24/01/2022
LEIA ARTIGO DE ELZA, E ABAIXO, DE CHICO BUARQUE E RUY CASTRO
“Por ELZA SOARES, cantora, tinha 86 anos quando escreveu este artigo no jornal Folha de S. Paulo, e se apresentava no show “A Voz e a Máquina” dias 6 e 7 de junho no Sesc Santo André. Foi publicado em 25 de maio de 2014. Homenagem à grande diva da música brasileira, falecida em 20 de janeiro de 2022, aos 91 anos.
Além de ter sido um período muito difícil para o Brasil, a ditadura militar foi quando tive minha casa metralhada. Estávamos todos lá: eu, Garrincha e meus filhos. Os caras entraram, metralharam tudo e nunca soube o motivo.
Era 1970, já tínhamos recebido telefonemas e cartas anônimas, nos sentíamos ameaçados e deixamos o país. Acredito que fizeram isso por conta do Garrincha, mas também por mim, pois eu era muito inflamada e então, como ainda hoje, de falar o que penso. Eu andava muito com o Geraldo Vandré e devem ter pensado que eu estava envolvida com política. Mas eu sou uma operária da música, e qual é o operário que não se revolta?
Fomos para Roma, e lá o Garrincha, que não tinha sido convocado para aquela Copa, estava em desespero por não estar jogando e por não ter onde morar. Estávamos num hotel, vendo o Brasil ser campeão. Foi quando o Juca Chaves foi comemorar na Piazza Navona, onde fica a embaixada brasileira.
Estávamos trancados dentro de um apartamento, e o Garrincha queria sair de qualquer maneira: queria participar da festa, mas ao mesmo tempo estava altamente deprimido. Ele perdeu a casa, teve de deixar o país e não sabíamos como voltar.
Enquanto se celebrava o fato de o país se tornar o primeiro tricampeão na história da Copa do Mundo, o Brasil fazia barbaridades com sua população. O Garrincha sentia um misto de alegria e dor, porque ele queria comemorar, mas, ao mesmo tempo, sentia repulsa por tudo que nos havia acontecido.
Imagine o que é para um homem que, para mim, está acima de qualquer nome no futebol brasileiro, ser mandado embora do país. Isso já é tenebroso, vergonhoso; imagine então esse homem vendo aquela conquista, confinado numa selva de pedra, no exterior, sem entender nada, sem saber o que havia acontecido com nossa casa.
Aquela foi a época em que ele mais bebeu, e não saía de casa, pois tinha vergonha de aparecer embriagado. Eu fazia de tudo para ele não beber, mas não adiantava.
Era tão grande a minha angústia que eu tinha vontade de invadir a embaixada brasileira em Roma. Mas segurei a onda. Continuamos vivendo num hotel e tivemos grande ajuda de Chico Buarque e Marieta. Eles tinham se exilado na cidade e foram dois amigos de alma.
Ali eu tive um bom empresário, trabalhei muito e fui ganhando o dinheiro com o qual pagava todas as contas. Durante um jantar, conheci Ella Fitzgerald, que estava fazendo shows com repertório de bossa nova e teve um problema de saúde. Eu acabei substituindo-a.
Mas, quando descobriram que eu estava trabalhando na Itália sem documentação, tivemos de sair de Roma -então fomos para Portugal por um tempo.
Um dia, estávamos no Cassino Estoril, perto de Lisboa, e encontramos o apresentador Flávio Cavalcanti e o Maurício Sherman, que dirigia um programa na TV Tupi. Eles deram ao Garrincha uma camisa do Brasil, querendo homenageá-lo -mas quem queria camisa da seleção naquela altura?
“Obrigado o…, cadê minha casa, cadê minha moradia? Já vesti a camisa do Brasil anteriormente, já dei tudo que eu poderia ter dado ao Brasil”, ele disse.
Passados 50 anos do golpe, ninguém jamais tomou nenhuma atitude sobre o que nos aconteceu naquele 1970, e eu continuo brigando pelo Mané, até hoje.
