Entrevista Apolônio de Carvalho


17/06/2015


-Tarcísio Holanda – Qual é a origem social do senhor? Como foi o ambiente em casa? Quem era o seu pai, a sua mãe? Quem eram seus irmãos? Quantos eram?

– Apolônio de Carvalho – Muito bem. Eu dizia a vocês que eu sou do Pantanal e que também tenho nas minhas origens uma abrangência um pouco particular, porque eu venho de uma mãe, que era gaúcha, e de um pai nascido em Maruim, em Sergipe. Meu pai foi filho de camponeses pobres, em Sergipe, na zona açucareira, zona canavieira. Uma família, como toda família de província, em particular, na metade do século passado — meu pai deve ter nascido em 1860 – era uma família muito numerosa. Eram oito moços e oito moças.

 

Então, num momento dado, o jovem Cândido, que era o meu pai, que depois se chamaria Candoca também na Escola Militar, o jovem Cândido resolveu buscar um outro caminho para ajudar, inclusive, a família, se possível. E a pé, como se fazia na época, de Sergipe até Salvador, chegou à Bahia. Trabalhou na Bahia como lavador de pratos de hotéis, de restaurantes, como entregador de compras, de pacotes de compras nas casas comerciais etc. Mas era muito estudioso. Ele contava como se esforçava tremendamente para aprender.

 

Ele trabalhava durante o dia e, em casa, à noite, para não dormir punha os pés numa bacia com água bem fria, e estudava. Com isso ele fez um curso bastante significativo. Em um momento dado, ele se transformou. Foi um grande salto. Ele se transformou no que se chamava naquela época “tipógrafo”, quer dizer, um gráfico —  um homem da classe operária. Mas ele não estava contente. Ele queria ser militar, queria ser oficial. Nas escolas militares — eu digo no plural, porque isso continuou depois — havia possibilidade de receber alunos.

 

Os colégios militares que existiam preparatórios, eram da faixa dos cadetes. Existiam colégios militares em Fortaleza, em Barbacena, no Rio e em Porto Alegre. Era através de um exame de admissão que se recebiam, para um ano de estudo preparatório, novos contingentes de alunos para a Academia Militar, para a Escola Militar. Nós não tínhamos, nesse momento, a veleidade de a chamarmos Academia Militar como a Agulhas Negras. Nós éramos da Escola Militar, como o papai. Ele entra na Escola Militar da Praia Vermelha, faz os exames de admissão, se torna aluno e ali se forma. Se forma e sofre as primeiras influências. Primeiro, num contato com a população urbana num momento bastante agitado, no princípio desse século e fim do século passado; em segundo lugar, com as idéias da época, sobretudo as idéias políticas, que marcavam particularmente certos setores das Forças Armadas: o Clube Militar, a Escola Militar, onde havia um grande professor muito conceituado chamado Benjamin Constant. E ele se torna positivista. Estudava um bocado do que fosse, do que podíamos chamar os primeiros passos do domínio da filosofia, da vida social, da história da sociedade e tudo mais. Sob a influência sempre das raízes sergipanas.

 

Os grandes mestres saídos de Sergipe que tinham se formado naquele grande centro cultural que era a Universidade de Recife, nesse fim de século e no princípio do século. Mas no domínio do materialismo, ele sempre foi um livre-pensador. Ele nunca foi além de Spencer.

 

Conheceu Marx e Engels através de alusões que ele encontrava em Sílvio Romero ou outras grandes figuras de Sergipe da literatura e da cultura. Mas, em geral, foi muito ligado à imagem de Benjamin Constant, que teve aquele papel importante para a República e que marcaria, nos jogos da época, uma tendência. E conto isso a vocês porque, afinal de contas, isso marcaria também a nossa geração, a nova geração: o sentimento nacional, a recusa aos regimes de força, o “não” ao poder autoritário concentrado do Império etc. e tal.

 

Então, papai contava como um dos elementos bonitos da sua trajetória de jovem ter participado da Proclamação da República, sem olhar a ausência do povo nessa proclamação. Ao mesmo tempo, depois de formado, ele foi servir em Bagé. Era oficial da Artilharia. E em Bagé ele faria relações. Ele, que vinha de uma família de camponeses pobres, da zona canavieira, ia entrar em relações com figuras… Em uma cidade, digamos assim, pequena para a média, como era Bagé nessa época, fim do século, era muita marcada pela presença das figuras ligadas às grandes fazendas e à pecuária no Estado e também a uma grande aceitação, um lugar especial reservado no quadro da juventude feminina para os militares, os oficiais. Em certo sentido medieval da cavalaria, um pouco presente na área do Rio Grande. Então, nesse quadro, entre outras pessoas, ele conheceu uma moça chamada Inês, que vinha de uma família onde havia escravos até 1888. Família Andrade Neves. A Inês era já parte de um ramo descendente da família original os Andrade Neves, mas que estava muito marcada por vicissitudes da vida. Vinha de uma família já mais de classe média, de pequenos produtores; mais num quadro urbano.

 

Então aí eles se casam o Tenente Candoca e a Inês. Meu pai a chamava, como num sussurro, pela sua ascendência um pouco aristocrática, de Sinhá. Então ele a chamava, como num sussurro, assim… a sua Sinhá. Isso ficou muito na marca da família. Casam-se, portanto… Eu estou contando esse problema da origem de famílias porque das escravas que ficaram com a família, com os pais da Sinhá, uma delas foi viver com meu pai e com minha mãe no novo lar, que eles formaram.

 

Vocês vejam como as épocas se justapõem tranquilamente, de maneira serena, na marcha natural dos acontecimentos. Mas acontece que meu pai, como bom nordestino, depois da passagem dos holandeses, depois da passagem de outras origens européias pelo Nordeste, tinha um bocado também da mescla do branco e do preto. Então meu pai era um moreno — não um moreno carregado, mas moreno — mas tinha um cabelo levemente crespo. E o Rio Grande era terrivelmente racista. E ele se chocou, mesmo dentro da família da minha mãe, com influências racistas, a tal ponto que eles se portaram juntos nesse ambiente, mas, em momento dado, ele resolveu deixar o Rio Grande. Como tinha possibilidade de encontrar uma boa guarnição no antigo Mato Grosso, não havia ainda o Norte e o Sul nessa época, ele foi para Mato Grosso, já com quatro filhos. Em Mato Grosso nasceram os 2 últimos: eu, com esses cabelos brancos sou o caçula; outros já partiram, já nos deixaram. Então, ficou a princípio, em Corumbá. Depois foi convidado para dirigir o arsenal de guerra de Cuiabá, que era a capital. Esteve lá.

 

Mas, como um elemento que vinha de uma família de camponeses pobres, em contato, muito provisório, com um movimento social leve, sob influências mais, digamos assim, democráticas, no espírito de Benjamin Constant, na Escola Militar, ele tinha um grande respeito pelo povo, pela população, pelos trabalhadores, etc. e tal. Eu estou contando isso porque a um momento dado, dentro dessa norma, que não é atual apenas, no momento em que o Presidente da República está ameaçando jogar fora do Governo os Ministérios que, no Parlamento, não cumpram as decisões do Poder Executivo.

 

Dentro desse quadro, houve as eleições para o Governo do Estado, em momento dado. E como o Arsenal de Guerra abrigava 2 mil trabalhadores, meu pai, o jovem oficial, foi cercado de solicitações. “Você é muito querido na sua tropa. Se você aconselha essa gente a votar em nosso candidato ao Governo do Estado, então as coisas ficam muito mais fáceis sua carreira. Nós lhe garantimos uma promoção rápida. E, depois, todos nós temos muitas fazendas. Nós lhe daríamos de presente uma fazenda” etc. e tal.

 

Essas coisas que a gente sente muito bem e que sentiu muito bem, até há 4 anos atrás, quando se tratava da reeleição do Presidente da República e da busca de votos no País, não é? Muito bem. Meu pai ficou terrivelmente revoltado com isso. Deixou o contato com essa gente.

 

Voltou ao Arsenal de Guerra, reuniu os seus operários e disse: “Vocês votarão em quem quiser. Ninguém será perseguido por qualquer que seja sua escolha. A escolha é de vocês. E se alguém quiser intervir no sentido contrário, vocês falem comigo, porque nós não admitimos essa agressão ao direito de cidadania e ao direito democrático à escolha das preferências de cada um”. 

 

Isso fez com que se tramasse a punição — vocês vejam que o problema da punição não é de hoje — a punição dos que se rebelavam. Seguramente, meu pai, nessas andanças de Aruí para Salvador, em busca de condições para estudar no Rio e tudo mais e tal, tinha gasto um certo número de anos, e, seguramente, deveria ter arranjado uma diminuição no total da sua idade para poder entrar na Escola Militar. (Risos.) Descobriram isso e então ele foi reformado. Antes disso, ele foi transferido para o Forte de Coimbra, bem na fronteira do Paraguai. Ele ia escrever mas interrompeu a história do Forte de Coimbra, porque houve também interferências ali contra ele.

 

Em síntese, meu pai teve uma velhice bastante amarga, porque era uma figura cheia de entusiasmo profissional. Tinha participado em Bagé da luta contra… No momento da guerra civil. E também, em 1893/94, quando houve certas tentativas, que não eram apenas localizadas no quadro regional, mas estavam ligadas a Saldanha da Gama e outros, com vistas a uma certa restauração da monarquia. (Risos.)

 

-Ana Maria Lopes de Almeida – E o Chile? Ele foi para o Chile, não é?

Tarcísio Holanda – Não, mas ele ainda estava falando da origem dele. Estava falando do Rio Grande do Sul, das lutas castilhistas.

APOLÔNIO DA CARVALHO – Eu queria lembrar com vocês onde eu estava, porque nós tínhamos chegado ao problema da reforma do papai.

Tarcísio Holanda – Da reforma do seu pai, exatamente.

APOLÔNIO DA CARVALHO – Isso mesmo, não é?

– Tarcísio Holanda – É.

APOLÔNIO DA CARVALHO – E eu lembrava, de passagem, que o papai tinha já lutado em Bagé, no cerco de Bagé. Aí entram os castilhistas etc. e tal.

– Tarcísio Holanda – Os sublevados.

– APOLÔNIO DA CARVALHO – Sublevados etc. e tal, não é?

-Tarcísio Holanda – Os castilhistas. E o Líder desses caras era um Senador que tem nome de rua aqui no Flamengo. É o Gaspar da Silveira Martins.

APOLÔNIO DA CARVALHO – Ah! Silveira Martins. É isso mesmo.

Tarcísio Holanda – Silveira Martins. Podemos retornar ao ponto em que o senhor deixou.

– APOLÔNIO DA CARVALHO – Muito bem. Eu começo, portanto, a ter uma presença em casa a partir de — sou de 1912 —, a partir de 1916, 1917, 1918, após a reforma do papai como oficial do Exército. Em particular, porque isso trazia à nossa família uma situação extremamente particular e, em certa boa medida, bastante dura. É que, na província — sobretudo nessa época, no início do século anterior —, um oficial do Exército, um major do Exército era alguém que lembrava a classe média alta. Mas o soldo dos militares era muito baixo.

 

Então, eu comecei a crescer numa família e num ambiente onde havia a necessidade de garantir certa aparência. Eu sou de uma família majoritariamente feminina — graças a Deus! — majoritariamente feminina. Nós somos 2, o primeiro e o último homens, e 4 moças entre os 6. Isso levaria à contradição entre a necessidade de uma certa aparência de estabilidade e, ao mesmo tempo, as dificuldades materiais muito prementes. Isso fez com que as minhas irmãs todas passassem a ser — para sua capacidade de resolver seus problemas de moça — professoras primárias. Todas elas, as quatro, foram professoras primárias. Meu irmão passou a ser… Formou-se em comércio; portanto, foi contador.

Trabalhava numa firma inglesa Dickinson & Cia., que tinha grandes fazendas e era uma firma exportadora. E eu era caçula, e a Maria, pré-caçula, cumprindo ainda a formação escolar inicial. Muito bem. Era uma situação assim um pouco particular, porque todo mundo trabalhava e todo mundo vivia muito modestamente. E havia também a nosso favor, em particular a meu favor, um ambiente particularmente solidário das autoridades municipais.

 

Por exemplo, em Corumbá, minha cidade — e eu era um bom aluno secundário — nós tínhamos um bom ginásio municipal, mas ele não era reconhecido oficialmente. Campo Grande — que era uma cidade nova, mas que se desenvolvia muito e muito rapidamente; hoje a capital do Mato Grosso do Sul — tinha ginásios reconhecidos.

 

Então, eu estudava em Corumbá. No fim do ano, a Prefeitura — que nesse tempo se chamava Intendência; não sei se vocês se lembram disso — nos dava de presente uma viagem de ida e volta, gastos com correspondência etc., a Campo Grande, para fazermos os exames, e assegurarmos o reconhecimento em qualquer faculdade e universidade, depois da nossa passagem pelo curso médio. E isso se passou, por exemplo, nos 3 últimos anos: terceiro, quarto e quinto da minha formação como estudante. Uma ajuda da Prefeitura.

 

A dado momento terminaram os estudos em Campo Grande, e, verdadeiramente, terminei o curso médio em Campo Grande. A minha idéia era ser médico. Eu achava que era… Não era uma profissão; era um apostolado: cuidar… Se o professor cuida da consciência e da alma, o médico cuida da vida, do corpo, da vitalidade, não é? Eu achava que era uma coisa muito atraente. Mas, no Mato Grosso da época, não havia faculdades de Medicina nem universidades. Ir estudar em São Paulo ou no Rio — onde não tínhamos pontos de apoio — só teria sido possível se eu pudesse trabalhar de dia e fazer um curso, ou trabalhar de manhã e fazer um curso à tarde. Mas a Medicina é marcada por uma coisa muito dura. Quer dizer, é tempo integral, da manhã à noite.

 

Então, eu não tinha essa possibilidade. E a minha mãe me chamou à realidade. As 3 primeiras filhas já estavam casadas, mas a Maria não tinha se casado ainda. E ela me propôs: “Você não pode, não tem possibilidade de fazer um curso de Medicina, nem aqui nem fora. Por que você não segue a carreira de seu pai? Porque ali você já tem assegurada a sua sobrevivência, um pequeno soldo de cadete, a cada mês. Forma-se em 3, 4 anos, e será independente. Pode inclusive ajudar a família etc.” Esse é o quadro que se deu. Meu pai, que ouvia a conversa e que era sempre muito discreto, interveio nesse momento e disse o seguinte: “Eu não quero me misturar nessa questão, mas, se você se decidir a ser militar, não se esqueça de ir ao partido político que o pessoal escrever!” (Risos.) Então, mesmo sem grandes entusiasmos, eu fui ser oficial da Escola Militar de Guerra. Acho que respondi à primeira pergunta tua, não foi?

