24/06/2022
Bruno Marinoni (*), no Esquerda on Line
Divulgação/ Igreja Mundial
Pastor Valdemiro Santiago no programa Domingo Legal
O Senado aprovou na terça-feira, 21 de junho, o Projeto de Lei 5.479/19 que libera a terceirização de toda a grade de programação das emissoras de TV e rádio. A matéria segue agora para a sanção do presidente Bolsonaro e na prática significa uma grande vitória da sua base eleitoral. Até o momento, o Código Brasileiro de Telecomunicações só permite a comercialização de 25% do tempo das emissoras para veiculação de conteúdo publicitário. Além disso, os contratos de radiodifusão não preveem a possibilidade de subconcessão, o que não está autorizado pelo poder concedente. Com a nova formulação, o arrendamento da transmissão passa a ser legal, tendo as concessionárias apenas a obrigação de responder formalmente pelo conteúdo veiculado.
O projeto de lei é uma iniciativa legislativa do deputado Alex Santana (Republicanos-BA) e teve relatoria do senador Vanderlan Cardoso (PSD-GO), ambos membros da frente parlamentar evangélica. Tem como pano de fundo o interesse direto dos radiodifusores ligados à Abratel (racha da ABERT). O texto teve, quando na Câmara, votos contrários da oposição, de partidos como o PSOL e o PT. O senador Paulo Paim (PT-RS) ainda tentou emendar a matéria no Senado e estabelecer um limite de 30% para o arrendamento, mas sua proposta foi rejeitada pelo relator.
A votação do projeto de lei no Senado acontece um mês depois da condenação da Rádio e Televisão Bandeirantes no Rio de Janeiro e a Rádio e Televisão Record S/A pela Justiça Federal para que ajustassem suas grades ao exigido pela lei. Conforme esta medida, o tempo terceirizado deveria estar compreendido no limite legal reservado para comercialização publicitária de 25% do total e caberia às empresas adequarem sua programação, reduzindo o período arrendado ao teto de seis horas diárias. A decisão da Justiça Federal responde a ações civis públicas movidas pelo pelo Ministério Público Federal (MPF) em dezembro de 2019 e fundamentadas em inquérito instaurado em 2016.
O MPF havia apurado que a emissora TV Record comercializa 28,19% do tempo, destinando 20,83% semanais para programas de responsabilidade da Igreja Universal do Reino de Deus e a Band Rio disponibiliza 25,98%, em média, para fins comerciais, burlando, também, o limite legal. Na Band, o tempo destinado a programas religiosos contratados é de 20,38%.
Nas últimas décadas, emissoras de TV e rádio têm arrendado, ao arrepio da lei, parte de sua programação como forma de explorar economicamente as concessões de radiodifusão que receberam do poder público e, assim, se capitalizar terceirizando os custos. Essa prática foi aproveitada majoritariamente por grupos empenhados em utilizar o serviço público para proselitismo religioso, mas também por “pequenos empreendedores” que estão no comando de alguns dos mais conhecidos programas policialescos da TV e do rádio brasileiros. Justamente nesses espaços (com algumas execeções) foi preparado, ao longo de muitos anos, o caldo de cultura de ódio, misoginia, racismo, intolerância religiosa, lgbtfobia e punitivismo que hoje alimenta o bolsonarismo – antes mesmo do sucesso de qualquer corrente de desinformação nas redes sociais e aplicativos de troca de mensagem.
Na prática, a aprovação do projeto de lei pelo congresso busca consolidar esse fato consumado: o arrendamento é prática corrente há décadas. Reverte ainda o que poderia ser uma conquista da sociedade brasileira, com o estabelecimento de uma jurisprudência limitadora do arrendamento de um bem público sem autorização – derrota agravada pelo fato de que a terceirização tem, além do interesse econômico, nítidos fins de dominação ideológica (religiosa e cultural). Significa também um declarado ataque ao MPF, conforme fica nítido na fala do senador Carlos Viana (PL-MG), cujo lamento critica a atuação de membros do Ministério Público que têm levado os casos à Justiça.
Apesar do silêncio quase generalizado sobre o fato na mídia, preocupa ainda mais a falta de repercussão do tema na esquerda, que se mostrou totalmente desarmada para enfrentar o tema (a aprovação no Senado, por exemplo, se deu de forma quase protocolar, em poucos minutos). O esvaziamento da luta no campo da radiodifusão expressa em parte a má compreensão dos setores progressistas das classes médias sobre a permanência da importância política e ideológica da TV aberta e do rádio na disputa de hegemonia mesmo depois do advento da internet. Isto se reflete na dificuldade que tem hoje o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) para mobilizar entidades e ativistas em torno da sua pauta histórica de lutas e da ausência de qualquer outro ator que tenha ocupado esse espaço.
De acordo com a Kantar Ibope Media, a TV linear (com programação fixa, incluindo TV aberta e por assinatura) alcançou 93% da população brasileira em 2021. Segundo a pesquisa Inside Video de 2022, as emissoras desse setor alcançaram cerca de 206 milhões de pessoas no Brasil, concentrando 79% da demanda total, com tempo médio diário de consumo de 5 horas e 37 minutos por indivíduo (quase um quarto de um dia inteiro). Isto indica claramente que – apesar do crescimento da participação de serviços digitais no mercado antes monopolizado por setores tradicionais da comunicação – há um certo desastre na pressa que se teve para estar na vanguarda de alguns processos em detrimento da importância de se manter na luta pela regulação da radiodifusão, pois a disputa por hegemonia (como se vê) ainda passa por aqui também. E mais uma prova disso é – em mais um episódio histórico da história da radiodifusão – a gana que a burguesia radiodifusora, em aliança com o fundamentalismo religioso, demonstrou para “passar a boiada” no marco legal da comunicação e reverter o mais rápido possível uma decisão que poderia ser uma pedra no seu sapato.
Para o jornalista Laurindo Lalo Leal Filho, do Conselho Deliberativo da ABI, o que já era ruim, porque alugavam alguns espaços, vai ficar ainda pior: “Agora, vão poder alugar todos os espaços. Ocupam uma propriedade pública e alugam para terceiros”.