Quando eu canto “Meu Guri”, canto com muita força, e essa é uma maneira que eu tenho de cantar uma música do Chico, mas homenageando o Mané. Eles são os dois guris de “my life”.
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Por Chico Buarque de Holanda, publicado no portal da União Brasileira de Compositores
“Se acaso você chegasse a um bairro residencial de Roma e desse com uma pelada de meninos brasileiros no meio da rua, não teria dúvida: ali morava Elza Soares com Garrincha, mais uma penca de filhos e afilhados trazidos do Rio em 1969. Aplaudida de pé no Teatro Sistina, dias mais tarde Elza alugou um apartamento na cidade e foi ficando, ficando e ficando. Se acaso você chegasse ao Teatro Record em 1968 e fosse apresentado a Elza Soares, ficaria mudo. E ficaria besta quando ela soltasse uma gargalhada e cantasse assim: “Elza desatinou, viu”. Se acaso você chegasse a Londres em 1999 e visse Elza Soares entrar no Royal Albert Hall em cadeira de rodas, não acreditaria que ela pudesse subir ao palco. Subiu e sambou “de maillot apertadíssimo e semi-transparente”, nas palavras de um jornalista português. Se acaso você chegasse ao Canecão em 2002 e visse Elza Soares cantar que a carne mais barata do mercado é a carne negra, ficaria arrepiado. Tanto quanto anos antes, ao ouvi-la em Língua com Caetano. Se acaso você chegasse a uma estação de metrô em Paris e ouvisse alguém às suas costas cantar Elza desatinou, pensaria que estava sonhando. Mas era Elza Soares nos anos 80, apresentando seu jovem manager e os novos olhos cor de esmeralda. Se acaso você chegasse a 1959 e ouvisse no rádio aquela voz cantando Se acaso você chegasse, saberia que nunca houve nem haverá no mundo uma mulher como Elza Soares”
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Por RUY CASTRO, publicado na na Folha, 20-01-22
Em seu apartamento quase sem móveis, em São Conrado, Elza Soares, morta nesta quinta (20), me olhava sem acreditar enquanto eu lhe narrava um episódio acontecido 30 anos antes, num quarto fechado, em sua casa na ilha do Governador, envolvendo apenas ela própria e seu marido Garrincha, e sobre o qual ela nunca falara com ninguém.
Quando terminei, sua resistência explodiu em choro —lágrimas grossas escorreram entre seus cílios postiços. E só então ela se interessou mais pelo profissional que a entrevistava para um livro que se chamaria “Estrela Solitária – Um Brasileiro Chamado Garrincha”.
Isso foi em 1994. Um ano depois de iniciado o trabalho de apuração do livro, eu decidira que estava na hora de falar com Elza. A experiência me ensinara que, quanto mais importante a fonte de informações numa biografia, mais ela deveria ser deixada para a frente —para que o biógrafo tivesse tempo de aprender o máximo sobre ela e fazer com que a conversa entre eles se desse num grau maior de profundidade. Servia também para que a fonte percebesse que o biógrafo seria difícil de tapear.
O episódio referia-se a uma bactéria exótica que Garrincha trouxera de uma de suas viagens com o Botafogo, nas quais não dispensava os passeios noturnos. Como eu poderia saber daquilo? Não precisei revelar-lhe minhas fontes, nem faria isso. O importante era que soubesse que eu sabia. Mas a explosão de choro serviu para quebrar o gelo. Pelo ano e meio seguinte, Elza se revelaria uma fonte inestimável, sem censura, sem meias-tintas, sobre si própria e sobre Garrincha.