 

– Tarcísio Holanda – O senhor saiu oficial quando?

– APOLÔNIO DA CARVALHO – No fim de 1933, eu me formo como oficial. É verdade que minha passagem pela Escola Militar do Realengo valeu-me muito.

– Ivan Santos – É isso que a gente queria saber.

APOLÔNIO DA CARVALHO – Ótimo!

– Ivan Santos – Nessa passagem pela escola. O senhor passou por essa escola num tempo muito significativo.

– APOLÔNIO DA CARVALHO – Exatamente.

– Ivan Santos – O que é que lhe influenciou? Como é que o senhor começou a despertar para a coisa da política, para os movimentos sociais? Quais foram as influências, as leituras, essa coisa toda, as companhias?

 

APOLÔNIO DA CARVALHO – Exatamente. A escola foi, para mim, um local de aprendizado. Primeiro, cultural; segundo, de aprendizado político de maneira geral, através da busca de cultura, do encontro com as realidades muito duras do nosso País — os grandes contrastes sociais e, também, o encontro com  algumas sugestões do ponto de vista social e do ponto de vista político.

 

Na Escola Militar nós éramos 800 alunos, e eu tinha um grupo de amizades, praticamente uma dúzia de amigos muito capazes que faziam muita leitura. Um deles vou lembrar para vocês, que vocês conhecem: Nelson Werneck Sodré, meu colega da Escola Militar. E, com eles, eu sentia a imensa distância entre a minha ignorância de pantaneiro, que não tinha cultura nenhuma…

 

Eu, praticamente, no período anterior à minha entrada na Escola Militar, lia — isso é verdade — sobretudo Alexandre Dumas, com todos os seus espadachins — desde Os Três Mosqueteiros, 20 Anos Depois; depois O Visconde de Bragelonne. Lia todas as coisas dos espadachins da época, D’Artagnan,(ininteligível) etc. Mas obras interessantes, não, porque meu irmão não tinha um apego muito grande à cultura. Eu me lembro que o que aparecia em casa eu lia. Eu gostava muito de ler.

 

– RENÉE DE CARVALHO – Mas você era poeta.

– Ana Maria Lopes de Almeida – Sim. Eu sempre ouvi dizer.

– APOLÔNIO DA CARVALHO – Eu vou chegar lá. Agora eu estou falando da aprendizagem política, não é? Ele perguntou inicialmente. Muito bem. Então, do ponto de vista de cultura, em casa, eu não tinha muita sugestão positiva, porque minhas irmãs liam os livros de Delly e de Ardel, aqueles romances típicos da época. Meu irmão trouxe para casa uns 2 livros interessantes: um livro de Euclides da Cunha:Contrastes e Confrontos — bem interessante o caso — e um livro de Victor Hugo. Eu devorei esses livros. Mas eu estava no quadro dos espadachins.

 

Eu tinha também meus arroubos de poeta. A partir de 10 anos ou mais, eu conversava com as pessoas e dizia, nos intervalos, eu contava assim, as sílabas. Os meus versos de 10 sílabas, de 12 sílabas, e o acento na sexta, na décima segunda. (Risos.). Eu, aos 10, 11 anos comecei a escrever versos, e a população corumbaense foi extremamente generosa comigo. Eu tinha no meu ginásio municipal de Corumbá um professor de português que era uma figura extremamente interessante. Chamava-se João Leite de Barros; era um médico sem clientela; um grande fazendeiro, dono de grandes terras, pecuária etc. e tal. Mas era um apaixonado de Eça de Queiroz e um professor magnífico que nos estimulava a ler… para que lêssemos, para que conhecêssemos culturas etc. e tal. E, para nos animar, ele, uma vez pelo menos por mês, entre as composições escritas pelos alunos das sabatinas (porque todos os sábado nós tínhamos sabatinas), ele escolhia as 3 que lhe pareciam as melhores. E numa cidade pequena é tudo como uma família. Havia dois  jornais, A Cidade e A Tribuna. E esses jornais se prontificavam a publicar nossos pequenos trabalhos.

 

Então eu comecei a me sentir colaborador desses jornais, através de minhas pequenas contribuições de sabatina. Mas, ao mesmo tempo, comecei a fazer versos. E os jornais também como a população de “Corumbópolis”: extremamente generosa. E eu gostei muito de escrever, de produzir etc., claro que num sentido romântico, na base da poesia mais acalentada pelos amores felizes ou infelizes.

 

Ana Maria Lopes de Almeida  O senhor lembra de algum?

– APOLÔNIO DA CARVALHO – Ah! me lembro. No livro. Você tem alguns livros.

– Ana Maria Lopes de Almeida  Mas pode recitar algum?

– APOLÔNIO DA CARVALHO – Eu posso recitar.

Ana Maria Lopes de Almeida  De memória?

– APOLÔNIO DA CARVALHO – Posso, posso recitar. Então, vou citar para você 2 poemas: um dessa época e um da Escola Militar. Com o avanço que eu fazia na Escola Militar com as minhas amizades, e com as minhas novas leituras — porque na Escola Militar eu encontrei uma biblioteca extremamente rica. Toda a literatura européia e americana da época eu tinha ali.

 

E, como eu tinha uma distância muito grande do nível cultural dos meus amigos, passei primeiramente a fazer um mergulho na literatura. Então eu lia muito. E também comecei a fazer um salto nas minhas preocupações. Eu também lia livros de caráter, digamos assim, científico, e também um pouco enveredava em área de filosofia etc e tal.  A Origem das Espécies… já quebrava um pouco um Catolicismo que eu nunca tinha absorvido bem. Porque a minha mãe era o tipo da católica provinciana brasileira: acredita em Deus, acredita na Igreja, mas nunca vai à Igreja. Meu pai era livre pensador. Isso me ajudava muito. Meu irmão, meu modelo maior, era maçom. De maneira que eu tinha uma certa independência nesse quadro. E, na Escola Militar, eu vou fazer um salto porque eu vou ler Darwin, vou ler alguns outros trabalhos interessantes, e, sobretudo, eu vou ler alguns autores que, sem o pessimismo de um Schopenhauer, eram críticos muito duros dos grandes contrastes sociais da sociedade capitalista. Um livro que eu nunca esquecerei: As Mentiras Convencionais da Civilização, de Max Nordau. Eu iria ler na Escola Militar também um outro livro que me ajudaria muito a buscar um caminho.

 

Com Nordau, eu aprendi que havia uma hipocrisia muito grande nas relações sociais. Havia não só contradições, mas contrastes muito profundos no interior da sociedade: a mentira do ensino, a mentira da justiça, a mentira do direito. Então, isso me impressionou muitíssimo na Academia Militar. E com isso eu passei a buscar conhecer melhor a sociedade brasileira. Ao mesmo tempo, eu sentia que eu me colocava numa posição platônica, porque eu criticava a sociedade, eu não aceitava essa sociedade, mas não queria ficar como o meu pai no fim da vida, porque quando foi reformado – compulsoriamente praticamente, não é? —, ele ficou muito amargo. Era muito doce para a família, mas sem vida social, sem outras coisas… com a capacidade que tinha! Eu queria também aplicar em algo essa visão, seja para mudar, seja para amenizar. E como eu tinha trazido de casa, na formação familiar, uma aversão aos regimes de força, o respeito aos direitos humanos — uma visão sem este nome de democracia – eu sentia que era necessário trabalhar também nesse sentido.

 

E eu li – ao lado das benesses da Max Nordau, com sua perversidade em relação à realidade existente – um livro de um professor argentino, que não era socialista, mas que ajudava seus alunos a se afastarem da sociedade capitalista, numa crítica muito forte, e a terem a visão de como não ficar apenas na crítica, na teoria, digamos assim, na visão teórica da sociedade, mas na prática de sua transformação através do movimento social. É um livro que tem um título muito bizarro: El Hombre Mediocre, de Josè Ingenieros, um livro extremamente interessante. Eu o guardo bem porque ele marca muito bem a minha formação.

 

De modo que passo para a Escola Militar fazendo um salto muito grande. Me oriento para posições muito próximas do socialismo, mas sem livros socialistas. Meus amigos todos tinham uma formação mais ou menos marxista, ou, como se dizia antes, e alguns partidos repetem ainda hoje, sobre essa definição deformada de marxismo/leninismo… Mas meus amigos tinham leituras de Bucarin, leituras de Lenin etc. E me davam alguns desses livros, e eu os achava muito rígidos e ficava mais na visão mais ampla e abrangente que eu recebia na crítica de uns e na visão da mudança da sociedade, na vontade de mudar o mundo, através de José Ingenieros.

 

Saí da Escola Militar assim com a marca na testa de uma figura de esquerda. Por que a marca na testa? Porque eu sou convidado, nesse momento, como poeta na Escola Militar. Inicialmente, nós tínhamos na escola uma revista: a Revista da Escola Militar, que, sob a influência da Missão Militar Francesa, era muito, muito, muito e muito marcada pela tradução em português de regulamentos militares franceses. Havia uma pequenina parte da vida social, da vida literária; muito pequena, muito secundária. E ali eu publiquei um dos meus poemas do meu tempo de mato-grossense, sentimental, no tempo em que eu ficava voltado para asMarílias de Dirceu etc.

 

Mas com os novos estudos, com os novos contatos, com os novos debates, e também com a visão do centro grande – que era o Rio -, eu passei também a fazer uns trabalhos com um sentido mais crítico da sociedade, num certo sentido “social”, vamos dizer assim. Então, se por exemplo, em Mato Grosso, eu enveredava, de vez em quando, pelos alexandrinos, mas sempre num sentido muito piegas e apaixonado, mais ou menos infeliz nas suas preferências… vou recitar para você esse soneto. Chama-se Soneto, apenas. Mas começa assim: “Uma página em branco.

Foi ainda há pouco nela que gravei,

e a treinei com anseio e ternura,

um nome de mulher humanamente pura,

um nome de mulher humanamente bela.

Não o tentes saber:

apagou a moldura como apaga o pintor egoísta uma tela.

Foi crer numa mulher volúpia e singela

todo o hino de amor sob um céu de diamantes.

E agora que já sabes que guardo um segredo

nesse enorme palácio de último orgulho vencido,

ora cheio e amor, ora cheio de medo,

não sorrias assim porque há sempre uma chave,

porque há sempre um romance triste e incompreendido

com um nome de mulher que se escreve nas páginas.”

 

Tarcísio Holanda – Bonito!

APOLÔNIO DA CARVALHO – Um soneto da época, não é? Agora, na Revista da Escola Militareu contava que… Em função da publicação de um dos meus sonetos antigos, eu fui convidado para ser o diretor da Revista da Escola Militar. E eu aceitei sob a condição de mudar completamente o conteúdo da revista. A revista vai ser literária, social, viva, alegre etc. E me cerquei do que havia de melhor entre meus amigos. Meu redator-chefe — e eu digo isso com toda humildade, apesar de que eu era o diretor nessa época em circunstâncias muito especiais – era o Nelson Werneck Sodré. Ali, publicamos muitas coisas. Tínhamos muita liberdade. O Nelson Werneck era, nessa época, um apaixonado por Guy de Maupassant, e fazia contos muito bonitos. Para dar um exemplo: cada exemplar, cada número da nossa revista trazia sempre um conto do Nelson Werneck Sodré. E ali eu passei também a publicar alguns poemas. Que poema eu lembraria? Há uns que são um pouco longos; vou lembrar de um que seja pequeno. Por exemplo, eu procurava ler muito Heráclito, os dialetas gregos, as contradições da sociedade etc. Então, eu queria lembrar para vocês um pequeno poema que se chama Pântano, que diz o seguinte: “Os homens bêbedos de egoísmo e materialidade

Olharam-no com desprezo, dentro da tarde branca e encharcada de sol,

 águas paradas, Lua bonita,

e seguiram olhando a si mesmos.

Mas não quiseram ver, debruçadas na noite,

a alma boa adubando os arbustos das matas,

a mão simples reunindo, sem pejo, a miséria do índio

e o desejo do cego refletindo as estrelas.”

 

Tarcísio Holanda – Bonito. Agora, a revista… O Brasil vivia – como o Ivan falou – uma fase de ebulição, de fermentação. Essas idéias sociais no mundo chegavam aqui para os jovens cadetes, os jovens oficiais. Então, como é que foi a influência que essas idéias exerceram sobre seu espírito. E a participação? O senhor participou de 35?

– APOLÔNIO DA CARVALHO – Vamos lá! Na verdade eu não lia os livros do que se chamava na época, e ainda se chama hoje, em certas instituições, em certos partidos comunistas, de marxismo/leninismo. Quer dizer, eu não estudava obras marxistas. Gostava muito de obras anarquistas. Eu saí da Escola Militar como um elemento, digamos marcadamente confusionista, de esquerda, mas sem direção definida, sem direção clara. É como eu dizia a vocês, um “E” de esquerda na testa.

 

Vou para a tropa. E na tropa, naturalmente, eu tenho contato com um contingente humano, contato com meus amigos oficiais, um contato normal, mas tenho sobretudo contato com a tropa, com os soldados. Os camponeses, que vão ser soldados. Então, eu me integro muito mais com o que se chamava de lado subalterno da tropa. E não só eu me ligo muito a eles, como também procuro ajudá-los nos cursos, a fazerem seus exames para cabo, para sargento etc. e tal. Estabeleço bases para que eles… Se os oficiais tinham um cassino, por que os soldados não teriam um cassino? Então, se em certos momentos eu comandava minha unidade, eu criava um cassino para os soldados e tal. Eu tinha desses impulsos. Mas também me beneficiava muito. E aí eu já lia alguns livros de orientação marxista, soviética e tal, porque os anos 33 e 34 são anos marcados por uma imensa liberdade editorial. Coisas que nunca se tinham editado no Brasil, editam-se nessa época. Então, você tem traduções de tudo o que é interessante no mundo, no domínio das esquerdas. Livros franceses, livros ingleses, livros americanos, livros soviéticos. Tomo contato com a literatura soviética. O meu soldo vai todo para livros. Leio muito etc. e tal.

 

Muito bem. No fundo, no fundo, eu me considero, assim, já um pouco socialista. Não tenho em Bagé contato com os comunistas. Até aí eu não tenho contato com os comunistas. Bagé não tinha Partido Comunista. Mas a um momento dado, rebenta a rebelião de 35. E é uma situação nova dentro dos quartéis. Como eu era um elemento que lia muita coisa de esquerda e falava muito à maneira das esquerdas, eu sou apontado como um… – num momento de terror oficial de discriminação contra a liberdade de pensamento etc. no Governo de Getúlio, sobretudo com Filinto Müller, a partir de 35 – eu  sou apontado como comunista e sou preso no meu quartel durante uma semana. E era muito interessante o contato com os soldados, porque eles vinham para mim, o chefe da guarda e os soldados da guarda vinham para mim e me diziam assim: “Tenente, se o senhor quer fugir, nós fugimos com o senhor”.

