10/09/2019
Quem não viu, perdeu um marco da democracia brasileira, similar ao ato das Diretas Já, em um auditório repleto de presumíveis 1500 pessoas. Perdeu o momento em que o jurista Dalmo Dallari clamou pela liberdade de imprensa e os direitos fundamentais garantidos pela Constituição de 1988.
Aconteceu na segunda feira, 9 de setembro, às 19 horas no histórico Salão Nobre da Faculdade de Direito da USP e se insere entre as manifestações mais importante dos últimos tempos contra os ataques sofridos por jornalistas e veículos de comunicação via meios de comunicação. Manifestações iniciadas em 30 de julho, quando a ABI protagonizou em sua sede um ato em defesa do jornalista Glenn Greenwald – Manifestação na ABI é destaque no exterior, reunindo mais de três mil pessoas.
Os ataques, porém, prosseguiram. Em retaliação a coberturas consideradas desfavoráveis ao governo, o presidente assinou a Medida Provisória que extingue a obrigatoriedade da publicação de balanços por empresas na mídia impressa e desacata, persegue e processa qualquer jornalista que lhe dirija perguntas embaraçosas. As empresas que lhe são fiéis tratam de demitir em massa equipes de jornalistas presumíveis “de esquerda”. A censura está de volta, até nos gibis.
Com a presença de ilustres como o ex-chanceler Celso Lafer, o professor emérito da Faculdade de Direito, Fábio Konder Comparato, a juíza Kenarik Boujukian, a cineasta Lais Bodansky, a cantora Karina Buhr, o escritor português Valter Hugo Mãe, e o colunista da Folha, Reinaldo Azevedo – deixando claro sua posição antagônica com a esquerda ali presente, alegando estar ali pelo direito à diferença -, realizaram um ato importante pela união em um país onde a democracia vem sendo dilacerada.
O mestre de cerimonia foi o jornalista Juca Kfouri, um dos conselheiros da ABI, que trouxe, primeiro, a má notícia: “imaginem que nós estamos aqui em 2019 defendendo a liberdade de imprensa e a minha geração achava que esta preocupação tinha ficado para trás”. E, em seguida, a boa, “este aqui é o renascimento da sociedade brasileira – que passa igualmente pelo renascimento da Associação Brasileira de Imprensa”.
“Jornalismo é oposição, o resto é armazém de secos e molhados’, Juca citou Millôr Fernandes. E definiu a diferença entre “eles” e “nós”, “a gente faz a política do afeto, pensando em todos”
A novidade foi a intervenção de jovens representantes de Centros Acadêmicos “pela democracia no nosso país neste ato histórico onde, hoje compreendemos, ser jornalista já é um ato histórico”. Houve a triste constatação de que só 10% dos jovens acreditam na imprensa, “mas precisamos mudar isso, eles têm de acreditar”, como lembrou Leandro Demori, editor do The Intercept.
Presentes representantes do padre Ticão, perseguido em sua igreja no leste de São Paulo, o padre Silvio Lancelotti, o presidente do Sindicato de Jornalistas de São Paulo , Paulo Zocchi , registrando a gravidade do momento em que jornalistas são mortos pelo país a fora, e, em nome do áudio visual, Laís Bodansky assustada com o discurso do ódio que toma conta do país. O auditório foi tomado por palavras de ordem, “não temos o direito de capitular’.
Presentes os ex-senadores pelo PT Eduardo Suplicy e Aloizio Mercadante, o ex-canditato a presidência pelo PT, Fernando Haddad, o jornalista Marcelo Rubens Paiva, que lembrou o momento de golpe em que vivemos citando a perda de três momentos de defesa da democracia que foram desrespeitados, “o controle civil dos militares, a independência dos três poderes, e a imprensa livre”.
A perda dos direitos trabalhistas, da imprensa, da liberdade de expressão choca o representante da União Nacional dos Estudantes, e todos os palestrantes que ecoam frases pelo Salão:
“Juntamos aqui nomes como Marighela, Zumbi, Marielle Franco”. “Qualquer maneira de amor vale a pena”. “Parafraseando o discurso do presidente Lincoln, esta nação renascerá pelo regime de liberdade pelo povo, para o povo e não desaparecerá da face da terra”, relembrou o ex-ministro de Direitos Humanos do governo Lula, Paulo Vannuchi.
O portal “Alma Preta”, a Frente de Defesa pelo Povo Palestino, todos presentes no ato organizado pela Associação Brasileira de Imprensa, pelo Sindicato de Jornalistas Profissionais do Estado de São Paulo, o Instituto Vladimir Herzog, e os Centros Acadêmicos da USP Lupe Cotrim, Vladimir Herzog e 11 de Agosto.
“Obrigado pela presença de todos num momento gravíssimo”, disse o jornalista Eugênio Bucci. “Estamos aqui hoje para defender, manter e cumprir a Constituição Federal de 1988. Quando o presidente da República toma posse ele jura, diante da nação e de seus representantes, defender, manter e cumprir a nossa Constituição. Que nasceu justamente de um consenso contra a censura, a tortura e a ditadura. Mas o presidente não cumpriu sua palavra, ele atenta contra a Constituição quando faz a apologia da ditadura, do coronel Brilhante Ustra e, ao mesmo tempo, desrespeita a morte de Alberto Bachelet no Chile. Ou quando censura filmes e jornalistas. Estamos aqui hoje porque não queremos a cultura do arbítrio, da homofobia, da xenofobia, do discurso do ódio que dirige insultos a outros países. Queremos a Constituição”.
O escritor português Valter Hugo Mãe nos lembra o que quase esquecemos , “este é um país de maravilhas, apaixonei-me por esse país de Machado de Assis, negro, de Sonia Braga e Ney Matogrosso, o país dos povos originários, o lugar onde Marielle estará sempre presente”. Ele insiste, “este é um país onde existe floresta, que se deixar de existir será um país como outro qualquer”.
Mas é outro estrangeiro, Glenn Greenwald, a estrela da festa, junto com o site que ele representa, o Intercept, e outros bravos órgãos de imprensa, Ponte, El País, Fotógrafos pela Democracia, Piauí. Presentes.
“O pacto foi quebrado”, nos lembram. Greenwald não é artista pop mas é recebido pela plateia como se fosse.
“O Brasil não é um país estrangeiro, me ensinou uma nova maneira de viver, uma nova profissão, me deu filhos e um marido. Não vou embora, vou ficar neste país até o fim dos meus dias, não pretendi ser o antagonista e sim devolver a este país a liberdade de imprensa e pensamento. Somos jornalistas não hackers, minha paixão pelo Brasil não é um movimento impulsionado pelo ódio e sim pela energia do amor e da diversidade. Mas não se iludam, fui impulsionado pela coragem de uma pessoa que conheci em Hong Kong quando ele tinha 29 anos, Edward Snowden [hoje com 36 anos]. Snowden me ensinou que a questão não é saber se vamos morrer, mas como vamos viver. Ele declarou estar pronto para ir para a prisão pelo resto da sua vida porque não poderia se calar depois do que havia descoberto [o administrador de sistemas tornou públicos documentos que constituem o sistema de vigilância global da NSA americana, revelou a espionagem em massa promovida pelo governo americano e entregou a Glenn seus documentos causando o escândalo que sacode o país]. “Snowden me ensinou que a coragem é contagiosa. É essa coragem que quero ver impregnada em todos os membros do Intercept e disseminá-la aqui, agora. Jornalistas: não podemos ter medo”.
(*) Norma Couri é jornalista e do Conselho Deliberativo da ABI.
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