Esperança e utopia


10/03/2008


A cruzada de Suplicy pelo programa de renda mínima não é levada a sério. Mas deveria ser.

Colaboração de Altamir Tojal, jornalista e escritor

O Senador Eduardo Suplicy apresentava o documentário sobre sua viagem ao Iraque para divulgar a proposta de renda básica de cidadania. No filme, um Ministro iraquiano pergunta se o programa foi adotado no Brasil. Suplicy responde “Ainda não, vai ser implantado em etapas.” Presente à exibição, outro Senador, Heráclito Fortes, não perdeu a oportunidade da piada: “A primeira etapa foi o cartão corporativo.” A viagem de Suplicy aconteceu em janeiro e a exibição do documentário, algumas semanas depois. Estávamos no auge da chamada crise do subprime (os empréstimos imobiliários sem lastro adequado nos Estados Unidos), com as bolsas despencando no mundo todo e o Presidente Bush liberando muitos bilhões de dólares para acalmar os mercados. Aqui, a Bovespa também despencava e o escândalo da hora era o uso abusivo dos cartões corporativos por ministros e funcionários.

O chiste de Fortes pode ir para a conta do sarcasmo instintivo que pode acometer qualquer um. Afinal, a bola estava quicando na frente do gol e o Senador da oposição não ia deixar passar a oportunidade de provocar o colega petista. Mas a verdade é que a cruzada de Suplicy pelo programa de renda básica não é levada a sério nem mesmo por lideranças do PT e do Governo. A imprensa, quando dá espaço ao tema, quase sempre endossa o tom de descrença e de ironia que a idéia evoca, talvez por ignorância ou porque ela ressoe generosidade, esperança e utopia. É disso mesmo que se trata. E ninguém parece a fim de dar trela a essas coisas tão fora de moda. E o Senador Suplicy, embora bem robusto, fica com ares de Dom Quixote quando defende a proposta.

A renda básica de cidadania, ou renda mínima, ou salário social é um direito que muitas pessoas, em todo o mundo e há muito tempo, propõem não só como remédio para os males da injustiça social, mas também para a mórbida exuberância irracional do sistema econômico global, com sua sucessão de crises e ameaças a tudo e a todos no planeta. Consiste em assegurar a cada pessoa uma renda suficiente para atender às necessidades básicas, de forma incondicional e universal, ou seja, independentemente de idade, sexo, instrução, nível de renda ou de ela estar ou não trabalhando. Isso mesmo: um direito dos pobres e também dos ricos, dos desempregados e dos que trabalham. Esse direito existe há alguns anos no estado norte-americano do Alasca. E — em formas mais restritas e condicionadas de transferências diretas de renda aos mais pobres — começa a ser posto em prática em muitos países. Aqui, o Bolsa Família pode ser considerado um embrião de um programa de renda básica, uma etapa importante, que deve transcender interesses de partidos e governos.

A proposta consta — com diferentes formulações e mesmo propósitos contraditórios — tanto de receituários de radicais comunistas como de reformistas liberais. Professor de Economia, o Senador Suplicy reúne, entre os que trouxeram fundamentos para a idéia, um time de pensadores pesos-pesados das mais diferentes tendências, desde Thomas More, Karl Marx, Thomas Paine e Charles Fourier, passando por Stuart Mill e Bertrand Russel, até Paul Samuelson, Milton Friedman, James Tobin e Antonio Negri. Outro que se junta a esses é André Gorz, que, morto no ano passado, tem sido mais comentado no Brasil nas últimas semanas graças à recente edição aqui, este ano, de sua bela “Carta a D.” (Cosac Naify).

Gorz, estudioso das mutações do capitalismo contemporâneo, aproximou os temas da renda básica e das sucessivas crises financeiras globais no livro “Misérias do presente, riqueza do possível”, publicado na França em 1997 e aqui em 2004 (Annablume). Graças ao fantástico desenvolvimento técnico-científico, se produz atualmente um crescente volume de riquezas com uso decrescente de capital e trabalho. Gorz observa que, em conseqüência, a produção remunera uma quantidade cada vez menor de ativos produtivos e de trabalho. Isso, por um lado, gera mais desemprego e pobreza e, por outro, estimula o capital a se reproduzir sem a mediação do trabalho, em operações nos mercados financeiros e de câmbio ou investindo em países com salários mais baixos. Em outras palavras, quanto mais aumenta a capacidade de produzir e gerar riqueza, menos o capitalismo depende do trabalho e do próprio capital. E a riqueza, representada pelo dinheiro, transforma-se cada vez mais em ameaça e não em solução para os desafios da vida. Esse drama, com vocação de tragédia, decorre da insistência em padrões de distribuição de riqueza funcionais para um sistema produtivo de base industrial e presos ao tempo de trabalho como referencial de valor, no momento em que a reprodução do capital depende mais do conhecimento do que das fábricas. A esse respeito, Gorz cita a terrível profecia do Prêmio Nobel Wassily Leontieff: “Quando a criação de riqueza não depender mais do trabalho dos homens, eles morrerão de fome às portas do Paraíso, a menos que se estabeleça uma nova política de renda correspondente à nova situação técnica.”

Portanto, o Senador Suplicy talvez não seja tão quixotesco. Não só porque está na boa companhia de pensadores postos à prova em desafios de verdade, mas também porque gente tida como muito pragmática acaba se vendo forçada a endossar a sua causa, embora a contragosto e de forma furtiva e enviesada. Para amenizar o arrasador efeito econômico sobre a economia norte-americana (e do mundo) que a crise dos empréstimos subprime provocou, o remédio que o Presidente Bush arranjou para acalmar “os mercados” — essa entidade suprema da economia pós-moderna — foi exatamente mandar cheques para as casas de milhões de norte-americanos. Aliás, a mesma receita usada em 2001, na crise das Torres Gêmeas. Do jeito que as crises se tornam freqüentes (já se fala na Bolha Chinesa), pode ser que a prática de mandar cheques para as pessoas também vire rotina e se espalhe pelo mundo.

E o Iraque com isso? Quando o Presidente Bush esteve em Brasília, em 2005, o incansável Suplicy não perdeu a oportunidade de vender seu peixe, citando o exemplo do Alasca. Bush respondeu: “No Alasca, eles têm muito petróleo.” E Suplicy insistiu: “Mas podemos ter a renda básica a partir de todas as formas de riqueza que são criadas.” E sugeriu que o Iraque — onde o petróleo foi transformado numa peste — seguisse o exemplo do Alasca como forma de chegar à paz. Por que não?    

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