Elza tinha horror a Nilton Santos, companheiro e mentor de Garrincha no Botafogo. Em fins de 1962, quando Garrincha abandonou a família para viver com ela e a imprensa passou a atacá-la como “destruidora de lares”, Elza soube que Nilton Santos o aconselhara: “Mané, volte para a comadre Nair. Não troque sua mulher por uma…”. Ela nunca lhe perdoou o insulto. O resultado é que, nos 15 anos em que Elza e Garrincha viveram juntos, Nilton Santos nunca foi admitido nas várias casas em que moraram —ele e Garrincha só podiam se ver no clube ou na rua.
Durante mais de um ano, fiz pelo menos 15 entrevistas longas com Elza e nos falamos dezenas de vezes por telefone. Ela não era, então, uma artista muito ocupada —ao contrário, raramente era chamada a cantar e vivia com problemas financeiros.
O estigma de que tinha sido a “destruidora de Garrincha” ainda se mantinha. Sei disso porque eu era interpelado na rua por pessoas que sabiam que eu estava trabalhando numa biografia do craque: “Foi ela quem levou o Garrincha a beber. Você vai escrever isso?”, diziam. Como explicar que Garrincha sempre bebera, muito antes de conhecê-la, e que, sem Elza, ele teria morrido ainda mais cedo? E que, se alguém teve prejuízo profissional com aquela relação, fora ela —porque Elza já era a super-Elza Soares quando o conheceu, e Garrincha não sabia, mas já começara a deixar de ser Garrincha.
Outra lenda era a de que Elza “só pegou o Garrincha [na Copa do Mundo no Chile em 1962] porque o Pelé não quis nada com ela”. Primeiro, Elza e Garrincha já estavam informalmente juntos seis meses antes daquela Copa.
Segundo, bastava conhecer Elza para saber que ela nunca se interessaria por Pelé ou por qualquer homem como ele. Pelé era rico e poderoso, era o “Rei”. E Elza só gostava de homens frágeis, que ela pudesse proteger, acarinhar, exercer o papel de mãe. Seu namorado anterior a Garrincha tinha sido Milton Banana, o homem que inventara a bateria na bossa nova e continuava pobre —ninguém mais frágil e desprotegido do que Milton Banana.
O Garrincha por quem Elza se apaixonou, já campeão do mundo na Suécia e às vésperas do bi, era um homem que usava camisas rasgadas, com botões diferentes, cuecas puídas e sapato furado —porque sua mulher não ligava para cuidar dele. Garrincha a levou à sua casa em Pau Grande, e Elza ficou revoltada com a imundície e com a quantidade de gente que o explorava.
Levou-o para sua casa na ilha, despiu-o, lavou-lhe os pés e os beijou. Depois queimou seus farrapos e substituiu-os por calças e camisas compradas na Casa Alberto. Todos os homens que Elza teve depois de Garrincha seguiram esse padrão.
Quando eu a visitava, Elza não tinha um único de seus discos, nem uma foto, nem uma reportagem de jornal a seu respeito. Vivia se mudando —creio que para evitar despejos. E, sempre que eu chegava, ela estava sofrendo de alguma coisa.
Certa vez, andando descalça pela casa, dera uma topada numa perna de mesa e quebrara o dedinho do pé. Em outra, jogara água oxigenada no olho pensando que era colírio e ficara monstruosamente inchada. E, ainda em outra, estava se desfazendo pelo nariz e suando, com uma mistura de resfriado, febre, coriza, sinusite e enxaqueca.
E o pior é que tinha show àquela noite, com o conjunto Galo Preto, no Jazzmania, em Ipanema. Show que ela teria de fazer, porque estava dura. Desejei-lhe as melhoras. À noite, fui ao show. A transformação era impressionante. Não era possível que aquela mulher no palco, cantando como uma deusa e sambando como um demônio, fosse a enferma que eu vira horas antes. Mas era. Enlouqueceu a platéia. Ao fim do show, fui a seu camarim —e lá estava Elza, de roupão felpudo, com um lenço ensopado na mão, com 39 de febre e se derretendo de novo. Como se explicava?
Simples. Uma era a mulher, frágil, mortal, que ficava doente. A outra era a artista, indômita, invencível, que ninguém destruiria.