 

– RENÉE DE CARVALHO – Mas você participou da Aliança Nacional Libertadora?

– APOLÔNIO DA CARVALHO –  Eu vou chegar lá. “Nós fugimos com o senhor”. Mas eu não tinha nenhum apoio extralegal para levar ninguém, eu não tinha nenhuma ideia em fazer uma passagem pela clandestinidade. Eu estava muito verde ainda nessas coisas.

 

Sou levado depois para um outro quartel de cavalaria, não de artilharia, mas de cavalaria, para esperar. E em abril, 9 de abril de 36, eu sou expulso do Exército, com todo um conjunto de 40 oficiais que eram suspeitos para o Governo de Getúlio Vargas. Sou expulso do Exército. Então, sou levado, a partir de maio, junho, para o Rio de Janeiro como civil, para ser entregue como convidado especial na Casa de Detenção, depois a Casa de Correção.

 

Para mim, foi verdadeiramente um paraíso, porque as prisões políticas são uma grande universidade, um grande centro de aprendizado. Você está em contato ali com militantes ativos, com dirigentes nacionais. No caso, eu estava em contato com dirigentes internacionais. Rodolfo Ghioldi era um dos dirigentes da Internacional Comunista que estava preso. Era também Secretário-Geral do Partido Comunista Argentino. Então, nós, nas prisões, fazíamos uma verdadeira têmpera de diplomação política, um programa de debates, de polêmicas e de estudos muito interessantes.

 

Tomei contato com a doutrina comunista na prisão. Também na prisão fui encontrar alguns de meus colegas da Escola Militar do Realengo que já eram comunistas no nosso tempo da escola militar — mas o Partido Comunista era clandestino — e que já tinham passado – em 36, quando eu já estava no Rio, na prisão – já tinham passado antes, em 34, 35, pela militância comunista. Alguns deles tinham postos médios de direção etc. Figuras muito interessantes.

 

Então, há um aprendizado muito grande. Eu peço para esses companheiros e outros companheiros que tinham certa cultura teórica para fazermos cursos de estudos. Estudamos um pouco O Capital, estudamos um pouco de Lenin e tudo mais nesse período.

 

Então, eu decido me tornar comunista e entrar para o partido. Aí é que vou conhecer a existência do partido; na prisão, já em 36. Mas, na prisão, não se fazia recrutamento nessa época. Era uma decisão geral em função de certas experiências que provavelmente não teriam sido boas. E no primeiro dia que saio da prisão, aí eu entro para o partido. Estou ligado a certas pessoas que saem também da prisão – porque nós estávamos sujeitos a processo, e eu não tinha processo. Eu nunca fui ouvido. Fui jogado fora do Exército sem ser ouvido, sem ser processado. Era o terror da época –, estou em contato com Aporelli, Aparício Torelli. Estou em contato com alguns dirigentes da Aliança Nacional Libertadora. E estou muito interessado na Aliança Nacional Libertadora porque, em Bagé, passo minha entrada na vida política através da Aliança Nacional Libertadora — Renée estava me lembrando.

 

Em 35, a Aliança Nacional Libertadora se cria, em Bagé, e um oficial que eu conhecera um pouco antes de uma visita que eu fizera a Pelotas, num momento de férias, o Capitão Moésio Rolim, me fala da Aliança Nacional Libertadora, de seu programa. Eu acho um pouco limitado esse programa, porque eu já me considerava um socialista, um comunista etc. Mas achei muito simpático. Um programa profundamente nacionalista, democrático, muito apoiado nas camadas populares, sobretudo no sentimento de autodeterminação diante da intolerância do americano e do inglês. Já nessa época os japoneses, os italianos e os alemães traziam seus capitais para o Brasil.

 

Então, eu participo da Aliança Nacional Libertadora, crio a Aliança Nacional Libertadora, e isso influi muito para que eu seja preso, ao lado dos antecedentes que eu trazia. Mas, quando eu saio da prisão, então eu entro para o Partido Comunista. Estamos, nesse momento, em junho de 37. Nesse momento temos, desde um ano atrás, desde de junho de 36, a reação das forças de Direita ao grande avanço da democracia através das frentes populares, a vitória da Frente Popular na Espanha, em 26 de fevereiro de 36; a vitória da Frente Popular na França, em maio de 36…

 

– Tarcísio Holanda – Leon Blum…

– APOLÔNIO DA CARVALHO – É…; a vitória do movimento estilo Frente Popular no Chile. Esses avanços da democracia marcaram época, essa época. Então, eu entro para o Partido Comunista no momento em que, na Espanha, há a primeira grande reação contra esses avanços, que é o golpe dos generais, o General Franco à frente, contra a República espanhola. Nesse momento os partidos comunistas no mundo estão se mobilizando e mobilizando os trabalhadores, as forças populares, as forças progressistas, para solidariedade à República espanhola, que  tinha nascido de eleições livres, do voto direto do povo, de um programa muito bonito e muito nacional. Mas tinha sido agredida pelos generais. E, ao mesmo tempo, esses generais estavam muito apoiados no fascismo de Mussolini e no nazismo de Hitler, na Alemanha. Então, há um movimento mundial de solidariedade à República espanhola. Há representantes de 43 países do mundo, entre os que éramos os voluntários internacionais, a favor da República espanhola. E vamos participar do Exército espanhol.

 

Então eu, nesse momento, como o Partido Comunista toma essa posição também, como havia muitos oficiais e sargentos brasileiros, que estávamos expulsos das Forças Armadas e podíamos levar uma contribuição muito sensível, não rica, mas sensível para a formação do novo Exército – com o golpe dos generais, um golpe que tinha sido derrotado pela união das forças de esquerda, sobretudo dos sindicatos e dos partidos operários na Espanhamas que tinha levado, depois de derrotado, para fora da República, praticamente 80%, 85% do Exército, praticamente 85% da força pública… Então, é preciso criar tudo isso de novo para a República. E essa contribuição internacional é interessante –, e nós, no Brasil, podíamos levar muita gente, sobretudo no plano militar. Somos 18 a 19 brasileiros que vamos compor a equipe dos voluntários brasileiros em apoio à República espanhola. Desses 18, nós temos 4 sargentos. Lembrarei alguns nomes que talvez vocês conheçam porque foram dirigentes políticos, como…

– RENÉE DE CARVALHO – Roberto Morena.

– APOLÔNIO DA CARVALHO – Roberto?

RENÉE DE CARVALHO – Morena.

– APOLÔNIO DA CARVALHO – Roberto Morena, membro do Comitê Central aqui. Como o jovem que foi o caixa no Vietnan…

– RENÉE DE CARVALHO – O David Capistrano.

– APOLÔNIO DA CARVALHO – O David Capistrano. Como o Dinarco Reis.

– RENÉE DE CARVALHO – O Eneas.

– APOLÔNIO DA CARVALHO – O Eneas. O Eneas, na verdade, não era muito conhecido, porque morreu na Espanha. Morreu sargento. Então, nós temos 10 oficiais, sobretudo da Aeronáutica, mas também de artilharia, como eu; de cavalaria, como Nemo Canabarro Lucas, General conhecido aqui, nacionalista. E também sargentos de várias Armas. Mas também temos 5 civis, que são imigrantes europeus que estão no Brasil e que também decidem ir conosco. Então, entre esses civis imigrantes, há figuras comoErnest Yosk, socialista alemão que tinha participado de muitas lutas na Alemanha. Tínhamos algumas figuras jovens.

 

Com isso, nós vamos para a Espanha, vamos participar da guerra civil espanhola, que, no momento, deixa de ser uma guerra civil. Na realidade, a Itália de Mussolini… A minha equipe, no começo, quando chegamos à Espanha… quando a minha equipe chega à Espanha, digamos assim, em julho de 37, depois da prisão, nesse momento já havia 50 mil legionários do Exército italiano dentro das forças. E havia não a chamada Operação Condor, mas o Comando Condor. Era um contingente muito forte de pessoal e, ao mesmo tempo, de ajuda técnica muito avançada por parte da Alemanha nazista, com aviões, com artilharia, com elementos técnicos etc. para ajudar as tropas da Espanha. Era já uma guerra de libertação nacional da República face a uma ingerência estrangeira muito forte, internacional.

 

Daí eu passo, durante um ano e meio, a ter funções de oficial de artilharia na Espanha. Exerço as funções de tenente, subtenente. Fui todo o tempo na Espanha tenente. Depois é que nos promoveram, à saída da Espanha. Tenho funções de tenente, mas tenho funções de capitão, tenho funções de major, tenho funções de coronel. Hoje eu tenho formação militar numa academia, numa escola militar. Então, isso era muito importante na época, porque a República não dispunha de tanta gente assim.

 

Mas, a um momento dado, a República resolve assumir um gesto profundamente quixotesco. Para que, diante do mundo, ficasse claro que a República lutava somente na Espanha, com os espanhóis, pelo povo espanhol, ela pedia que os voluntários internacionais voltassem para seus países. Então, nós somos retirados das frentes, num momento de profundo descenso das possibilidades da República no plano militar. No momento em que já se havia realizado, um ano antes, em maio… — isso se passa em setembro, outubro de 38 —, mas um ano antes, em maio de 37, tinha havido a divisão das forças de esquerda sob pressão da Internacional Comunista, para alijar os elementos dissidentes do comunismo, para alijar os anarquistas, para alijar os socialistas de esquerda que não estavam sob a mesma bíblia dos comunistas de Moscou. Então, sob essa influência perversa da Internacional Comunista. Um dia, a gente vai conversar, seguramente, sobre esses elementos da Internacional Comunista, sobre os seus lados bons mas, sobretudo, sobre seus lados maus.

 

Nós temos a divisão das forças de esquerda, o alijamento do Governo da Frente Popular, dos anarquistas, dos comunistas dissidentes… chamava-se Partido Operário de Unificação Marxista, o POUM. Socialistas de esquerda, como Largo Caballero, o dirigente mais conhecido da Espanha nesse momento, da esquerda, são alijados do governo. Esse mal-estar reflete-se na população e reflete-se também nas Forças Armadas. Então, é um momento de descenso.

Nesse momento, o Governo da República tem esse gesto de aparência nacionalista, mas, no fundo, no fundo, profundamente nocivo para a República e para suas Forças Armadas. Então, nós somos levados para a fronteira francesa. Antes, o avanço sobre a Catalunha de parte dos exércitos franquistas joga todo o exército da Catalunha nas fronteiras da França. Nós estamos também nessa faixa. Nós somos 300 mil soldados espanhóis derrotados, jogados na fronteira da França. Nós somos também 300 mil civis espanhóis catalãos, que não querem ficar sob o regime de Franco.

 

– Ana Maria Lopes de Almeida – Deixa eu fazer uma pergunta: o senhor já está falando da saída…

– APOLÔNIO DA CARVALHO – Da Espanha.

– Ana Maria Lopes de Almeida -…dos populares da Espanha. Mas como é que o senhor entrou na Espanha? Como foi a facilidade de passaporte? Houve essa facilidade? Como é que foi? O senhor chegou a Paris, parece que o senhor esteve com a irmã e a esposa do Prestes, não foi?

– APOLÔNIO DA CARVALHO – Isso mesmo. A mãe e a irmã.

Ana Maria Lopes de Almeida – Com a mãe…

– APOLÔNIO DA CARVALHO – Com a mãe e a Lygia, a irmã Lygia.

– Ana Maria Lopes de Almeida – Certo. Depois, a sua ida para a Espanha como foi? Foi fácil entrar na Espanha?

– APOLÔNIO DA CARVALHO – Foi de maneira legal.

– Ivan Santos – Só um minuto. Eu queria também que o senhor, além dessa análise que o senhor fez, queria que o senhor também desse o seu depoimento pessoal. O senhor era um jovem oficial brasileiro.

– APOLÔNIO DA CARVALHO – Eu era um…?

– Ivan Santos – Um jovem oficial brasileiro.

– APOLÔNIO DA CARVALHO – Um jovem oficial brasileiro.

– Ivan Santos – Saído das Forças Armadas, mas que nunca tinha entrado numa guerra.

– APOLÔNIO DA CARVALHO – Claro.

Ivan Santos –  Então, de repente, o senhor estava numa frente de batalha…

– APOLÔNIO DA CARVALHO – Claro.

Ivan Santos – Atirando para matar e se defendendo, correndo para não morrer. Eu queria que o senhor também desse um depoimento pessoal de como o senhor enxergou a sua relação com a população espanhola, como é que ela recebia essa colaboração desses voluntários internacionais, como é que era o comando. Porque se dizia que havia uma divisão muito grande nas tropas da República. Como é que isso tudo bateu no seu espírito? Como é que o senhor enxergou isso também do ponto de vista pessoal?

– APOLÔNIO DA CARVALHO – Muito bem.

– Ivan Santos – Está certo?

APOLÔNIO DA CARVALHO – Está certo. Eu pediria o seguinte. Vou começar por ela. Depois passo para você. O que eu esquecer ela me lembra…

– Ana Maria Lopes de Almeida – Está certo.

APOLÔNIO DA CARVALHO – …e o que eu esquecer você me lembra.

– Ivan Santos – Está certo.

– Ana Maria Lopes de Almeida – E tem mais uma coisinha também. O senhor fala muito das mulheres, da participação delas. Eu quero saber a participação das mulheres nesse momento civil. Então vamos lá: Como é que foi a sua entrada na Espanha?

– APOLÔNIO DA CARVALHO – A minha ida para a Espanha foi relativamente fácil, porque eu vou já sob a iniciativa do Partido Comunista. Em saindo da prisão, eu passo a ser militante comunista. Aporelli representando os dirigentes comunistas do Rio etc. e tal. Muito bem. O Partido Comunista acha que para ir à Espanha eu deveria fazer o início da viagem não pelo Sul, como em geral os outros companheiros estavam fazendo nesse momento, mas indo até à Bahia. E a Bahia, nesse momento, estava sob a influência extremamente positiva de um Governador que era um Coronel, antigo combatente tenentista, chamado Juracy Magalhães, e que exercia um Governo marcado por medidas e atitudes profundamente democráticas e profundamente próximas da esquerda. Em Salvador, havia o Jornal da Tarde, que era um jornal comunista, legalmente.

