10/07/2006
Jornalismo e defesa da ética
José Reinaldo Marques
07/07/2006
Fernando Lemos |
Com 40 anos de carreira, Flávio Pinheiro, editor-chefe do Estado de S. Paulo, diz que sempre atuou como jornalista, mesmo nas pouquíssimas atividades que teve fora da profissão, como quando foi Diretor de Programação da Feira Literária Internacional de Paraty (Flip), em suas duas primeiras edições (2003 e 2004).
Como muitos colegas de sua geração, teve “vida de cigano” na carreira, iniciada na sucursal carioca da Folha de S.Paulo com 18 anos, no dia 15 de junho de 1966. Aqui, ele fala de sua trajetória, da ética no jornalismo, de liberdade de imprensa e do seu gosto pela música erudita.
ABI Online — Você sempre se dedicou ao jornalismo?
Flávio Pinheiro — Sempre, mesmo nas pouquíssimas atividades que tive fora da profissão. E como muitos jornalistas da minha geração, tive vida de cigano no começo da carreira.
ABI Online — Como assim?
Flávio — Na Folha de S. Paulo, meu primeiro emprego, fiquei um ano e meio. Fui, então, para a Visão, quando a revista transferiu sua sede editorial para o Rio. Acho que não fiquei dois anos lá. Fiz um teste para o Correio da Manhã e fui admitido como redator da Internacional. Lá, fui convidado por Washington Novaes (o mesmo que me deu meu primeiro emprego) para ser um dos subeditores do caderno Diretor Econômico.
ABI Online — E continuou sendo um “jornalista cigano”?
Flavio — Em 1972, saí do Correio, tive uma passagem rápida, como chefe de reportagem, pelo Jornal dos Sports, então dirigido por José Trajano, outra rapidíssima passagem pela Pesquisa do Globo e logo fui convidado por Raimundo Rodrigues Pereira para ser um dos editores (de Nacional) do Opinião.
ABI Online — Opinião foi um dos mais combativos veículos dos anos 70, durante o regime militar. Valeu a experiência?
Flávio — Foi extraordinária, apesar das vicissitudes. Conheci Raimundo Rodrigues Pereira, um notável jornalista, com quem aprendi muito. Assim como aprendi com outros colegas desta brava empreitada: Aloysio Biondi (com quem já havia trabalhado na Visão), Renato Pompeu, Tonico Ferreira e Cássio Loredano, só para citar alguns.
ABI Online — Que lembrança você tem do período que classifica como de “grande escuridão política”?
Flávio — Lembro-me vivamente da noite em que a redação da Rua Abade Ramos foi invadida por agentes do Dops, metralhadora em punho, que caçavam um jornalista, felizmente ausente. Não foi minha primeira experiência com a invasão de meganhas. Estava no Correio da Manhã quando eles levaram o baiano Jurandir Costa, que, salvo engano, não ficou preso por muito tempo. Eram freqüentes as blitzen em redações.
ABI Online — Quanto tempo você ficou no Opinião?
Flávio — Pouco, um semestre. Aloysio Biondi foi convidado para dirigir a Redação do Jornal do Commercio e me chamou para ser Secretário de Redação. Outra experiência formidável, mas também breve: durou dez meses.
ABI Online — Por quê?
Flávio — Aloysio preparou uma edição especial que triturava a política econômica de Delfim Neto. Por ordem de João Calmon, a edição, totalmente pronta, foi interditada ainda na gráfica. Aloysio pediu demissão e sua equipe debandou — eu inclusive.
ABI Online — Chegou a ter problemas pessoais na ditadura?
Flávio — Não, quer dizer, não fui preso. Tive medo, angústia, sobressaltos. Mais de uma vez ouvi de amigos que tinham sido presos que meu nome fora mencionado em interrogatórios. Era o bastante para perder o sono.
ABI Online — Para onde foi depois do Jornal do Commercio?
Flávio — Saí em novembro de 1973, trabalhei um pouco como freelancer e, no começo de 74, fui convidado por Paulo Henrique Amorim para ser editor-assistente da revista Exame, no Rio. Foi a primeira vez que trabalhei na Abril. Fiquei três anos e meio. Em 77, fui com Paulo Henrique para o Jornal do Brasil, para ser subeditor de Economia.
Editora Abril |
ABI Online — E a ida para a Veja, como foi?
Flávio — Aconteceu em 78: a convite de Mário Alberto de Almeida (editor de Política) e meu amigo Zuenir Ventura (chefe da sucursal), virei editor-assistente de Política da Veja, no Rio. Em 81 ou 82, não lembro exatamente, o Zuenir saiu e eu fiquei como chefe da sucursal carioca da revista.
ABI Online — Fale, por favor, do seu trabalho na Veja.
