12/08/2024
Foto: REUTERS – Nacho Doce
Na segunda-feira, 26 de abril [de 1976], [o presidente Ernesto] Geisel desembarcou no Aeroporto de Orly, nos arredores de Paris, para a realizar a primeira visita oficial de um presidente brasileiro à França. Após ser recebido pelo presidente francês Valéry Giscard d’Estaing, seguiu de helicóptero para o Grand Trianon, um palácio construído por ordens do Rei Luís XIV, reservado para recepcionar grandes personalidades mundiais, localizado nas proximidades do famoso Palácio de Versalhes. Esse gesto sinalizou que o governo francês estava decidido a receber o presidente brasileiro com todas as honras e pompas. Sob fortíssimo esquema de segurança, Geisel utilizou helicóptero como principal meio de transporte na França, a fim de evitar possíveis atentados e driblar os protestos. Policiais e unidades especiais ficaram de prontidão durante toda a movimentação do presidente. Certamente, ele não viu os cartazes colados nos muros da capital francesa com a frase “Hoje Geisel, amanhã Pinochet”. (…)
Apesar dos protestos, a visita seguiu seu curso, sem grandes expectativas de resultados econômicos. Na segunda-feira, 26 de abril, Geisel reuniu-se com Giscard d’Estaing no Palácio do Eliseu, sede do governo francês, foi homenageado com um banquete no Grand Trianon, assistiu a um espetáculo de balé no Teatro Luís XV e participou de uma recepção no Palácio de Versalhes. Na terça-feira, depositou flores no Túmulo do Soldado Desconhecido no Arco do Triunfo, assinou o Livro de Ouro dos visitantes e cumprimentou a delegação de ex-combatentes. Em seguida, encontrou-se novamente com o presidente francês e foi recebido pelo Conselho Municipal de Paris no Hôtel de Ville, sede da prefeitura de Paris. Do lado de fora do prédio, cerca de quarenta socialistas, liderados pelo político Georges Sarre, um dos secretários nacionais do Partido Socialista e conselheiro municipal, fizeram uma manifestação com uma faixa contra o governo brasileiro e gritaram palavras de ordem: “Geisel, fascista e assassino!”. A polícia dispersou os manifestantes, rasgou a faixa e colocou Sarre numa viatura policial. Da sede da prefeitura, Geisel seguiu para o Hôtel de Lauzun, uma mansão do século XVII, onde foi homenageado com um almoço pelo Conselho Municipal.
À tarde, participou de uma recepção à comunidade brasileira na Embaixada do Brasil, recebeu homenagem do embaixador Delfim Netto e concedeu sua primeira entrevista coletiva à imprensa desde que assumiu o governo dois anos antes. De volta ao Palácio de Trianon, cumprimentou os chefes de missões diplomáticas acreditadas ao governo da França. No Quai d’Orsay, sede do Ministério das Relações Exteriores francês, ofereceu um banquete ao presidente Giscard d’Estaing. Na quarta-feira, 28 de abril, retornou ao Brasil. “A despeito da pompa e dos elogios, a colheita francesa foi magra. Deixou-se para depois a assinatura de um pacote de 2,5 bilhões de dólares destinados à construção de usinas hidrelétricas, um dos principais itens da agenda presidencial”, resumiu o jornalista Elio Gaspari.
Durante a visita, o coronel Raimundo Saraiva Martins, adido militar do Brasil na França, comentou com integrantes da comitiva presidencial práticas de corrupção ocorridas na Embaixada brasileira em Paris. Após a visita, o coronel elaborou um documento secreto de quatro páginas que foi enviado ao chefe do Estado-Maior do Exército, general Fritz Azevedo Manso, e posteriormente encaminhado a três destinatários: o ministro do Exército, Sylvio Frota, o chefe do Gabinete Militar, general Hugo Abreu, e o chefe do SNI, João Figueiredo. O informe secreto ganhou repercussão e passou a ser conhecido como Relatório Saraiva. O documento acusava o embaixador Antônio Delfim Netto e outros diplomatas de receber comissões por grandes negócios entre o governo brasileiro e banqueiros internacionais, o que contrariava os interesses nacionais e configurava crime de responsabilidade. A Embaixada do Brasil em Paris chegou a ser chamada de “Ambassade Dix pour Cent” (Embaixada 10%) e o embaixador Delfim Netto de “Monsieur Dix pour Cent” (Senhor 10%).