 

Eu vou para a Bahia, sou apresentado ao partido local, aos companheiros militantes. Nós vamos fazer visitas a simpatizantes do partido para recolher dinheiro para minha vigem de terceira classe para a Europa. E quando nós estamos já numa base bastante adiantada para chegarmos à metade do valor da passagem, eu sou levado à presença de uma figura muito interessante do Governo Juracy Magalhães: um major da família, tio de Rui Facon. No livro tem o prenome dele, agora não me lembro bem se era Darci Facon, era um major. Então, ele me recebe no Palácio do Governo. Eu explico a ele que preciso de um passaporte. Levo para ele as rotas etc., etc. Ele me diz: “Está muito bem. Você venha amanhã, depois das 5 horas da tarde. Você terá seu passaporte”. A minha ida legal para a Espanha estava assegurada. Mas havia mais: quando ele me entrega o passaporte, às 5 horas da tarde do dia seguinte, ele me dá um envelope, e nesse envelope há os 300 mil réis que faltavam para a passagem de terceira classe no navio do Lloyd, que, aliás, se chamava Bagé e que tinha sido parte do pagamento de reparações da Alemanha – em 1919 o Brasil tinha participado da guerra e tal, não é?

 

Muito bem. Então, eu viajo e chego à França, legalmente. Há companheiros do partido que me esperam. Aí já é a engrenagem do Partido Comunista, nacional e internacional. E me esperam. Vou visitar a D. Maria Leocádia, a mãe do Prestes, e vou visitar a Lygia, que está com ela. Era o momento pouco depois da passagem de Prestes pelo Tribunal de Segurança Nacional, quando ele tinha sido agredido e tudo o mais. D. Leocádia estava terrivelmente impressionada então. Eu não tinha notícias especiais, porque eu vinha da prisão e vinha de uma passagem rápida pela Bahia. E aí eu vou me ligar à grande associação que prepara os voluntários para a passagem na Espanha. Então, eu sou enviado a Perpignan, o partido aí já era um partido francês, mas era um momento de ajuda à Espanha. Vou para Perpignan e tenho indicações para me apresentar ao Consulado espanhol em Perpignan. E vou para o Consulado espanhol e eles me pedem o meu passaporte, que vinha da Bahia, e me dão um outro passaporte espanhol. Não mais brasileiro, mas espanhol; com todos os meus dados, só que era espanhol. E eu passo a ser… Gostei muito, porque eu gostava muito de García Lorca, gostava muito de poesia. E eu sou um andaluz, estou perto de Gianaldo [palavra mais próxima do que foi possível ouvir], em Almería. Um cidadão andaluz de Almería. Estou cheio de razões, não é? Mas eu digo ao cônsul: “Eu estou num hotel onde me apresentei como brasileiro com todos esses dados. Se me pedem o meu passaporte para sair, qualquer coisa assim, eu estou com todos os meus dados, mas com passaporte espanhol”. Ele disse: “Não, a Espanha também é uma frente popular, a França é frente popular. Estamos em casa, não há problema nenhum”.

 

Aí, então, eu viajo para a Espanha. Tenho pequenos percalços no caminho. Por exemplo, em Portbou,a última estação da estrada de ferro da França para a Espanha, há um controle da polícia — polícia ferroviária, polícia aduaneira etc. e tal. E como eu tenho uma cara muito usada, nesse tempo eu tinha uma cara muito usada, assim, de jovem espanhol, o meu bigodinho, aquelas coisas todas, o chefe dos serviços de precauções me acha muito parecido com um bandido francês extremamente perigoso, do qual eles estavam no encalço. Então, somos muitos, os que estamos esperando, junto da estação da estrada ferro, autorização para ir tomar o trem. Todo mundo vai, mas não eu. Eu sou chamado para conversar especialmente com ele. E ele me faz uma série de perguntas. Eu estou inteiramente à vontade, (ininteligível) espanhol (ininteligível), depois, andaluz. Eu respondo sorrindo, brinco e tudo o mais. Até certo ponto, porque o funcionário era especialista nessas coisas. Ele disse: “Muito bem, o senhor está se defendendo muito”. Digo: “Eu não estou me defendendo, não. Eu estou contando a verdade”. “Mas eu queria lhe mostrar uma coisa. O que é que o senhor me diz disso?” Ele abre um catálogo de algozes da democracia e da ordem, de inimigos da ordem. E tem lá 2 páginas, uma de um lado e outra de outro, com 2 fotos de frente e de perfil. E aí eu não rio mais porque sou eu mesmo. (Risos.) Exatamente de frente, de perfil, talvez mesmo de costas, não é? (Risos.) Daí eu fico preocupado. Agora, jogou em meu favor um conjunto de fatores. Primeiro, um certo sotaque no meu francês. E, segundo, o fato de que eu parecia para ele um jovem ingênuo, assim, muito longe de ser um bandido contumaz. Em um momento dado ele me aperta a mão, manda tomar o trem e me deseja buena suerte, em espanhol.

 

E com isso eu vou para a Espanha, feliz como um jovem andaluz que volta para a terra natal. Mas, antes, paro em Valência, que era a Capital da República nesse momento. Madri estava cercada. Então, o governo não tinha facilidade de ligações, deslocamento e tudo o mais. Então, tinha-se transferido para Valência. Então, vou para Valência. E fico encantado em encontrar, em Valência, já um exército organizado. Aquela República que não tinha 10% ou 15% das suas Forças Armadas, tinha um exército, muito armado pela União Soviética. Dois países armam esse exército. Um, em 99,9%: a União Soviética; outro, em 0,1%: o México, que manda as sua armas também para lá e tal, manda também um contingente de oficiais muito bom, o Exército Mexicano. Um deles foi meu chefe na artilharia muito tempo, um dos meus grandes amigos na época. Então, encontro esse exército e encontro uma Valência que dispõe também de uma artilharia terrestre e antiaérea muito forte, mas incapaz de fazer frente à massa de bombardeios que a aviação hispânica de Franco, mas também a italiana e a…

 

– Tarcísio Holanda – A Luftwaffe.

– APOLÔNIO DA CARVALHO – A alemã realmente fornecem. Há um massacre da população civil para jogá-la contra a República. Bombardeios terríveis. Há também uma quinta coluna praticamente viva, atuante. Eu saio com David Capistrano, depois do almoço, (ininteligível) dessa época, faz parte da minha equipe. Depois do jantar nós saímos para passear um pouco em Valência e tudo o mais. E a um momento dado nós sentimos que havia um silvar de balas em torno de nós. Nós achamos que era uma coisa provavelmente casual, excepcional, e continuamos a andar pelas avenidas. E há 2 ou 3 reprises, nós escutamos a mesma coisa. Voltamos para o nosso hotel — e aqui vou responder a tua segunda pergunta —, todo ele dirigido por moças, porque os homens estão mobilizados para a guerra, estão nas frentes e há uma imensa mobilização das moças. Nosso hotel é todo dirigido por moças. E elas nos dizem: “Isso é sabotagem mesmo. A 5ª Coluna tem muita liberdade. Há dirigentes fascistas que estão presos e que se comunicam por telefone com suas tropas e com os seus militantes fora da prisão.”

 

Aí eu chego a dar razão a algo que nesse momento não me impressionava ainda negativamente, mas que eu não adotava, no fundo do coração, a ideia da ditadura do proletariado. Eu dizia assim: “Mas é preciso uma coisa mais forte do que a frente (ininteligível), a frente popular”. Tinha essas vacilações, esses vazios, essas limitações no quadro da segurança.

 

Então, a partir daí, eu já me apresentei no Ministério da Guerra, já sou um Tenente de Artillharia no Exército espanhol e devo ir para a cidade de Almansa, na província de Albacete, onde se fazia a organização e a reorganização das unidades militares — batalhões, regimentos, divisões, brigadas, mas também baterias, artilharias, grupos de artilharias etc e tal. Então, eu vou para lá participar de uma bateria. O grupo estava… vou ser um oficial auxiliar em uma bateria que tinha como chefe um ex-sargento, muito capaz. A República fazia cursos de formação de oficiais de 6 meses. Eu tinha feito 3 anos na Escola Militar do Realengo. Ele sabia pelo menos o que eu sabia em 6 meses.

– Ana Maria Lopes de Almeida – Desculpe interromper, mas tem uma pergunta: como é que se estruturava essa artilharia republicana?

– APOLÔNIO DA CARVALHO – Normalmente. Falo bastante bem o espanhol porque, como um filho do Pantanal, no Mato Grosso daquela época, a maior imigração era a paraguaia, porque a miséria no Paraguai era mais forte, mais dura do que a do Brasil. Então, há uma imigração muito forte. Então, na minha adolescência o contato com os paraguaios e com as paraguaias era muito constante e permanente. E as moças paraguaias não davam bola para brasileiro que não falasse nem espanhol nem guarani. Eu tive que aprender o guarani e o espanhol porque eu era adolescente, como os outros. Então, como falo espanhol, se decide que eu vou ficar no Exército Popular espanhol e não nas brigadas internacionais, porque elas têm naturalmente seus contingentes com sua língua, com sua formação etc., todas dependendo, naturalmente, do comando central espanhol.

 

Então, a minha bateria de artilharia tem o modelo comum das baterias. São 4 canhões, 2 seções de 2 canhões e tal. Um total de 200 a 250 homens. E uma parte importante para os serviços, porque a artilharia tem que trabalhar muito com os cálculos de trigonometria, cálculos de distância, cálculos de pontaria, de(ininteligível) e tal. Então, é considerado, depois da engenharia, na Escola Militar, a arma que exige mais o plano teórico.

 

Então, o meu comandante é um antigo sargento, muito capaz, que vou guardar na memória como “Rampalomares”, todavia, um grande amigo, uma figura muito bonita. E deve ter sido sumariamente liquidado em abril de 39, quando o Exército espanhol foi entregue a Franco pelo Coronel Casado, num golpe interno e entrega da República, pode-se dizer, em 1º de abril de 39. Ele, seguramente teria sido… porque era uma figura apolítica, mas um “ganho” [palavra mais próxima do que foi possível ouvir] para o partido comunista e integra o partido comunista, os oficiais, alguns sargentos mais capazes e tudo mais.

 

Aí eu vou fazer o meu estágio militar na Espanha. Nós tínhamos uma artilharia relativamente pequena, mas muito eficiente. A União Soviética nos armava bem. A artilharia dos generais, com o apoio italiano e o apoio alemão, era muito mais numerosa do que a nossa, era muito mais forte. Mas nós tínhamos muita mobilidade. Eu percorri praticamente todas as frentes da Espanha comandando a artilharia: comandando uma bateria, depois comandando um grupo, depois comandando um agrupamento, que são os níveis mais altos da artilharia e tudo o mais. Já em funções de coronel etc. E passei, naturalmente, por todas as frentes. E senti, de um lado, a ligação íntima entre as forças do Exército e o povo. E, ao mesmo tempo, a possibilidade de congraçar, numa mesma unidade, toda as correntes políticas, porque havia um sentimento nacional que marcou a coluna. A unidade das esquerdas tinha sido rota 1 ano antes, contei a vocês, com os acontecimentos de Barcelona, com a crise de Barcelona e a divisão do governo e o seu reflexo nas Forças Armadas.

 

Mas nós trabalhamos muito bem, anarquistas, comunistas, socialistas etc. nas mesmas unidades. Tínhamos um contato muito tranqüilo com o povo. Eu vivi praticamente nas frentes. Mas quando ia à retaguarda, naturalmente, tinha contato com o povo. Tinha um ou outro romancezinho isolado, assim e tal, de uma semana. Mas a alegria e a confiança do povo no seu Exército era uma coisa muito grande, muito séria. Foi um período de conhecimento das várias faixas da população espanhola, porque eu estive em Andaluzia, estive em Córdoba, estive em Valência, estive em Teruel. Estive em vários lugares. E estaria depois em Catalunha, quando seríamos julgados na fronteira da França.

 

– Tarcísio Holanda – Agora, o senhor disse que os estrangeiros foram excluídos até num gesto mesquinho…

– APOLÔNIO DA CARVALHO – Quixotesco.

Tarcísio Holanda – Mesquinho do governo.

– APOLÔNIO DA CARVALHO – Não mesquinho, mas quixotesco, porque era romântico, para mostrar ao mundo que ingerência estrangeira só havia do lado de Franco, e que a República que tinha os voluntários internacionais… Agradecia aos voluntários, mas pedia que voltassem.

– Tarcísio Holanda – E a partir dessa exclusão, os senhores foram para a França?

APOLÔNIO DA CARVALHO – Bom, os voluntários internacionais vinham de 43 países. Muitos deles poderiam voltar para os seus países. Nós, os brasileiros, fomos levados à fronteira da França e entregues à Polícia Militar Francesa, a Garde Mobile. Nós não temos um país para ir. É ditadura! É 39. É o Estado Novo, de 2 anos antes no Brasil, continuando o terror policial que eu tinha conhecido em 35, 36 e 37, antes de partir. Então, nós somos levados… O Governo espanhol tinha conseguido do Governo francês a segurança e a promessa de que nós seríamos recebidos na França. Os que tivessem que passar na França um certo tempo e não pudessem voltar aos seus países, seriam recebidos como refugiados políticos. No entanto, a polícia nos recebeu, a polícia militar nos recebeu na fronteira. Uns 300 mil homens da República baixam as suas armas, entregam as suas armas para o Governo francês. E nos recebeu de uma maneira muito particular. Um oficial da Garde Mobile colocou-se diante de nós, a uma certa distância, e abriu os braços. Alguns de nós, os mais ingênuos, pensamos: “Isto é que é, verdadeiramente, um anfitrião. Esse é um país que, verdadeiramente, nos dá as boas-vindas”. Mas, na realidade, era: “Uma parte de vocês para este campo de concentração e outra parte de vocês para este outro campo de concentração”. E nós vamos para os campos de concentração, em fevereiro, 9 de fevereiro de 39, em pleno inverno. O campo de concentração, ele todo na área dos Pirineus, mas junto do mar, era uma área cercada de alambrados; um campo de concentração, guardado pela polícia militar! E nós fomos mandados, primeiro, para perto de uma cidade chamada Argèles-sur-Mer. Havia 2 ou 3 pequeninos edifícios; no mais, era areia da praia. Nós éramos convidados a receber um cobertor, a deitar sobre a areia e a tomar o cuidado de fazer buracos grandes, porque deitados no buraco e com o cobertor nós ficávamos livres quando a brisa marinha trouxesse a areia que cobriria o lugar onde nós estávamos. Assim, eu passei um período bastante longo, uns 2 meses, em Argèles-sur-Mer. Mas nós nos organizamos. Ali havia também militares que tinham as suas esposas, os seus filhos etc. Uma situação muito dolorosa. Conseguimos criar uma organização própria. Nós mesmos é que fazíamos o nosso almoço, recebíamos os mantimentos e fazíamos as nossas refeições etc. e tal. E, ao mesmo tempo, procurávamos nos organizar e salvar a vida, sobretudo das famílias, mas também do nosso conjunto, não é?

 

Então, era um tempo de procurar salvar o mínimo de consciência de combatentes, porque era a derrota da república. Era um momento de descenso. E era, ao mesmo tempo, uma pressão muito grande pela desmoralização das tropas. Nós também tínhamos um trabalho forte de formação política, de formação cultural etc. e tal. Ficamos ali uns 2 meses, até que, por pressão popular na França, junto dos Pirineus, mas muito mais longe dos Baixos Pirineus, porque Argèles-Sur-Mer fica nos Pirineus Orientais, mas aí já nos Baixos Pirineus, mais perto do Atlântico.