Flávio Pinheiro — Foi um dos melhores e mais fecundos períodos da minha vida profissional. Aprendi com gigantes da profissão, como Elio Gaspari, José Roberto Guzzo, Dorrit Harazim, os já citados Zuenir e Mário Alberto, Roberto Pompeu de Toledo, Mário Sergio Conti, Augusto Nunes, Marcos Sá Corrêa… São desse tempo grandes matérias de Xico Vargas (Prêmio Esso com o caso Baumgarten), Ancelmo Góis, Joaquim Ferreira dos Santos, Lúcia Rito e José Castello. Jornalistas de primeira.
ABI Online — Você é o autor do projeto da Veja Rio, um grande sucesso editorial.
Flávio — Antes de falar da Veja Rio, preciso falar do Jornal do Brasil.
ABI Online — Então vamos falar do JB.
Flávio — O primeiro período no jornal, como subeditor de Economia, foi breve demais, um ano e pouco. O segundo foi uma fantástica aventura profissional. A convite de Marcos Sá Corrêa, em 85 fui ser editor do Caderno B. Seis meses depois, ele me chamou para ser editor-executivo, o segundo dele, que era o editor-chefe. Mais tarde, dividi a função com Roberto Pompeu de Toledo.
ABI Online — Foi outro time da primeira linha.
Flávio — Conheci no JB esplêndidos profissionais já escolados em outras redações, como Miriam Leitão, William Waack, Ruth de Aquino… Foi um período de muitos prêmios (como o Esso de Jornalismo de Zuenir Ventura, pela cobertura do caso Chico Mendes) e de grande fertilidade editorial, como a reformulação da revista Domingo e a criação da revista Programa e do caderno Idéias.
ABI Online — A sua passagem pelo Jornal do Brasil durou até esse período?
Flávio — Houve ainda um terceiro. Em 2001, chamado por Mário Sergio Conti, fui ser Diretor-adjunto de Redação por fugazes quatro meses, período que foi batizado por muitos de seus protagonistas como Primavera de Praga, pela rapidez e truculência com que foi abortado. Só havia um projeto. Não havia dinheiro nem intenção de pô-lo em marcha.
ABI Online — E a Veja Rio?
Flávio — Entre uma e outra passagem pelo JB surgiu a Veja Rio, um capítulo à parte na minha vida. O Mário Sergio Conti foi para a Abril e me chamou para criar a revista e dirigi-la, em 1991. A Veja São Paulo já era um tremendo sucesso, mas, mesmo tendo a versão paulista como modelo, fizemos uma revista genuinamente carioca. Para isso, contribuiu muito a presença do Alfredo Ribeiro e do seu alter-ego, o Tutty Vasques.
Vantoen Pereira Jr |
Equipe formada para o lançamento da revista Veja Rio |
ABI Online — Quais eram os outros profissionais da equipe?
Flávio — Era uma magnífica equipe: Fábio Rodrigues, Arthur Dapieve, Sérgio Rodrigues, Márcia Vieira, Xico Vargas, os ótimos fotógrafos reunidos especialmente para a revista na agência Strana… Foi uma delícia fazer a Veja Rio. Depois de tantos anos enfurnado em Economia e Política, mergulhar na minha cidade foi muito bom.
ABI Online — Antes de se transferir para o Estadão (do qual é editor-chefe desde agosto de 2004), você atuou em dois sites jornalísticos: NO. e NoMínimo. O que fez nesses veículos?
Flávio — Em 2000, um grupo de jornalistas ao qual me associei criou o site NO., do qual fui um dos editores, juntamente com Marcos Sá Corrêa. Com o fim do NO., dois anos depois, foi criado — pelo mesmo grupo de jornalistas, embora reduzido — o NoMínimo, do qual também fui um dos editores.
ABI Online — É boa a qualidade do jornalismo online brasileiro?
Flávio — Acho que está a cada dia melhor. É um mundo novo que está sendo desbravado pelo jornalismo, por isso mesmo ainda cheio de incertezas.
ABI Online — Mas que fase dele vivemos hoje?
Flávio — Transposta a primeira fase de exageros sobre a informação em tempo real — “o ministro tal acaba de chegar ao recinto da CPI”, notícia que não queria dizer absolutamente nada — e de deslumbramento com a globalização da informação — como relatos de crimes escabrosos na Bielo-Rússia ou de fait divers na Tailândia, só para comprovar as virtudes da renovação permanente de informações —, estamos num momento mais maduro e proveitoso.
ABI Online — É ruim a internet ter dado mais velocidade à notícia?
Flávio — A internet é um circuito espetacular para a informação, que é o negócio do jornalista. De início, a pressa abriu o caminho para a irresponsabilidade. Matou-se gente antes da hora na internet, para dizer o mínimo. Mas hoje há muito mais cuidado, as informações estão sendo mais checadas.
ABI Online — Como se faz jornalismo ético?
Flávio — A ética na imprensa é construída todo dia. Tirando a óbvia fronteira entre decência e indecência, há fronteiras tênues que precisam ser observadas à luz de cada fato. O jornalista usa a fonte ou a fonte usa o jornalista? Quando a informação plantada é útil ou não para o leitor e quando é legítimo proteger o “plantador” com o anonimato? Jornalistas podem ser amigos de suas fontes? Até que ponto? O que é justificável saber e não publicar? Tudo deve ser público na vida de um homem público? Não há respostas padronizadas para estas perguntas. Tudo depende do caso. De cada caso.
