28/07/2022
Por Pierpaolo Cruz Bottini, advogado e professor de direito penal da USP, e Ilana Martins Luz, advogada e doutora em direito penal pela USP, em Tendências/Debates/Folha de São Paulo
O presidente Jair Bolsonaro participa de manifestação de raiz golpista na avenida Paulista no 7 de Setembro de 2021 – Danilo Verpa/Folhapress
Na edição da última terça (26/7), a Folha publicou entrevista com a professora Clarissa Piterman Gross, da FGV Direito SP, que afirma que uma manifestação na qual Jair Bolsonaro defendeu “fuzilar a petralhada” estaria abrigada pela liberdade de expressão.
Com todo o respeito, tal opinião parece equivocada e perigosa.
Equivocada porque o direito à livre manifestação não é absoluto. Há leis que o limitam, em regra quando colide com outros direitos fundamentais. Não há liberdade para difamar, caluniar ou injuriar, incitar crimes, instigar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia ou procedência nacional, ou propalar inverdades com o fim de manipular mercados, obter vantagens indevidas ou turbar o processo eleitoral.
A fala de Bolsonaro esbarra nesse rol de exceções, escapa à proteção constitucional e mergulha no campo criminal. Se ajusta ao delito previsto no artigo 286 do Código Penal: “incitar, publicamente, a prática de crime”. Não é preciso que a incitação seja profícua, que algum crime concreto possa ser registrado em sua conta. Basta que as palavras excitem os ânimos de seus destinatários.
No caso em questão, na campanha eleitoral de 2018, Bolsonaro gritou a um público inflamado que todos deveriam “fuzilar a petralhada” e recebeu aplausos de júbilo de eleitores fanáticos. Poderia ser um ato isolado, um arroubo emocional, mas não.
Trata-se de uma estratégia estruturada, voltada ao ataque sistemático do partido adversário, à incitação da violência contra opositores, à agressão ao Tribunal Superior Eleitoral, às urnas eletrônicas e qualquer mínima pedra que encontre pelo caminho.
A liberdade de expressão admite a exposição de todo pensamento político, até o mais absurdo, desde que pela via pacífica. Pode-se odiar o presidente, defender o fim do Congresso Nacional, do STF, o retorno da monarquia, ou até a abolição do Estado.
No entanto, incentivar a agressão contra os integrantes dos Poderes, ameaçar sua integridade, é alargar demais as fronteiras do direito, tornando-o um instrumento para sua própria supressão.
Karl Popper dizia que, para preservar a tolerância, é preciso ser intolerante com aqueles que propalam o fim das liberdades públicas pela violência. O Estado de Direito não pode admitir a manifestação agressiva pelo fim do próprio Estado de Direito, sob pena de sucumbir pela distorção de seus próprios postulados.
Mais que equivocada, a posição exposta na entrevista é perigosa. Admitir como liberdade de expressão a recomendação do extermínio do outro é deixar de demarcar as fronteiras do admissível. Adjetivar tais palavras apenas de toscas ou grosseiras é não perceber sua gravidade.
Nos anos 1990, uma rádio em Ruanda incitava os membros da etnia hutu a caçar aqueles da etnia tutsis como baratas. Tal grosseria resultou na morte de 800 mil pessoas, a golpes de facões. O quanto é preciso esperar para perceber o risco do ódio disseminado?
É importante cuidar para que atos absurdos não sejam praticados em nome de direitos consagrados. Liberdade econômica não justifica a exploração desumana de trabalhadores. Liberdade de cátedra não protege o ensino do negacionismo científico. Liberdade de expressão não abriga a defesa do extermínio de opositores políticos.
Que os conceitos voltem para suas caixas. Que a livre manifestação seja protegida, e qualquer ideia possa ser debatida, criticada ou defendida em sua plenitude, mas despida de violência. Do contrário, não prevalecerá o argumento mais sólido, mas aquele defendido pelo mais forte, ou pelo mais armado.