 

O Governo francês tinha preparado campos de acolhida. E, aí, nós já tínhamos barracas etc. e tal, e fomos transferidos para lá. Ali, nós vamos organizar a nossa vida. Lá, em condições muito melhores. Tínhamos condições para a cultura. O esporte passa a ser uma tônica generalizada. O voleibol passa a ser o grande esporte. Nós somos 8 mil internacionais que estamos ainda lá e não podemos voltar aos nossos países, seja no Leste da Europa, ocupado pelos alemães e italianos, nessa época, seja em outros países da América Latina ou da Ásia. Então, nós temos aí uma vida esportiva muito forte; nós temos uma vida cultural muito forte. É o momento em que o movimento comunista se espraia e se generaliza a leitura de um documento que contava, à maneira de Stalin, à maneira do stalinismo, a história da União Soviética, a revolução etc. e tal, a história do PC bolchevique — era a Bíblia da época ali no momento.

 

Nós temos também nossas festas, nossas cerimônias de culturas. Enfim, organizamos, em dado momento – porque nós temos muitos operários entre esses milhares de pessoas – uma exposição de artesanato. E, nessa exposição, nós temos coisas muito bonitas, temos coisas muito bonitas feitas pelas mulheres, coisas muito bonitas feitas pelos operários, muitas coisas feitas em lata, feitas com palitos de fósforos etc., mas muitíssimo bem-feitas. E recebemos inclusive a visita do Ministro da Guerra, o general que havia sido o Chefe da Missão Militar Francesa no Brasil.

 

– Tarcísio Holanda – General Gamelin.

– APOLÔNIO DA CARVALHO – Gamelin. General Gamelin, que vai lá e se extasia diante da nossa exposição, que encanta; é muito bonita a exposição. Mas, ao mesmo tempo, em setembro, vem a guerra — não é? —, a guerra européia. Então, nós temos contato com o partido comunista que nos traz livros etc. e tal, que nos visitam e tudo o mais. Mas tudo isso desaparece quando o partido comunista é jogado na ilegalidade. Então, a opinião do partido é para que nós procuremos fugir do campo, trabalhar na resistência, que está começando a esboçar-se na França, ou abrir caminho através das embaixadas para voltar ao nosso País.

 

E, a partir de junho, a França é ocupada pelos alemães. Os campos de concentração onde nós estamos são dissolvidos. A massa dos companheiros havia sido enviada como soldados auxiliares para as frentes. Eu havia fugido antes, com alguns companheiros. E passo a viver em Marselha. Vou conhecer a Renée um pouco depois, em 42.

 

Chego a Marselha em julho de 40. Há um casal Figueiredo — não sei se o senhor ouviu falar de alguém ligado a uma senhora chamada Condessa Figueiredo… uma área de nobreza. Esse moço, o Figueiredo, casado com uma moça polonesa, portanto, européia e tudo o mais, viviam, naquele momento em Marselha, não é? Eles eram comunistas e entraram em contato comigo ainda no campo de concentração. E, quando eu fujo — eu já conhecia o endereço deles —, vou procurá-los. E eles me dão uma saída para a subsistência.

 

Estava, nesse momento, a França dividida em 2 metades: a Zona Norte ocupada pelos alemães, a metade da França até o Rio Loire, e a Zona Sul, um pedaço do litoral sul, sob a direção de um governo aparentemente francês, mas subordinado inteiramente à Alemanha, aos nazistas, o Governo do General Pétain, utilizando uma das glórias da 1ª Guerra Mundial na França. Um governo de colaboração direta. A polícia francesa a serviço da GESTAPO, não é?

 

Todas as pessoas presas nesse momento pela repressão foram presas sobretudo por indicação ou por ação direta da polícia francesa. A irmã da RENÉE, o pai da RENÉE, a tia da Renée são presos pela polícia francesa. Estão em Marselha, são conhecidos pela polícia francesa porque são comunistas há um certo tempo.

Muito bem. Então, essa área é chamada Zona Livre, aparentemente livre, a área de Vichy, a capital da Zona Sul é Vichy, capital da chamada França Pétain. E, logo, em 42, o Brasil entra em guerra com a Alemanha.

 

Muito bem. Como eu dizia, o casal Figueiredo me tinha dado indicações de como sobreviver. Havia muitos, muitos contingentes judeus que fugiam da zona norte para a zona sul. Mas falava-se na possibilidade de a Zona Sul ser também ocupada pelos alemães. Então, esses judeus, que tinham certas posses, pensavam em sair da Zona Sul e ir para Portugal ou para o Brasil. Então, eles tinham vontade de aprender português. E, por indicação do casal Figueiredo, passa a sair no jornal Petit Marsaillèe a publicação: “Brasileiro de passagem em Marselha gostaria de dar aulas de português para as pessoas que nisso se interessem”, etc. E dei o telefone do casal, não é? Era no Hotel Moderne, em Marselha. Vocês sabem que, 3 dias depois, eu tinha uma dúzia de alunos?

 

– Tarcísio Holanda – Meu Deus!

– APOLÔNIO DA CARVALHO – É! Isso me permitia pagar a minha pequena pensão, me permitia fazer um almoço de 5 francos no velho porto, na zona pobre que desce da cidade, onde nós comíamos um pouco de macarrão e tudo o mais, mas sempre com um copinho de vinho. E, à noite, eu era o convidado de sempre, especial dos Figueiredo. O casal preparava uma comidinha melhor para que eu tivesse forças para trabalhar no dia seguinte, e eles também, não é? De maneira que, com isso pude sobreviver nessa época.

 

Nesse momento, há uma surpresa. Alguns brasileiros vindos da Espanha, que tinham estado nos campos de concentração, tinham saído dos campos de concentração e ficado em Paris e  tinham ligações com um contingente muito simpático, muito solidário, o Consulado Geral do Brasil em Paris — interessante não é? Não existe em toda parte, mas é muito interessante. Havia também um Vice-Cônsul em Marselha, isso é muito interessante.

 

Há um contingente brasileiro que está em Paris, mas quando o Brasil rompe com a Alemanha, ou mesmo antes, eles se decidem a voltar para o Brasil. Mas voltar ao Brasil seria fazer uma escala nas prisões da Ilha Grande. Então, alguns companheiros, como o Costa Leite, o Capistrano, o Dinarco Reis, entre outros, vêm de Paris para Marselha, porque em Marselha havia esse consulado que podia facilitar mais a volta deles para o Brasil. Nesse momento, eu, que tinha começado a trabalhar como professor de francês, sou convidado pelo Vice-Cônsul brasileiro em Marselha – porque havia um acúmulo de solicitações no consulado devido a ameaça de ocupação alemã e, portanto, tinha o problema de muita gente queria viajar para o Brasil etc. – a trabalhar no consulado, a dar uma ajuda no consulado. E vou ajudar. Depois, fui incumbido de trabalhar no consulado. Eu passo a ser, então, um funcionário ad hoc; um funcionário geral, sério e tal — o que é muito interessante, porque eu já estou ligado à resistência francesa. Ainda não participo diretamente das operações armadas, porque…

 

– Tarcísio Holanda – Como é que foi essa ligação do senhor com a resistência francesa? Como é que eles chegaram a cooptá-lo?

– APOLÔNIO DA CARVALHO – Muito fácil, porque é o partido francês. O comunista, quando está no Brasil…

– Tarcísio Holanda – O PCF.

– APOLÔNIO DA CARVALHO – … está no PC brasileiro. Se ele está na Espanha, está no PC espanhol, se ele está na França, está no PC francês. Como contei para vocês, nos campos nós recebíamos a visita do PC francês, até o momento em que, mais tarde, o partido foi jogado à clandestinidade. Muito bem. Então, onde é que nós estávamos?

Ivan Santos – No contato. Como é que o senhor fez contado antes.

Tarcísio Holanda – Contato com a resistência francesa.

– APOLÔNIO DA CARVALHO – Aí, houve um encontro. Eu tinha contato com eles, mas não participava, eu ajudava os companheiros que estavam presos. Eu ajudava com informações; se era preciso fazer uma viagem para garantir o deslocamento de um companheiro, eu, como funcionário ad hoc, tinha documento e ia com ele, isso preservava etc. Mas eu não podia participar diretamente de uma operação militar, porque se eu fosse apanhado, isso colocaria o Consulado numa situação difícil.

 

Mas acontece que o Brasil entra em guerra com a Alemanha, em agosto de 1942. E Hitler dá ordem ao Marechal Pétain para que feche todo o mundo diplomático brasileiro na Zona Sul. Então, a Embaixada Brasileira é fechada. É uma pena, porque o Embaixador Moreira é uma figura de quem eu gostava muito, para quem, como funcionário do Consulado, eu ia levar a mala diplomática de Vichy – direta para o Brasil – etc. e tal. E o Embaixador Souza Dantas era uma figura de uma cultura muito grande, de uma generosidade muito grande e muito solidário. Ele sabia que eu era comunista — comunista no Brasil, comunista na Espanha, comunista na França — e queria notícias. Sempre que eu ia a Vichy levar a mala diplomática, ele dizia: “Esta tarde você não aceita convite de ninguém, você vai jantar comigo”. E me levava para aqueles restaurantes muito finos, e tudo o mais e tal, para captar notícias. Eu dava o que podia para ele.

 

Muito bem. Então, fecham o Consulado. “O nosso consulado vai ser fechado!” – eu sou avisado um pouco antes, porque o Partido Comunista tinha ligação com a União Soviética; estava muito bem informado, então, eu peço para falar com o meu Cônsul e com o meu Vice-Cônsul e digo que “o consulado vai ser fechado e há na Alemanha uma cidade que, por gestões diplomáticas, não será bombardeada pelos aliados.”– em plena guerra – “Os funcionários serão enviados para essa cidade como reféns. Estou dizendo isso aos senhores porque talvez seja possível ir para Portugal ou outro lugar e escapar disso”. Meu Cônsul, que era um grande partidário — e isso é interessante porque a direção do Consulado estava dividida: meu Cônsul era um apaixonado pelos japoneses e pelos alemães; meu Vice-Cônsul era um homem ligado aos ingleses e ajudava a Resistência na França. Meu Cônsul deu um sorriso amplo: “Sim, senhor! Você vai ver, são histórias que os comunistas te contaram. Você vai ver que a guerra acaba e nós continuaremos aqui”. Falei: “Nós, não, os senhores. Nessa noite, eu vou embora”. Não podia mais ficar. Aí eu mergulho na Resistência francesa. Sou comandante de uma esquadra de 4 homens na guerrilha urbana; depois, sou comandante de um grupo de combate, com oito homens; depois, sou comandante de um destacamento até julho; depois, sou comandante de 3 destacamentos. Como (ininteligível), quem tem um destacamento numa cidade, trabalhando clandestinamente, agindo de surpresa e desaparecendo depois de cada ação é como se fosse uma brigada, um regimento, porque nós não podemos viver legalmente. Viver ilegalmente e atuar clandestinamente, então.

 

Muito bem. Há uma série de ações que nós fazemos; de sabotagem de produção de armas para a Alemanha, de sabotagem de transportes para os alemães, de sabotagem de transportes de tropas alemãs, de assaltos a quartéis dos alemães e dos italianos, de assaltos a tropas alemãs em marcha. Esse é  o conjunto das ações que fizemos na guerrilha urbana.

 

– Tarcísio Holanda – O  senhor poderia falar de alguns conflitos em que chegaram a morrer companheiros seus? Os senhores chegaram a matar oficiais, soldados alemães?

– APOLÔNIO DA CARVALHO – Os alemães tinham uma doação pela Prefeitura de Marselha de certos cinemas. Havia um grande cinema na rua principal de Marselha, La Canebière, o chamado Três Salas, eram 3 grandes salas de cinema, e os salões eram ocupados pelos alemães. Os alemães saiam da sessão principal, que era à tarde, por volta das 17h30min para 18h. Nós organizamos um ataque a granadas à saída dos soldados. Nós somos infelizes e tivemos 3 companheiros presos.

– Tarcísio Holanda – Presos?

– APOLÔNIO DA CARVALHO –  Presos. Eles seriam torturados e fuzilados. Estou dando um exemplo só, para não me alongar em outros exemplos. Muito bem. Então, participamos da guerrilha urbana nesse período todo e, por fim, temos a grande novidade: em junho de 40 [correção: 1944], os aliados decididos a  desembarcarem na França. Antes, já havia acontecido o desembarque na Itália; porque, em 42, a Argélia torna-se o centro das Forças Aliadas em nome da França. O General De Gaulle vai ocupar a presidência e a direção dos problemas políticos não mais em Londres, onde tinha estado antes, mas em Argel, na Argélia. Ali se concentram elementos da esquadra francesa e elementos da esquadra americana, e há a invasão da Itália, a invasão da Sardenha, a invasão da Sicília. Então, a libertação da Europa começa pelo sul, pela Itália. Mas já em 40, digamos assim, a partir de 42, mas sobretudo a partir de 38, 39

– RENÉE DE CARVALHO – Não, Apolônio, você está confundindo as datas. Você falou 38, 39.

– APOLÔNIO DA CARVALHO – Apagamos isso, muito obrigado. Mas, então, em junho de 40 há o desembarque aliado…

– Tarcísio Holanda – Na Normandia?

– APOLÔNIO DA CARVALHO – Na Normandia.

– RENÉE DE CARVALHO – Em 1944!

– APOLÔNIO DA CARVALHO – Em 44. Em junho de 44.

– Tarcísio Holanda – O senhor nunca foi preso pelos nazistas?

– APOLÔNIO DA CARVALHO – Não, nunca fui preso.

– Ivan Santos – Eu queria lembrar um episódio interessante do seu livro, no qual o senhor conta essa experiência prática de ter de eliminar um alemão numa luta pela sobrevivência: ou era o senhor, ou era ele.

Eu queria que o senhor nos contasse essa situação em que se defrontou com o inimigo. Como foi essa experiência? Como isso refletiu no seu espírito? Como o senhor se lembra disso?

– APOLÔNIO DA CARVALHO –  Isso é um problema de possibilidade de fazer a luta em condições adversas. A França está ocupada pelos alemães. Os alemães estão ali com todas as suas armas e toda sua arrogância. O povo está desarmado. Mas as forças patrióticas, as forças populares, querem salvar a França, querem a França liberta. Para isso, é preciso enfrentar o maior exército do mundo, na época.

 

Como enfrentar, com as mãos vazias, um exército de ocupação inteiramente armado? Os alemães faziam os seus desfiles pelas avenidas ladeados por soldados com metralhadoras apontadas para as calçadas onde a população transitava. Problema de segurança, não é?

