da Funai – afirma Rao, que pretende voltar ao Brasil somente após Jair Bolsonaro deixar o governo.
Arma na cabeça e perseguições
Em Campo Grande, a primeira cidade em que atuou como agente em indigenismo, Rao trabalhou junto aos Guarani Kaiowá, “o povo mais martirizado desse país”, como definiu. A partir da sua atuação, diz ter entrado na mira dos pecuaristas e, por isso, foi deslocado para Marabá, em 2012. Na cidade Paraense, Rao conta que, pela primeira vez, uma arma foi colocada na sua cabeça.
– Um soldado da PM começou a agredir uma indígena na minha frente, com ofensas racistas, e então intervi – explica Rao, sobre o motivo que lhe fez ter sido ameaçado. – Depois do caso, fomos atrás dele e, surpreendentemente, ele foi punido. Mas, após sua condenação, correu a informação de que queriam me matar.
Em seguida, Rao foi promovido a coordenador técnico local, em Barra do Corda (MA), onde teve foco de combate à exploração madeireira, com bons resultados, diz:
– Ameaças sempre tem, é inerente ao cargo. Mas em Barra do Corda as unidades administrativas funcionavam, e eu possuía bom relacionamento com os promotores e chefe da polícia. Efetuamos várias apreensões e prisões.
Após o impeachment da ex-presidente Dilma, Rao fez um protesto na repartição contra Michel Temer, em função da revelação das gravações do então presidente com o empresário Joesley Batista. Segundo o indigenista, essa manifestação teria lhe custado o cargo, e a Funai decidiu lhe remover para Imperatriz (MA).
No Maranhão, apesar do aumento das hostilidades, Rao celebra feitos como o trabalho junto aos Guardiões da Floresta, projeto que reunia indígenas Guajajara e Arariboias. Nessa época ele teve contato com o líder Paulino Guajajara, assassinado em 2019. Mas foi outra morte de um indígena, em 2017, que lhe causou a primeira grande revolta.
– Na época, os guardiões haviam queimado um maquinário ilegal dos madeireiros e passaram a ser perseguidos. Por isso, eles nos pediram apoio para compra de combustível, visando à possibilidade de fuga. Mas a coordenadora regional da época cortou o apoio, e eles tiveram que voltar para a Terra Indígena (TI), e um deles acabou assassinado. Começamos, internamente, um movimento forte de oposição à coordenação — explica Rao, que diz que, apesar das denúncias à justiça não terem surtido efeito, a coordenadora acabou sendo afastada pela Funai.
Início do pesadelo
O início da gestão Bolsonaro foi quando o “pesadelo começou” conta o indigenista. Segundo ele, a partir dos discursos e dos atos normativos do presidente em favor dos garimpeiros, invasores passaram a hostilizar abertamente e desrespeitar o comando da Funai. Como agravante, Rao diz que policiais envolvidos em esquemas ilegais passaram a intimidar os indigenistas.
Em alguns meses, Rao diz que as ameaças intensificaram, principalmente em represálias a apreensões feitas por funcionários da Funai.
-Em um evento, cumprimos uma ordem judicial que proibia levantamento de cerca e criação de roça extensiva na TI Krikati. Na ação, apreendemos umas 20 espingardas. Horas depois, eu estava com meu filho na aldeia principal da TI, quando chegou uma viatura com um dos invasores dentro, cujo papagaio nós apreendemos. O subtenente, em defesa do invasor, me intimidou pedindo a devolução do papagaio e disse “e se alguém entra na sua casa e pega seu filho?” Estava muito descarado.
Na semana seguinte, o indigenista diz que foi alvo de um inquérito da Polícia Civil e do MPF, o acusando, junto aos outros funcionários que participaram da apreensão, de roubo. Na mesma época, Rao afirma que até a Abin foi à cidade para os investigarem.
-Eu não conseguia dormir direito, deixava uma arma do lado da cama. Quando eu tive a convicção de que o que me aguardava era uma morte violenta, fiz o dossiê, com todos meus dados, e entreguei no final de novembro. Dois dias depois fui embora e consegui o asilo provisório na Noruega, onde eu conhecia um cacique do povo Lapão (um dos maiores grupos indígenas da Europa) — explica Ricardo Rao.
Ativismo na Europa
Há alguns meses, o indigenista, que é ítalo-brasileiro e possui passaporte italiano, se mudou para Roma. Atualmente, vive num prédio de uma ocupação e conta apenas com a ajuda financeira de amigos e da mãe – uma ex-funcionária da Funai – para se sustentar. Além disso, está liderando um trabalho jurídico com objetivo de denunciar Jair Bolsonaro à Corte Italiana por causa das mortes de italianos no Brasil, durante a pandemia da Covid-19.
–Vamos mostrar que o governo impediu acesso das vítimas a medicamentos e produtos que poderiam ter evitado a morte, no caso a vacina, e ativamente promoveu o consumo de medicamento comprovadamente ineficaz (cloroquina). Já identificamos uma vítima de passaporte italiano, e queremos levar o caso para Vara Penal Comum de Roma — explica Rao, que diz se basear nos precedentes das condenações do general chileno Augusto Pinochet e do ex-agente da ditatura brasileira Átila Rohrsetzer, condenado, na Itália, pela morte de um italiano no Rio Grande do Sul.