Uma das denúncias alegava que Delfim Netto e outras duas pessoas teriam recebido uma comissão ilegal de 6 milhões de dólares por intermediarem um financiamento concedido ao Brasil para a construção da Usina Hidrelétrica de Água Vermelha, nos municípios de Ouroeste (SP) e Iturama (MG). A propina teria sido confirmada pelo banqueiro francês Jacques de Broissia, diretor do BCCF (Banque de Crédit Commercial de France) e cunhado do presidente Giscard d’Estaing. De acordo com a acusação, Broissia teria depositado a quantia para o grupo do embaixador em uma conta numerada de um banco suíço. Posteriormente, o grupo associado a Delfim Netto teria tentado uma comissão de 6%, equivalente a 60 milhões de dólares, durante uma transação com quatro bancos franceses para o financiamento da construção da Usina Hidrelétrica de Tucuruí, no Pará, um investimento de 1 bilhão de dólares. Entretanto, dessa vez, o BCCF não concordou, alegando que o valor da comissão era excessivamente alto.
Essas acusações fizeram parte do depoimento do coronel Saraiva na CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) da Dívida Externa e Fundo Monetário Internacional e foram transcritas para os Anais da Câmara dos Deputados em 31 de outubro de 1984. Os indícios de corrupção apresentados no Relatório Saraiva também foram reproduzidos no livro Aventura, corrupção e terrorismo à sombra da impunidade, escrito pelo coronel Dickson Melges Grael e publicado em 1985. O coronel Grael, pai dos medalhistas olímpicos Torben e Lars Grael, bem como do político Axel Grael, eleito prefeito de Niterói (RJ) em 2020, serviu junto ao coronel Saraiva no Departamento de Engenharia e Comunicações do Exército, em Brasília. Grael, que também prestou depoimento à CPI da Dívida Externa, registrou no livro o relato que recebeu na época do próprio coronel Saraiva.
Apesar de suas graves denúncias, o Relatório Saraiva foi arquivado e não deu em nada. Na CPI da Dívida Externa, o “Caso Saraiva” permaneceu sem conclusão. O inquérito não foi adiante em razão da recusa do Ministério do Exército em permitir acesso aos documentos enviados pelo ex-adido militar e à ausência de depoimentos relevantes, entre eles, o de Delfim Netto, que alegava que as denúncias contra ele e seus assessores não passavam de calúnias. Ignorado pelos seus superiores, preterido nas listas de promoções do Exército e sentindo-se penalizado, o coronel Saraiva foi transferido para a reserva, sem ter chegado ao posto de general. Por outro lado, Delfim Netto, após deixar o cargo de embaixador em Paris, foi nomeado ministro da Agricultura e, pouco depois, ministro do Planejamento pelo general João Figueiredo, que sucedeu a Geisel na Presidência.
As denúncias envolvendo Delfim Netto também vieram à tona na bombástica entrevista publicada pelo semanário Pasquim em fevereiro de 1983, em duas edições consecutivas, com a pianista e ex-funcionária da Embaixada do Brasil em Paris, Marisa Tupinambá, que alegava ter sido companheira do embaixador Roberto Campos por 12 anos. Segundo ela, além de Paris, atividades irregulares, como intermediação de empréstimos e tráfico de influência, também ocorriam na Embaixada do Brasil em Londres.
De acordo com o coronel Grael, apesar de todas as suspeitas contra o todo-poderoso ministro Delfim Netto, o governo brasileiro, até onde se sabia, não tinha dado um passo sequer para esclarecer as denúncias. “Será que prefere deixar impune um possível crime de corrupção a talvez expor à execração pública um poderoso ministro de Estado? Ou será que teme abrir o que poderia se constituir num perigoso precedente para outras pessoas, também poderosas?”, indagou o oficial. Em seu livro, o coronel Grael deixou clara a sua desilusão com o regime que se seguiu ao chamado movimento de 1964, gerando grande frustração aos civis e militares que contribuíram para o seu êxito. “O regime criado pela situação que deflagraram acabou se transformando em uma oligarquia arbitrária e prepotente que, hipocritamente, vem acobertando violências, enquanto uma malta de ladrões comete toda sorte de falcatruas, enriquecendo seus patrimônios e suas contas bancárias no exterior, insensíveis à miséria do povo por eles saqueado e espoliado”, afirmou o coronel do Exército Dickson Melges Grael.
Repressão
Além de ter assinado o AI-5, Delfim Netto era amigo do empresário Henning Albert Boilesen, empresário que financiou a Operação Bandeirantes (OBAN), o principal órgão de repressão e tortura da ditadura militar, com recursos reunidos por Delfim, o empresário Luiz Macedo Quental e o banqueiro Gastão Vidigal, dono do Banco Mercantil de São Paulo.
Delfim também era conhecido por perseguir jornalistas que lhe eram críticos e pedir suas cabeças aos patrões. Um dos seus principais alvos foi o jornalista Aloysio Biondi.