 

Então, é preciso armar-se. Em Paris, já havia começado a resistência contra a ocupação alemã. A resistência tinha formado grupos de ação, grupos de guerrilhas que atacavam soldados alemães, oficiais alemães, generais alemães, depósitos de armas alemães. Mas isso era em Paris, não é? Paris foi ocupada já em junho de 40. Em Marselha, passamos a ser ocupados, em novembro de 42, dois anos depois.

 

Era necessário, então, buscar armas para fazer face às armas do inimigo. Onde encontrar essas armas? Claro que, no momento em que o Exército francês foi derrotado, em junho de 40, em que unidades inteiras, regimentos, brigadas foram dispersados pelo interior do país, retirados das frentes para não serem levados para os campos de prisioneiros, muita gente havia deixado os fuzis escondidos etc. Essas armas serviriam depois para uma parte da resistência atuar. Mas, numa cidade grande, não pode um combatente clandestino passear com fuzil, não é? Tinha de pegar armas portáteis; armas capazes de serem disfarçadas.

 

Então, é necessário buscar armas com os oficiais alemães, com os sargentos alemães, que, ao mesmo tempo em que tinham seus quartéis, enfim, seus locais de reunião, seus cassinos, seus centros de diversão, tinham também sua  vida própria também, não é?

 

Então, era necessário buscar armas abatendo o alemão que tivesse, no coldre, uma pistola. E não se pode fazer isso exatamente nas áreas centrais, onde há muita gente, e tudo mais, mas na periferia imediata da cidade. Você localiza, procura a sua arma, quer dizer, a sua vítima. E é nesse esforço que eu consigo localizar um alemão que, pelo volume da arma no coldre, mostra que pode ser um alvo fácil para mim, um alvo bom para mim. E eu o sigo discretamente, de longe e tal. Sei que ele segue para uma certa rua discreta. Isso, por volta das seis e meia da tarde, quando já a noite começa a cair etc. E vejo que isso é contumaz. Ele fazia todos os dias. E resolvo, então, buscar a minha  arma. Mas eu vou atacar um homem armado de pistola! Só com o punho, não dá.

Acontece que os operários franceses, a pedido das forças da guerrilha, haviam preparado cassetetes de aço, pequenos, mas muito maleáveis e muitos sólidos para um golpe. Nós podíamos guardá-los no bolso de dentro do casaco ou no sobretudo, em épocas mais frias.

 

Então eu vou enfrentar esse alemão com o cassetete que eu  tenho no bolso. Vou esperar o momento em que, na subida da rua — era uma rua que tinha um aclive —, não houvesse movimento. E, de fato, era uma rua muito tranqüila. Algumas pessoas passam entre mim e a vítima. Eu deixo que elas passem, que se afastem e tudo mais e tal. Em um momento dado, já no topo da rua, eu sinto que a situação é favorável. As janelas das casas estão fechadas. Então, resolvo atacar. Não quero atacar de costas. Aí entra o prurido ético, não é? Então, eu chego perto dele e provoco. Quando ele procura a arma, já eu baixei o cassetete em sua cabeça, e ele está como uma pedra caída no chão.

 

Tarcísio Holanda – Matou ou deixou só na rua?

– APOLÔNIO DA CARVALHO – Como?

– Tarcísio Holanda – Matou!

– APOLÔNIO DA CARVALHO – É isso. Porque é um golpe muito forte, com todas as forças, não é? É um problema de sobrevivência, não é? Ele estava com a mão no coldre.

– Tarcísio Holanda – Claro.

– APOLÔNIO DA CARVALHO – Aí, eu pego a arma e tiro um pouco dos seus cartuchos. Mas, aí, eu vejo a sua cara marcada por restos de crânio, sangue e essas coisas todas, e isso me choca muito. E não pego o resto dos cartuchos, saio quase correndo ladeira abaixo, pelo declive. Porque eu nunca tinha matado ninguém. É um choque muito forte. Depois, há certas coisas que atuam sobre a sua consciência. Não é apenas um soldado alemão, podia ser um operário alemão, um funcionário alemão, um homem do povo alemão mobilizado.

 

– Tarcísio Holanda – Mas o senhor era um combatente.

– APOLÔNIO DA CARVALHO – Tudo isso eu me tinha dito antes, mas, na hora, eu esqueço. Depois, descendo, eu me lembro de tudo isso. E me lembro de que os combatentes franceses, quando são presos, são fuzilados. Eu me lembro do crime que então se faz contra o povo francês. Então, descendo a rua, mais calmo… eu me tranqüilizo. Quando eu chego em casa, estou inteiramente à vontade. Mas estou com uma arma, não é?

 

– Tarcísio Holanda – Uma Luger?

– APOLÔNIO DA CARVALHO – Com uma arma, não é? E, ao mesmo tempo, eu me sinto um guerrilheiro urbano realizado.

No dia seguinte, eu vou ver o meu chefe militar, contar para ele o que se passou e levar a arma para ele, mostrar a arma. E vejo que ele gostou muito da arma alemã. Mas eu acho essa arma um pouco grande para mim; para levar no bolso do casaco. Eu preferiria uma pistola italiana menor. Então, eu disse ao meu chefe: “Olha, eu estou vendo que você está gostando dessa arma; eu te dou de presente. Mas eu quero uma arma italiana menor, mais portátil”. E ele disse: “Você leva a minha, porque ela já participou de várias ações”. E, aí, eu já estou armado. (Risos.) Isso a gente fez em muitos lugares, várias vezes, com mais e mais pessoas para compensar a possibilidade de reagir e de atacar.

– Tarcísio Holanda – Como eram as relações dentro da resistência? O senhor chegou a ter relação com o General De Gaulle ou com alguém próximo dele?

– APOLÔNIO DA CARVALHO – Quem sou eu, primo? Quem era eu, primo? Não! (Risos). Eu era um simples militante. Mesmo com funções mais tarde de dirigente regional, de várias regiões, como eu fui — eu fui comandante dos guerrilheiros voluntários internacionais de toda a Zona Sul, em dado momento. Mesmo nessa época, as relações nossas eram com os nossos superiores imediatos, porque era a vida clandestina. Nós estávamos na França e De Gaulle estava em Londres e, depois, em Argel. Muito longe, não é?

– Ivan Santos – Esse depoimento que o senhor acabou de nos dar é muito importante. Agora, para ser gravado: sobre a participação dos anarquistas, essa…

– Tarcísio Holanda – Quais eram os melhores combatentes, os mais abnegados?

– Ana Maria Lopes de Almeida – As lideranças…

– Ivan Santos – Essa participação generosa que eles tiveram e que, inclusive, contraria essa imagem que outras pessoas têm dessa participação…

– APOLÔNIO DA CARVALHO – Eu faço isso com muito prazer, porque eu sou um “anarquicófilo” inveterado. (Risos)

– Ivan Santos – E, em seguida, a gente vai falar do seu encontro com a Dona Renée.

– Tarcísio Holanda – Essa que é a suprema utopia, a abolição do Estado, completa.

– APOLÔNIO DA CARVALHO – É isso mesmo.

– Ivan Santos – Então, vamos lá!

– APOLÔNIO DA CARVALHO – Vamos lá. Eu partiria se vocês permitissem…

– Tarcísio Holanda – Claro.

– APOLÔNIO DA CARVALHO – Lembrar, apenas de passagem, numa só frase, o mundo colorido da Esquerda espanhola. A organização operária na Espanha era marcada por uma série de tendências, orientações, doutrinas e organizações ligadas a essas doutrinas e tendências. Nós tínhamos, por exemplo, uma classe operária, uma classe média pobre e uma menos pobre muito identificadas com a recusa do regime. Primeiro, a Monarquia, até 1931. No final da Monarquia, a serviço da Monarquia e dos generais que se jactavam no século XVI e no século XVII e da dominação da América.

 

A recusa desses generais fazia com que houvesse uma mobilização muito forte das forças populares, sobretudo do proletariado espanhol. Então, nós tínhamos a área do Partido Comunista ligada a Moscou, a área do Partido Comunista dissidente, que eles chamavam de Partido Operário de Unificação Marxista, ou POUM, cujo dirigente Andrés Nin, seria eliminado por pressão da dominação dos comunistas de Moscou, na Espanha, sob a influência da Internacional Comunista, então a área dissidente. Tínhamos os socialistas, com 3 aspectos: socialistas de centro, socialistas de direita e socialistas de esquerda. A parte mais volumosa, mais forte, o Largo Caballero, que era chamado de “o Lenin espanhol”. E havia os anarquistas, sobretudo caracterizados pela presença maciça e pela força de sua organização sindical, a CNT — Confederación Nacional del Trabajo. Os socialistas e os comunistas estavam na UGT — União Geral dos Trabalhadores.

 

Então, havia esse colorido de forças de esquerda que marcam muito particularmente a Espanha nos anos 1930 até os anos 1940. Dentro desse colorido, tem-se um governo de frente popular, no qual há comunistas, socialistas de vários tipos, comunistas dissidentes e comunistas ligados a Moscou etc., que são partidários de participação em governo e de presença no Estado, enquanto há os anarquistas que nunca aceitaram o Estado, nunca aceitaram o governo.

 

Os anarquistas, sentindo a necessidade da unidade, de juntar todas as forças contra a ameaça do fascismo e do franquismo, ao lado do fascismo, abdicam,  renunciam a sua doutrina e participam do governo. Houve Ministros anarquistas, entre eles uma Ministra de Educação. Havia coronéis e generais do Exército; tinham organizações muito fortes, militares, integradas ao Exército nacional. É um gesto generoso, um gesto profundamente, digamos assim, exemplar, o de subordinar os aspectos corporativos ao interesse nacional, ao interesse popular do conjunto. E, foram extremamente combatidos  em todos os sentidos; foram muito marcados pelas velhas idiossincrasias, pelas velhas polêmicas e desconfianças existentes na Esquerda espanhola, pois os comunistas de Moscou não aceitavam os dissidentes porque achavam que o Blum era ligado aos franquistas e que era, portanto, trotskista. Havia o choque dos comunistas contra os socialistas de esquerda, sobretudo, porque eram muito poderosos, e naturalmente os socialistas de centro e de direita e tudo o mais.

 

E os anarquistas fazem a sua adesão ao Governo, ao Exército. E são os primeiros que se rompem por influência da Internacional Comunista, essa unidade de forças de esquerda que representaram a força da frente popular, que representaram a força do movimento popular democrático na Espanha, desde o final da monarquia, desde a queda da ditadura de Primo Rivera, em 1931. Eles evitaram novos golpes em 1932 com essa unidade de socialistas e anarquistas.

 

O partido comunista era muito pequeno em 1931 e 1932. Foi crescer depois, por benefício da guerra também e com apoio da União Soviética e tudo o mais. Eles enfrentaram o horror do que se chamou o biênio negro, o biênio de 1934 e 1935, com uma ditadura de caráter fascista terrível e participaram de uma grande ação de unidade para a luta do que se chamou a Revolução de Outubro nas Astúrias, contra os dirigentes de direita e que teve mil prisioneiros sob a repressão do Exército espanhol. Depois, eles participaram de todos os cursos, tiveram coronéis e tudo o mais dentro do Exército.

 

Eu poderia citar 2 elementos que os que falam contra os anarquistas devem estar se lembrando, e os que, como eu, são a favor dos anarquistas gostariam de lembrar. Primeiro, o problema, por exemplo, da abnegação, da capacidade de esquecer de si mesmo como figuras humanas a serviço da causa. Eu acho que o anarquista levou isso ao extremo mais alto, mais humano e mais bonito, uma ética extraordinária.

 

Houve um momento em que não havia bem o Exército novo espanhol configurado, mas havia o que se chamavam as milícias populares. Quando o exército tentou um golpe, foi derrotado e jogado fora da metade oriental da República, estabeleceu-se uma linha entre o Governo de Franco e o Governo da República. Essa linha é uma linha de frente, uma linha de guerra. A República ainda não tinha um exército; então, cada sindicato, cada partido, cada organização, cada setor disposto a lutar enviou uma parte considerável dos seus militantes, dos seus membros, para atuar como soldados, como pode ser visto no filme Terra e Liberdade. A atuarem como soldados; eram as milícias populares que não tinham uma doutrina de guerra, que não tinham um comando comum, que não tinham uma estratégia e uma tática definidas, únicas, porque cada partido, cada organização enviou a sua tropa, que lutava ao lado das outras, mas de acordo com as suas visões, com as suas tradições, com a sua opinião sobre o que se devia fazer.

 

Muito bem. Nesse momento, o Exército franquista, mais poderoso, mais organizado, mais estruturado, mais bem armado, fazia uma ofensiva. Essas forças resistiam com as armas de que dispunham. Eles tinham tomado muitas armas do Exército espanhol, quando fizeram fracassar o golpe de Estado e ocuparam os quartéis, mas eram armas limitadas. Quando não podiam mais resistir, estava estabelecida atrás uma linha de reserva, de recuo, de resistência, uma nova linha de frente, e eles voltavam para isso. Então, quando era necessário recuar, eles recuavam praticamente em conjunto e iam para nova linha. Mas os anarquistas não recuavam. Os anarquistas, com suas bananas de dinamite, de melinita — eles chamam de bananas esses cilindros —, infiltravam-se nos vazios das fileiras franquistas, entravam no interior da área franquista. Muitos poucos recuavam, faziam contato, faziam seus relatórios e tal, mas a grande massa se infiltrava na área franquista e ia fazer saltar as pontes, ia fazer saltar os postos de comando, ia fazer saltar locomotivas, ia fazer sabotagens em estradas de ferro e de produção. E, em geral, muito poucos voltavam. O mais belo exemplo de autodoação, de fraternidade, de generosidade, de sentimento popular e nacional, não é? Por isso, na minha opinião, eles foram os primeiros nessa autodoação.

 

– Tarcísio Holanda – A Ana Maria estava perguntando como começou o seu romance com a Dona Renée.

– APOLÔNIO DA CARVALHO – Um segundo, um segundo. Eu queria dar o outro lado, porque é o outro lado contra os anarquistas.

– Tarcísio Holanda – Ah, sim. Perfeito.

APOLÔNIO DA CARVALHO – Então, ao mesmo tempo, os anarquistas participavam do exército e tinham um grande dirigente chamado Durruti, um grande dirigente político e dirigente militar, que tinha grandes forças ao lado de Barcelona, na região de Lérida.  Mas, num momento crítico de Madri, para lá havia ido com a sua tropa e morreu em Madri, Durruti. É um símbolo dos anarquistas, mas é um símbolo também da República espanhola como combatente e como dirigente.