ABI Online — Nosso padrão ético é bom?
Flávio — Sem dúvida houve grandes progressos na imprensa brasileira. E isso se deve aos jornalistas que tomaram progressivamente para si uma responsabilidade que antes era apenas dos patrões. Eles zelavam pela ética e, algumas vezes, privatizavam a ética.
ABI Online — O Congresso vai debater liberdade de imprensa e democratização da comunicação. É uma pauta oportuna?
Flávio — Acho importante que jornalistas discutam permanentemente estes temas. Somos vetores de uma liberdade constitucional: a liberdade de informação. A democracia brasileira está na sua segunda infância (a primeira foi entre 1946 e 1964). Há muita coisa a fazer para democratizar a democracia. Temos que ser parte deste esforço. A concentração da informação nas mãos de poucos como está se desenhando nos Estados Unidos, a pátria da liberdade de informação, é preocupante.
ABI Online — Num debate na ABI sobre o Sistema Brasileiro de Televisão Digital, o Ministro Gilberto Gil defendeu que o SBTVD deve privilegiar a inclusão social e a tecnologia nacional. Qual é a sua opinião?
Flávio — Acho que democratizar o acesso à internet e outras mídias é uma das tarefas de democratização do País. Confesso que não sei o suficiente sobre o SBTVD para opinar, mas me parece tardio entrar agora na fabricação de chips e circuitos integrados, o prêmio de consolação para a escolha que fizermos. Estamos a léguas da fronteira do conhecimento e não acredito muito que a gente vá encurtar o caminho tendo uma fábrica. Estamos comprando um sistema para atender só as TVs, sem pensar na paisagem multimídia? Então, é pouco.
ABI Online — O que o levou a participar do projeto “Favela tem memória”?
Flávio — O Rubem César Fernandes, coordenador do Viva Rio, me chamou para dar uma consultoria no site Viva Favela, que infelizmente acabou. Foi neste processo que sugeri a criação de uma espécie de subsite tratando de memória.
ABI Online — Qual a importância da memória de uma favela?
Flávio — A favela só é reconhecida na cidade com uma presença estatística, uma mancha na paisagem, um esconderijo perfeito do crime organizado. Mas é muito mais do que isso. Ninguém sabe direito o que se passa nela e o que se passou. A remoção da favela da Catacumba, por exemplo, foi uma tragédia. A memória é uma distinção de identidade, uma fonte de afetividade por mais dolorosa que possa ser (e não é só dolorosa, registre-se), uma singularidade. Há relatos comoventes nos registros de veteranos moradores nas fitas gravadas (e transcritas) do projeto. Trata-se de documento. É uma preciosidade.
ABI Online — Como você virou promotor da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), um dos maiores eventos de literatura do País?
Flávio — Foi um acidente muito agradável da minha vida de jornalista. Chamado em primeiro lugar por Luiz Schwarcz (editor da Companhia das Letras e meu dileto amigo de longa data), e depois pela editora inglesa Liz Calder (autora da idéia), me entusiasmei com a possibilidade de criar no Brasil um festival literário nos moldes dos já realizados na Europa, na Austrália e no Canadá.
ABI Online — Não teve medo de apostar numa cidade que até então não tinha tradição em movimento literário? Por quê?
Flávio — Não tive medo nenhum da escolha de Paraty, feita por Liz que é apaixonada pela cidade. Paraty tem a atmosfera perfeita para um festival que repousa na comunicação de autores com leitores. O charme histórico e natural de Paraty é imbatível.
Fernando Lemos |
ABI Online — Você ainda está ligado à Flip?
Flávio — fui Diretor de Programação nas duas primeiras edições (2003 e 2004) e depois me desliguei, por conflito de interesses. O jornal (Estadão) cobre, e deve cobrir, o evento com toda a liberdade. E pelo que já ouvi falar de Ruth Lanna, que me sucedeu, esta deve ser a melhor Flip. O conjunto dos autores convidados é ótimo.
ABI Online — O cineasta João Moreira Salles disse que o documentário sobre o pianista Nelson Freire foi sugestão sua. A música erudita é outras de suas paixões?
Flávio — Sim, mas digo e repito em alto e bom som: o documentário é do João, é sua sensibilidade que percorre tudo em cada detalhe. Apenas colaborei um pouco com o roteiro e participei de algumas filmagens no Brasil.
ABI Online — Qual foi seu maior êxito no campo das artes?
Flávio — Não tenho êxito nessa área. Sou leitor e ouvinte. Nada mais.
ABI Online — E na carreira jornalística?
Flávio Pinheiro — Tento gostar sempre do que estou fazendo. Neste momento, gosto de trabalhar no Estadão, um grande jornal, onde tive o prazer de conhecer excelentes profissionais.