12/05/2023
Por Álvaro Caldas, em Jornal do Brasil
Ilustração: Luis Trimano
Representação simbólica do poderio dos jornalistas dentro da empresa, centro nervoso de suas atividades, palco de uma agitação permanente, com pessoas entrando e saindo, escrevendo e falando ao telefone, fumando e blasfemando contra o horário de fechamento, a velha redação de jornal deu os últimos suspiros. Sua morte, já conhecida por muitos, acaba de ser oficialmente declarada por um de seus mais qualificados representantes: o prestigioso New York Times fez o seu obituário.
Parte significativa da saga dos jornalistas, justamente a que lhe conferia distinção, poder e certa magia, exibida em tantos filmes que a celebrizaram, a redação não existe mais. Depois de obrigados a passar mais de dois anos dentro de casa devido à pandemia de Covid 19, alguns profissionais acreditavam que na volta tornariam a encontrar o mesmo palco iluminado. Mas os salões estavam vazios, sem alma, e sem a fauna agitada dos repórteres voltando das ruas com suas histórias para contar.
Repórteres, editores e demais profissionais envolvidos na operação de fazer jornal trabalham agora em casa. Não há mais aquele bom dia matinal, a paquera, a discussão da pauta por pessoas barulhentas e ansiosas. A grande redação veio aos poucos sendo reduzida, cortada, desmembrada, fatiada, até ter sua morte anunciada em grande estilo na prestigiosa seção de Obituário do jornal americano. Com ela, morre um espaço livre e verdadeiro do fazer jornalístico.
Perguntará o crédulo leitor: mas como se faz um jornal de verdade sem uma redação no meio do caminho desta complicada operação? Faz-se, mas é enorme a perda de qualidade em termos de veracidade, apuração, emoção, confronto de idéias. Sai de cena o palco democrático onde se expressavam vozes diversas, num cenário tomado por máquinas de escrever, cinzeiros entupidos de guimbas de cigarro, uma grande mesa central com telefones e laudas do jornal, mesas menores espalhadas pelos cantos. As redações pareciam um espaçoso e desorganizado ateliê. Picasso poderia aparecer ali para trabalhar.
Um desses ambientes típicos de trabalho onde homens e mulheres desenvolvem seus processos de criação. No final da tarde, quando os repórteres estavam voltando da rua para escrever, a excitação aumentava e com ela a nuvem de fumaça que os fumantes despejavam no salão enquanto batiam apressadamente nas pretinhas (o teclado da máquina de escrever) na obsessiva procura do lead.
Valério Meinel, gabaritado repórter de Polícia, era um deles. Na sucursal Rio da Folha de São Paulo, ele chegava da rua vestido com sua capa de detetive de filme noir. Anunciava alto para todos o furo que ia dar. Sentava diante da Olivetti, puxava uma lauda, enfiava na máquina e começava a escrever. Batia, batia no teclado e nada de sair o texto. Tirava e rasgava a folha com um gesto teatral, atraindo a atenção de toda redação. Até que acertava a frase e proclamava que encontrara a lauda do lead, diante do alívio e palmas dos demais.
Trabalhei como repórter numa redação de jornal durante quase 30 anos, a partir do final da década de 1960. Na primeira e maior delas, a do Jornal do Brasil, na avenida Rio Branco, trabalhavam mais de 70 pessoas, juntando todas as editorias, Esporte, Geral, Economia, Política, Educação, Fotografia, Cidade, mais os contínuos, que iam e vinham. Uma infernal babel criativa onde tudo funcionava. Cada um em sua mesa folheando anotações e escrevendo sua matéria.
Redação sempre foi predominantemente lugar de repórter, o principal personagem desta engrenagem. Bastava pegar um jornal para ver que o repórter estava na base de quase tudo que era publicado. É ele que está na rua, no local do crime, no tiroteio na favela, na sala do ministro, no pregão da bolsa, no enterro da Rita Lee, observando, anotando, apurando.
Onde anda o repórter hoje, perguntará o desconfiado leitor. Desapareceu, talvez em casa, cuidando das plantas e dos bichos, e o jornal é feito por outros profissionais, colunistas, cronistas, fotógrafos, editores. São os colunistas que dão noticias e chamadas, não se veem mais grandes reportagens que celebrizaram tantos repórteres.
Quem quisesse saber o que estava acontecendo tinha que passar pela redação. Pólo de aglutinação do jornal, com a estratégica mesa do Chefe de Reportagem dominando o cenário, ponto de partida e de finalização das tarefas diárias, para lá convergiam repórteres e fotógrafos. Ali as matérias eram lidas, avaliadas e discutidas entre eles e com as chefias, dando ao trabalho uma característica solidária e coletiva.
No processo de fechamento, primeiro a redação tornou-se limpa, asséptica, assumiu ares de um moderno escritório onde se fala baixo, cada repórter em sua mesa com seu computador. Móveis discretos, de preferência de aço, iluminação fluorescente, ar refrigerado. A grande redação foi dividida e as editorias instaladas em salas próprias separadas por divisórias e geralmente incomunicáveis, tornando difícil o contato entre pessoas de áreas diferentes.
Neste figurino moderno, o repórter tornou-se um provedor de conteúdo, a redação tornou-se mais elitista e foi se distanciando da rua e dos leitores, com os quais sempre procurou manter uma saudável proximidade, com suas portas democraticamente abertas para os leitores, que se sentiam atraídos pelo fascínio que irradiava. Segundo a colunista Maureen Dowd, encarregada de escrever o obituário do New York Times, passam pela redação hoje poucas pessoas, e as fileiras de mesas e computadores estão sempre vazias.