 

Mas, ao lado disso, quero lembrar que havia também anarquistas que não perdoavam aos comunistas e a outros a perseguição que haviam sofrido quando foram jogados fora do Governo, quando tiveram suas organizações perseguidas etc. Então, havia um sentimento de vingança em relação a certos atos, a certas injustiças que tinham sofrido. Isso se refletia também no Exército. A um momento dado, eu tinha funções de Coronel, comandava todo um agrupamento de artilharia, e me mandaram ir a Córdoba. Era uma batalha muito importante, porque a República tinha preparado muito bem os elementos para esses combates e essa batalha. Ali nós fizemos uma grande concentração de artilharia. Batemos as trincheiras inimigas, e como era de manhã, e era um tempo meio de neblina, a fumaça não subiu, e ficou aquela muralha branca de fumaça, o que facilitava muito o avanço dessas tropas. Esse é o papel da artilharia: preparar o avanço da infantaria, cavalaria etc.

 

No meu observatório… Na artilharia ficam os canhões atrás das frentes, mas observam-se os tiros de uma elevação, um observatório. No meu observatório estava o Comandante do Corpo de Exército, que fazia aquela operação. E ele tinha me definido que uma divisão, a 28a Divisão, comandada por um anarquista, deveria fazer o primeiro assalto. Bom, o momento do assalto estava ali. Tudo estava fácil. Os defensores não veriam os atacantes. Mas não se ouviu um tiro, não se sentiu um movimento. Então, depois de uns 5 minutos, 10 minutos, o Comandante do Corpo do Exército telefonou para o Comandante da 28 Divisão: “28 Divisão?” “Sim.” “Aqui é o Comandante. Muito bem. Eu sou o Comandante do Corpo do Exército.” “Muito bem.” “O senhor não atacou ainda?” “Não, senhor. Não ataquei.” “E por que não atacou?” “Por que no me dió la gana.” No me dió la gana Porque  eu não tive vontade de fazê-lo.

 

Estou trazendo isso para os inimigos anarquistas depois utilizarem (risos) viu? “Porque no me dió la gana.” Você põe isso junto de Durruti, junto dos moços com as bananas na retaguarda. O outro lado é que é Durruti, os outros são os anarquistas. Esse elemento é um elemento marcado por injustiça, pelas coisas, e tal. E fez fracassar a operação. (Risos)

 

Agora nós vamos fazer um salto: de 1938/39 para 1940/42, quando, cansado de procurar no Brasil e na Espanha uma noiva… (Risos).

 

– RENÉE DE CARVALHO – Isso há 60 anos, não é?

– APOLÔNIO DA CARVALHO – Encontrei essa moça em Marselha (Risos)

– Ana Maria Lopes de Almeida – Marselha. Ela atuava no partido de vocês?

– APOLÔNIO DA CARVALHO – Marselha está no coração da gente, não é?

– Ana Maria Lopes de Almeida – Mas a sua esposa era atuante do…

– Tarcísio Holanda – Militante do Partido Comunista? Ela era militante?

– APOLÔNIO DA CARVALHO – Ela não era apenas militante. Renée faz parte de uma família que era a velha guarda comunista. O pai era marinheiro, era cozinheiro da Marinha Mercante, chefe de cozinha na Marinha Mercante. Mas toda… Um comunista muito apaixonado, e toda a família, as irmãs, o irmão — não é? — se tornaram comunistas. E a irmã da Renée… Renée tem uma irmã e um irmão. O irmão seria na guerra o meu agente de ligações, numa motocicleta, na frente, não é? A irmã, aos 20 anos, por combater Vichy e os alemães, tinha sido presa, e tinha sido condenada à morte. Não seria a primeira vez que se condenaria à morte, que se levaria à morte, à guilhotina, uma moça francesa.

 

– RENÉE DE CARVALHO – Na zona não ocupada.

– APOLÔNIO DA CARVALHO – Hein? Na zona não ocupada. Aí, comutaram para prisão perpétua a pena dela. E depois de 2 anos numa prisão francesa ela foi levada a algum campo de concentração na Alemanha. Como uma tia também. A tia da Renée, tia Matilde, era uma comunista convicta também. Tinha sido presa etc. e tal. Foi presa por quê? Porque na Resistência Francesa havia um homem muito bonito, chamado Gabriel Péri, que tinha sido fuzilado pelos alemães, preso e fuzilado. Durante a resistência, não é? E Aragon, um grande poeta francês, fez um soneto, falando como se ele fosse Gabriel Péri. Então, o soneto tinha um pedaço que dizia assim: “Et s’il était a refaire, je referais ce chemin” — “Se tivesse de ser refeito, eu faria de novo esse caminho”. Então, esse soneto se esparramou, porque era uma coisa muito bonita, uma homenagem a uma figura muito bonita, muito respeitada da direção do partido francês e da cultura francesa, não é? E ela tinha isso na bolsa. E quando a polícia veio buscar o pai e não o encontrou, mas a encontrou e a prendeu; na bolsa encontrou esse soneto. E por causa disso ela foi presa durante 2 anos, e mandada também para Auschwitz.

 

– RENÉE DE CARVALHO – Auschwitz era…

– APOLÔNIO DA CARVALHO – Era um dos campos de concentração na Alemanha.

– Tarcísio Holanda – Ela sobreviveu?

APOLÔNIO DA CARVALHO – Ela sobreviveu. As duas sobreviveram, felizmente.

 

Muito bem. Então, essa é a família da Renée. Renée aos 13 anos já estava numa organização comunista, nas Meninas da França, Jeunes Filles de France. Depois entrou para a União da Juventude Comunista. Quando eu conheci Renée, eu já estava na guerrilha urbana. Ela estava na União da Juventude Comunista, e nós combinamos que, afinal de contas, podíamos trabalhar juntos na guerrilha urbana. E aí fomos trabalhar juntos nesse período. E Renée foi combatente nesse período em ações muito interessantes, porque era muito difícil o trabalho de ligação dos comandos das várias regiões, os agentes de ligação. Era muito difícil você receber armas numa região que ia fazer uma operação difícil, de outras regiões. Então, as moças não só eram agentes de ligação, mas elas também faziam o trabalho de transporte de armas, granadas, munições, de dinamite, viajando com essas coisas nas suas maletinhas. Então, a bolsa com essas coisas embaixo, algumas flores em cima, para camuflar etc., etc. e tal.

 

Esse era um trabalho extremamente perigoso, porque se é apanhado está liquidado. Renée conta que, a um momento dado, ela trazia uma… um material mais perigoso que de costume, mas muito bem camuflado, com flores em cima, e ficou no… e viajou de trem, não é? Porque vinha de um lugar um pouco distante. E esse trem estava ocupado por soldados da polícia militar, da garde de mobilité, a polícia militar, não é? Muito bem. E aqui essa menina, com a valise ao lado, aquele jeitão doce e cândido de menina, e tudo mais, falava sim ou não, tudo mais e tal… Muito bem. Quando chegaram em Nîmes — ela ia descer em Nîmes com essas coisas, é uma cidade muito bonita da França —, ela se despediu, desejou boa viagem para os que ficavam porque iam continuar a viagem até Lyon, e aí pegou a sua bolsa para levar. Mas um deles ficava também em Nîmes. Ele não podia fazer esperar um momento; aí, delicadamente, ele não deixou Renée carregar a valise, e passou pelo controle com a valise cheia de material, de explosivo, não é? Compreende? E quando passou Renée despediu o sujeitinho.

 

– Tarcísio Holanda – Que sorte, hein?

– RENÉE DE CARVALHO – Nunca saí tanto (Risos)

– Ana Maria Lopes de Almeida – Foi paixão à primeira vista?

– Ivan Santos – É isso que a gente quer saber.

– Ana Maria Lopes de Almeida – Foi paixão, amor, veio assim: de estalo?

– APOLÔNIO DA CARVALHO – Eu acho que sim. Mas a questão é a seguinte: é que eu vivia clandestino. A família era marcada antes de a gente viver juntos. A família era muito marcada. A casa da família era muito marcada. Eu tinha… eu tinha que agir, nós tínhamos que agir — como eu lembro no livro, não é? — com ações de guerrilha. Eu só via Renée quando ela saía de casa. Ela trabalhava num laboratório de fotografias etc. Então, no caminho eu a encontrava, mas fora de casa; não podia em casa, não é? (Risos.)Depois eu ia visitá-la no laboratório, saíamos e tudo mais e tal, não é? Compreende? Para a gente fazer também nossos planos, assim, etc. e tal. Compreende? Mas dentro dessa situação. Ademais, o pai da Renée era um comunista, um… também de identidade pessoal muito, muito clara, não é? Ele desconfiava deste estrangeiro. Podia ser casado no Brasil, não é? (Risos) Há tantos assim, não é?

 

– Tarcísio Holanda – Há, sim.

– APOLÔNIO DA CARVALHO – Então, ele me marcava, me marcava. Depois, o problema é que ele não queria perder a caçula. Esse era outro problema que eu coloco em segundo plano, porque problema de estrangeiro… Muito bem, mas eu tive, nós tivemos uma grande ajuda, porque, na casa da Renée, havia a vovó da Renée, uma suíça da Suíça francesa, que tinha vindo para a França e tinha se casado com um… um menuisierz

– RENÉE DE CARVALHO – Um carpinteiro.

– APOLÔNIO DA CARVALHO – Um carpinteiro marselhês, compreende? E… e que vivia em casa. Compreende? O marido tinha morrido etc., mas ela vivia em casa; a vovó era aquela matriarca da casa, tudo mais e tal. Mas ela me adotou como neto, não é? (Risos) E isso equilibrou um pouco…

– RENÉE DE CARVALHO – Ele conquistou a avó.

– APOLÔNIO DA CARVALHO – (Risos.) Equilibrou um pouco as pressões paternas, não é?(Risos.) Até que um dia Renée disse assim: “Olha, não posso mais ficar aqui e tal. Entendeu? Nós vamos viver longe. Vamos para outra cidade.” Ela em Marselha, eu atuava em Nîmes, aí fomos viver em Nîmes, não é? E a vovó, um certo tempo… Nós éramos clandestinos, não éramos casados, entendeu? E vivíamos numa situação de perigo. A vovó viveu conosco um certo tempo. (Risos.) Uma figura muito bonita, não é, Renée? Figura muito bonita. Eu acho que era isso que você queria que eu dissesse.

– Ivan Santos – É. Agora, eu tenho uma curiosidade. Como é que numa situação de tensão, onde todas as energias são voltadas para as ações coletivas, as ações de interesse da organização, como é que numa situação como essa acontece essa coisa afetiva, isso brota, isso consegue um espaço? Como é que é isso? Porque vocês estavam totalmente dedicados a uma causa, e com um elemento estrangeiro, lutando contra um exército de ocupação, isso era a prioridade máxima de tudo.

– Ana Maria Lopes de Almeida – Com medo, não é?

– Ivan Santos – Como é que uma situação pessoal, uma paixão consegue acontecer numa situação como essa?

– APOLÔNIO DA CARVALHO – É que essa paixão era parte da mesma paixão, da causa comum. Renée era combatente, da juventude comunista, depois da guerrilha urbana. Nós estávamos dentro da grande… da grande paixão contra a ocupação alemã e pela libertação da França, viu? Mas também, estando dentro, nós estimulávamos a nossa luta, porque nos apoiávamos, trabalhávamos juntos. Havia mais unidade do que contradição.

– Tarcísio Holanda – Agora, o senhor chegou a Coronel nesse movimento da Resistência. Como é que foi o desfecho dessa luta toda? O que o senhor fez? O senhor ficou na Europa, em Paris? Ou o senhor casou na França e depois o senhor voltou para o Brasil? Como é que foi isso?

– APOLÔNIO DA CARVALHO – Vamos por partes. Eu tinha contado a vocês do desembarque americano em 5 de junho de 1944, na França. Não é isso?

– Tarcísio Holanda) – Na Normandia.

– APOLÔNIO DA CARVALHO – Na Normandia. Muito bem. É o princípio da libertação da França, embora os americanos não estivessem tão interessados em libertar a França. Mas era o caminho para atacar a Alemanha, não é? Muito bem. Nesse momento a Resistência Francesa, que fazia essas ações de guerrilha parciais — escalávamos aqui e tudo mais, e atacávamos um quartel, acampávamos num destacamento, aquela coisa de transporte e tudo mais e tal —, ela passa a um novo nível de ação militar. É a época das grandes greves insurrecionais no país, e, ao mesmo tempo, das ações armadas frontais contra os alemães, enquanto as forças de Vichy. Não é?

 

Então, acontece o seguinte: é que as tropas da guerrilha urbana anterior, passamos a ser destacamentos que, de um lado, quando os americanos estão forçando os alemães a recuarem da Normandia, cortam os transportes para os alemães; por outro lado, abrem caminho para os americanos por outros lados, para facilitar o avanço. Os americanos não tinham tão boas intenções, não, porque aquela faixa capitalista era extremamente marcada por seus interesses de classe, no mais alto nível, não é? Eles não queriam… eles não queriam libertar diretamente, atacando o país. Eles queriam dobrar Paris, contornar Paris, para avançar sobre a Alemanha, sabendo que os alemães tinham prometido que, se eles ficassem isolados, eles fariam soltar Paris. Mas quem libertou Paris foram as forças da antiga guerrilha urbana, transformadas em forças francesas no interior. Nós passamos a ter um conjunto de forças armadas criadas no interior do país, diferentes destacamentos de guerrilha, e que… Por exemplo, nós vínhamos de Toulouse; a zona de Toulouse foi liberada toda ela sem um soldado americano, pelas forças francesas do interior.

 

Em todos os Estados, quando o Governo De Gaulle enviou um contingente muito forte do exército para invadir a França pelo sul, e esse exército avançou até a fronteira da Alemanha, ao passar pelas grandes capitais, aí já encontrava as insurreições populares, donas dessas cidades, ou quase donas dessas cidades, o que facilitava a tomada da cidade e a continuidade do avanço. Aí se formou… se formou, a partir de março de 1944, o que se chamou de “as forças francesas do interior”, não em contraposição, mas paralelamente às forças francesas no exterior, no exílio, não é? Que tinha estado em Londres, estado em Argel etc. etc., e no exército também. Então, essas forças francesas do interior eram responsáveis por essa participação direta, abrindo caminho para as forças do exército ou libertando cidades.

 

Por exemplo, Paris. Paris ia ficar contornada pelos exércitos americanos, os alemães teriam a intenção de fazê-la… soltá-la e incendiá-la, mas o que aconteceu? As forças francesas do interior fizeram a insurreição em Paris e a rebelião em Paris. Libertaram a cidade, isolaram as forças alemãs da cidade, fizeram prisioneiras essas forças, até os últimos destacamentos. Juntos, ali, estavam reunidos perto do Jardim de Luxemburgo. Era a zona da resistência dos alemães. E ali era só o que faltava, tudo já estava liberado. Mas aí entram as forças americanas, com o exército francês, que também vinha de Londres com os americanos, e o General Leclerc vinha no corpo de tanques, que primeiro chegavam a Paris, não é? Entravam em contato com a nossa gente e diziam: “Venham nos ajudar. Lá no Jardim de Luxemburgo, é a última resistência!”, e aí se dividiu a resistência, e Paris foi liberada pelo seu povo, pelo seu povo, com a ajuda final de um destacamento de tanques do exército do exterior, não é?

 

São coisas muito particulares dessa luta: a presença do povo, a presença da Esquerda, a presença das forças inconformadas, não é? Nós temos que dar um lugar muito grande ao inconformismo diante do adversário e de seus planos perversos — ou dos aliados, que têm planos mais ou menos discutíveis em determinados momentos, não é?

– Ana Maria Lopes de Almeida – Quando é que o senhor voltou? Em que ano o senhor voltou?

– APOLÔNIO DA CARVALHO – Eu participei da libertação do sudoeste da França, que se libertou sozinho, sem nenhum… sem nenhuma tropa, viu? Eu fui comandante da liberta… primeiro, fui comandante de uma das lutas quase finais na cidade de Toulouse, mas depois fui eu comandante da libertação de uma área próxima, que era o Tarn. Então, fui participar particularmente na libertação do Tarn, e depois vim participar dos festejos, da comemoração em Toulouse. (Risos)

– Tarcísio Holanda – Agora, quando terminou a ocupação de Paris, quando a França foi libertada, o senhor ficou na França? O senhor ficou condecorado com a D. Renée?

– RENÉE DE CARVALHO – Foi para Paris, não é?

– APOLÔNIO DA CARVALHO – Nós fomos para Paris. O partido nos chamou, porque se criou — o partido francês, não é? — se criou uma associação de antigos combatentes da resistência, porque havia a tradicional associação dos antigos combatentes, a velha guarda, mas aí foi a associação da jovem guarda, a associação nacional dos antigos combatentes da Resistência, não é? E eu fui chamado para trabalhar nessa associação, na direção dessa associação, manter a memória e a imagem da nossa resistência, manter a memória e a imagem dos lutadores dessa resistência, dos combates, da estratégia e tudo mais, o balanço e ao mesmo tempo a história dessa resistência no quadro geral da luta contra o nazismo.

– Tarcísio Holanda –  Como foi a condecoração do senhor? Como que o senhor recebeu a condecoração?

– APOLÔNIO DA CARVALHO – Bom, isso… a um momento dado, aí, trabalhando nessa… nós já estávamos em Paris; já tínhamos, desde Toulouse, o primeiro filho nosso, que é René de Carvalho, que aqui é professor na Federal aqui do Rio. E então houve a distribuição de prêmios para os combatentes, e eu recebi a Legião de Honra. Recebi também o título de Coronel da Resistência. E a Legião de Honra, no interior da sede dessa organização. O Ministro da Aeronáutica, Charles Dillon, que tinha sido chefe da guerrilha no período anterior, veio, convidado, assistir a essa cerimônia. Ao mesmo tempo, comigo foi condecorado nesse momento o velho Portinari.

– Tarcísio Holanda – Cândido Portinari.

– APOLÔNIO DA CARVALHO – Também por gentileza do partido francês, da cultura francesa, do Governo francês, Portinari.

– Ana Maria Lopes de Almeida – Ele voltou com o senhor inclusive, não foi?

– APOLÔNIO DA CARVALHO – Nós voltamos com ele, porque acontece o seguinte: com Portinari eu recebo um recado do partido brasileiro — é a tua pergunta, um recado  porque até o momento da libertação da França não havia laços entre mim e o partido brasileiro, mas acontece que em 45, a caminho da vitória, em Paris, um correspondente de guerra, um jornalista chamado Samuel Weiner… nós nos encontramos, não é? E ele veio em casa, a gente faz contatos etc. e tal, e ele faz uma entrevista comigo que sai logo depois na revista Diretrizes, que era a revista que ele tinha no Brasil, e o partido brasileiro fica sabendo que eu estou vivo, que estou lá, etc., etc. E quando Portinari, que era um homem ligado ao Partido Comunista — como Niemeyer, como outros —, parte para a França, para fazer sua grande exposição em Paris, aí o partido pede a ele que me diga para voltar para o Brasil, que está precisando de que eu volte para o Brasil.

 

E aí é um problema: estou identificado com a luta da França, estou integrado com a família francesa, tenho uma esposa que… nesse momento já nos casamos oficialmente – hein, Renée? Foi em Toulouse, não é? (Risos) Nós nos casamos etc., o velho fazia um sorriso de um canto a outro, o pai. Então, já nesse momento nós já estamos em Paris e recebemos esse chamado do partido, e era um problema muito sério, porque era um dilema muito grave para Renée. Ela podia contar a vocês.

– RENÉE DE CARVALHO – Não…

– APOLÔNIO DA CARVALHO – Renéezinha vai lá, vai lá, vai lá., vai lá, vai lá, vai lá, Renée! Renée naturalmente estava num dilema muito sério: era deixar a família, deixar a casa dela etc., a pátria dela…

– Tarcísio Holanda – O País.

– APOLÔNIO DA CARVALHO – Deixar a tradição, deixar tudo. Mesmo que a gente voltasse para Marselha, porque marselhês é muito marselhês (risos), mas não gostaria de deixar a França, não é? Então, é coisa muito dura. Ao mesmo tempo, podia haver a idéia de me deixar partir só, fazer uma outra vida, e tal e tal. Mas já tínhamos um filho, o primeiro filho; aí ela fez o sacrifício de me acompanhar (risos) —porque foi um sacrifício: chegou ao Brasil sem saber português, sem falar, sem nada.

Muito bem, o partido nos cedeu… fomos para uma casa que o partido nos cedeu, um apartamento muito interessante, lá em Copacabana e tal, e o partido nos…

– RENÉE DE CARVALHO – Em Santa Teresa.

– APOLÔNIO DA CARVALHO – Em Santa Teresa, e o partido nos cedeu uma moça comunista para ser a nossa doméstica, nossa secretária lá. Muito bem. Xandoca, Renée? Xandoca. Uma figura muito bonita, muito, muito bonita. Muito bem. Mas eu fui trabalhar no Partido Comunista, e pegava da manhã à noite, e Renée ficava sozinha. Havia a Xandoca, mas com um garotinho, e esperando o segundo garoto, que ia nascer logo depois… Muito bem, foi uma situação muito, muito difícil, porque também nos separou durante o dia inteiro.

 

Havia um dirigente comunista que era secretário de organização, e o partido disse: “Você acompanha o secretário de organização, porque ele está ligado ao partido. Você não conhece o partido.” Eu não conhecia nada. Não tinha vivido o partido aqui no Brasil. “Você precisa conhecer.” Mas com ele era das 7 da manhã até as 7 da noite. Só à noite é que eu ia para casa, não é? Uma situação muito difícil para Renée. Na véspera do parto do nosso segundo filho o partido inventa de me mandar para uma operação muito particular em São Paulo e no Rio Grande do Sul. Então, uma situação muito difícil. Renée foi muito abnegada e muito sacrificada. Eu tenho…

– Tarcísio Holanda – Sem dúvida.

– APOLÔNIO DA CARVALHO – Eu tenho uma parte imensa de culpa, imensa, mas ao mesmo tempo uma culpa que é dobrada, porque nessa época eu ainda era um militante do estilo antigo, não é? Obediente, disciplinado, passivo etc. e tal, no tempo em que se dizia: o partido é tudo. Compreende? O lado profundamente desumano, profundamente afastado do dia-a-dia e dos sentimentos.

– Tarcísio Holanda – Agora, o senhor foi anistiado em 1945 — porque houve a anistia, não é? Como o senhor era oficial do Exército, o senhor foi beneficiado pela anistia, não?

– APOLÔNIO DA CARVALHO – Não. Os grupos dominantes do Brasil, os grupos de governantes do Brasil foram sempre de uma intolerância terrível, sobretudo com as esquerdas, sobretudo depois que os militares… ou mesmo antes dos militares, quando se estabeleceu o comunismo como inimigo fundamental no País, depois de 1935. Não é à toa que a Guerra Fria no Brasil não pôde evitar a floração de iniciativas de vida política democrática e presença do povo na vida política, com a liberdade dos partidos, entre de 45 e 47. A partir de 48 foi a clandestinidade para todos os partidos de esquerda, e a perseguição aos companheiros. Nós vivemos na clandestinidade todo esse período, e não nos anistiaram. Fui o último anistiado da minha turma, de 40 oficiais que, em abril de…

– RENÉE DE CARVALHO – Foi a Constituição, não é?

– APOLÔNIO DA CARVALHO – Eu sei, mas a minha turma de… que em abril de 36, tínhamos sido expulsos do Exército, foi por último. Mas a Constituição de 1988, nas Disposições Transitórias, no art. 8º, levantava a anistia. Então, eles foram obrigados a conceder a anistia. Mas como eu estava integrado na vida política, como em artigos, conferências, palestras, eu atacava profundamente o “deus” dominante e os militares, a ditadura militar, o Estado Novo e tal, eles não quiseram me dar a anistia senão no último momento. Toda aquela minha turma já estava anistiada, reintegrada no Exército.

– Tarcísio Holanda – Quando foi?

– RENÉE DE CARVALHO – Em 1992.

– APOLÔNIO DA CARVALHO – A minha turma em 1990; a Constituição é de 1988.

– Tarcísio Holanda – Ah, quer dizer que o senhor só foi anistiado em 1992?

– APOLÔNIO DA CARVALHO – Em 1992.

– RENÉE DE CARVALHO – Ele só voltou às fileiras em 1992.

– Tarcísio Holanda – Mas voltou às fileiras do Exército?

– APOLÔNIO DA CARVALHO – Como reformado.

– Tarcísio Holanda – Como reformado. Como general.

– APOLÔNIO DA CARVALHO – Não, eu devia ser general, mas como um comunista vai ser general? (Risos) É!!! Outros também que deviam ser, não foram. O topo, o piso, não é? Fala-se muito de piso hoje, não é? O problema… o piso é coronel, e olhe lá, hein? Então, sou coronel.

– Ana Maria Lopes de Almeida – O filho de Prestes, acho que no artigo da revista Veja, cita uma carta que Costa Leite teria escrito, citando o senhor como o melhor militar brasileiro na Guerra Civil Espanhola.

– APOLÔNIO DA CARVALHO – Ele cita isso.

– Ana Maria Lopes de Almeida) – O senhor tem essa carta?

– APOLÔNIO DA CARVALHO – Não, porque no caso ele copiou lá da KGB, lá dos artigos soviéticos. Ele visitou Moscou e lá… Eu tenho a cópia da revista em que ele fala disso. Mas no livro nós fazemos questão, Renée e eu, de mostrar que não é verdade isso. Eu fui muito bom militar porque eu já era um bom militar formado na ativa, e tudo mais, e tal. E, depois, eu sempre muito estudioso. Mesmo na Espanha eu estudava muito, e assimilei muitas coisas de livros espanhóis também, militares etc. Sempre fui muito, digamos assim, curioso de saber e de agir e tal, de modo que fui um militar muito bom. Não foi à toa que eu tive funções, sendo tenente só, de ser professor de capitão, de major, de coronel. E teria tido funções de general se eu tivesse ficado lá, se não houvesse aquele gesto a la… (Risos)

Pois é. Agora…

– Tarcísio Holanda –  Lá a sobrevivência do senhor foi muito difícil?

– APOLÔNIO DA CARVALHO – Não, não foi, não.

– Tarcísio Holanda – Não foi não?

– APOLÔNIO DA CARVALHO – Não, não foi.

– Tarcísio Holanda – Porque o senhor fora do Exército…

– RENÉE DE CARVALHO – Foi. Foi muito difícil, sim.

– APOLÔNIO DA CARVALHO – Tá, foi difícil, sim. Foi difícil.

– Tarcísio Holanda – Porque o senhor fora do Exército, na clandestinidade, com 2 filhos…

– APOLÔNIO DA CARVALHO – Claro.

– Tarcísio Holanda – Era difícil para o senhor.

– APOLÔNIO DA CARVALHO – Eu era o militante que tinha o menor soldo do PC, o menor soldo, porque eu não tinha coragem de pedir mais, sobretudo porque… Renée dizia até: “Não podemos viver assim.” Eu ia falar com o Secretário de Finanças do Comitê Central, que era uma das mais belas figuras de comunistas que nós conhecemos. Como era o nome dele?

– RENÉE DE CARVALHO – Bittencourt.

– APOLÔNIO DA CARVALHO – O velho Spencer Bittencourt, um bancário, mas um homem apaixonado, uma figura também de uma pureza de vida e militância respeitada. Eu dizia: “Não é possível.” Ele dizia: “Não, eu tenho ódio de não dar nada mais a ninguém. Não dei, não dei, por mais que…” Aí eu falava forte com ele, que eu respeito; nunca falei mal, não pedia a ninguém, mas falava, insistia com força com ele. Ele dizia: “Eu estou chorando, porque não posso te dar.” E eu me desarmava, não é? Eu me desarmava.

 

Mas nós fazíamos traduções. Isso nos facilitava um pouco algumas loucuras, como ter um aparelho de rádio com coisas para vitrola. (Risos.) Foi a primeira conquista, não é? Depois uma geladeira; depois recebemos um presente do velho sogro, não é? Eu fiz uma viagem à Europa com o partido, e tudo mais, e sempre ia a Marselha. Eu desviava e ia a Marselha. E ele quis nos dar um presente. Falei: “Não, senhor. O senhor está doente aí. Do senhor não quero presente nenhum, de maneira nenhuma.” Mas ele insistiu muito, e disse: “Mas esse presente é para comprar uma geladeira e uma máquina de lavar roupa.” (Risos.) Aí nós chegamos aqui e trocamos os (ininteligível), e trocamos o câmbio etc. e tal, e inauguramos a nossa casa com a geladeira e com a máquina de lavar roupa. Nós tínhamos uma gata que se chamava Koshka — koshka em russo quer dizer gata —, uma gata chamada Koshka. Nós pusemos a gata em cima da geladeira, e tiramos uma fotografia da geladeira e da máquina de lavar roupa e mandamos para o sogro. (Risos)

– Tarcísio Holanda – O senhor foi constituinte em 1946?

– APOLÔNIO DA CARVALHO – Não, não, eu nunca fui Deputado.

– Tarcísio Holanda – Não?

– APOLÔNIO DA CARVALHO – Não, eu nunca fui Deputado, nem Vereador, nem Senador, não gosto.

Tarcísio Holanda – Quando veio a…

– RENÉE DE CARVALHO – Chegamos em fins de 1946 aqui no Brasil.

– Tarcísio Holanda –  Eles estão cansados.

 

SUMÁRIO: Entrevista com o Sr. Apolônio da Carvalho (Parte 2), exibida no Programa Memória Política, da TV Câmara, em 25/10/2000. O início da entrevista não foi gravado.