10/11/2021
Por Rogério Marques, conselheiro da ABI
“Perdi muitos amigos para a Covid, mas perdi muito mais amigos ainda para o negacionismo e para a ignorância.”
Ique Woitschach, 59 anos, um dos grandes chargistas da imprensa brasileira, costuma lembrar que desde criança não pensava em outra coisa a não ser em desenhar, em ser chargista. “Eu não dizia se um dia eu for chargista, eu dizia quando eu for chargista”. O sonho de infância se realizou e foi muito maior do que aquele imaginado pelo menino.
Além de chargista – somente no Jornal do Brasil foram 25 anos de trabalho – Ique Woitschach tornou-se ilustrador, caricaturista, roteirista de TV, pintor, escultor. Tem esculturas em bronze famosas, em tamanho natural, em algumas cidades brasileiras. O apresentador Chacrinha, o cantor Michael Jackson, o jornalista João Saldanha, os compositores Pixinguinha e Renato Russo, no Rio. O compositor Martinho da Vila no município fluminense de Duas Barras, onde nasceu o artista. E Manoel de Barros, em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, terra natal do poeta e também de Ique.
Mas no final do mês de outubro parte da carreira desse artista múltiplo se fragmentou. Ele anunciou em uma rede social que estava deixando de fazer charges políticas. Publicou, então, o que garante ser a sua última charge, retratando o ministro da Economia Paulo Guedes, junto com um texto-desabafo, em que explica os motivos da decisão:
“O fato é que as charges, ferramentas imprescindíveis no jornalismo na década de 80, que me deram dois Prêmios Esso de Jornalismo, não têm mais o mesmo impacto, nem mais espaço profissional nos meios de comunicação. Nas redes sociais, manipuladas pelo algoritmo que as restringem a uma bolha, amordaçando sua função jornalística primordial, as charges acabam validando um embate insólito, onde, inacreditavelmente, a vida deixou de ser prioridade, o humanismo desapareceu, o bom senso passou longe, e o negacionismo, que, alimentado por fake news, virou verdade absoluta e ideologia política.” (O texto completo de Ique está no final desta matéria).
Em entrevista por telefone ao site da ABI, Ique Woitschach disse que foi a decisão mais dolorosa que poderia tomar. Sua voz passava desânimo em alguns momentos e uma sensação de alívio, em outros. Contou que depois de anunciar sua decisão dormiu tranquilamente a primeira noite, sem pesadelos, depois de muito tempo. “O texto estava pronto”, disse ele, “eu vinha pensando em fazer isso e adiando o momento. Foi muito difícil teclar no ‘enter’, mas não me arrependo.”
Leia a entrevista na íntegra abaixo.
“NÃO EXISTE MAIS RESPEITO”
— Ique, por que essa decisão justamente agora, no momento em que a crítica política, no seu caso através das charges, é tão importante?
— Eu não sei se eu amadureci, se a palavra é amadurecer, mas há anos eu venho pensando nisso por uma série de razões. E agora, pra cuidar da minha saúde mental, emocional, eu resolvi realmente interromper porque a charge política como ferramenta jornalística ela perdeu completamente a função, a pegada, até porque o jornalismo ele vem se esfacelando no meio dessa loucura que a gente está vivendo, permitindo ser desmoralizado por um bando de imbecis, semianalfabetos, que com meia dúzia de fake news faz isso com uma instituição forte como a imprensa. É triste ver isso.
— Esse processo vem de longe?
O chargista foi sendo largado pelo caminho ao longo dos anos, e no momento não existe mais respeito por nada, não existe a notícia, existe sempre uma loucura em que você não sabe onde está mais a verdade, uma loucura provocada não só pela política mas por esse momento que a gente vive de internet, que simplesmente implodiu algumas coisas. A charge política na década de 80 tinha importância porque era dada importância a ela como mais uma ferramenta do jornalismo. Por mais que o editorial do jornal [do Brasil] desse uma amaciada no assunto, a minha charge estava lá, ao lado do editorial, enfiando a porrada no assunto, mas ela estava lá, entendeu? O respeito pelo profissional, o respeito por aquela ferramenta existia. Quando um político estava na charge ele ficava envergonhado. Hoje em dia acabou. Uma das coisas da internet é que a minha charge, o efeito que ela tem como jornalismo se perdeu, ela inclusive avaliza essa porcariada toda que está aí. Quando você coloca a imagem desses vagabundos no poder você está divulgando eles. Eu não vou avalizar vagabundagem, em prefiro ficar no meu canto.
— Você falou na questão do algoritmo, que reduz o trabalho profissional a uma bolha. Ao mesmo tempo existem pessoas na internet com blogs com milhares de seguidores. Você não pensou em algum espaço desse tipo, em que você possa divulgar o seu trabalho?
— Eu tenho uma percepção de que não existe rede social, existe rede comercial. Não que eu seja contra a tecnologia, contra a modernidade. Por um lado, a rede proporcionou [a oportunidade de] muitos talentos se mostrarem. Você tem aí muitos cartunistas que nunca publicaram em jornais, publicam na rede e são muito bons. Mas eu acho que muitos valores humanos foram sendo largados pelo caminho na medida que o importante passou a ser o clique, passou a ser o número de seguidores.
As redes sociais são na verdade redes comerciais onde algumas pessoas ficam biliardárias. Quando você baixa um conteúdo, um conteúdo de qualidade, se você não tiver a “dancinha”, aquilo que o algoritmo entende que todo mundo vê e todo mundo clica, você não é incluído pelo algoritmo. A não ser que você pague caro por isso, e é uma loucura, porque você entrega o seu conteúdo gratuito para uma empresa que ganha dinheiro utilizando uma estrutura que foi criada justamente com esses conteúdos gratuitos.
O CHARGISTA TEM QUE SE INDIGNAR
A palavra sucesso agora se resume aos cliques e aos milhares de seguidores. Você olha aí grandes nomes, vê se eles têm milhares de seguidores, como o Carlos Eduardo Novaes, que é um puta jornalista, escritor, não têm. A sociedade foi se desumanizando para ficar cibernética, a ponto de a gente ver um presidente como o Bolsonaro ser eleito aqui, porque a ignorância é o carro chefe dos seguidores dele.
Eu tenho um trabalho muito emocional, o chargista tem que se indignar, ele tem que se entregar para essa charge, a minha vida inteira foi assim. Para fazer uma boa charge eu tenho que me indignar com aquilo, e eu sempre fui um chargista, eu trabalhei no Jornal do Brasil por 25 anos, lá eu tinha liberdade total de fazer o que eu quisesse, como quisesse. Eu conseguia dar o meu máximo e isso te envolve emocionalmente. Quando você vê que profissionalmente já não tem espaço no mercado, o mercado de jornalismo já aboliu o chargista porque ele incomoda, então a gente não tem mais espaço. A gente se expõe, expõe a família, toma porrada a torto e a direito, ameaças, enfim, tudo que você pode imaginar.
— Você chegou a sofrer ameaças por causa de suas charges?
— Sim, sim, várias, várias. Mas isso não foi a gota d’água de nada, não, porque o chargista, o jornalista investigativo, o cara que está ali fazendo um trabalho sério sempre foi ameaçado a vida inteira, né. Desde a época da primeira ditadura sempre foi ameaçado, então a gente não tem medo disso não. Mas eu vou fazer 60 anos, estou com dois netinhos nascidos durante a pandemia da Covid, um deles eu nem conheço ainda, estou exausto mentalmente, emocionalmente, porque é muito triste ver um país ser destruído dessa forma. Eu como jornalista, como cidadão, a gente espera que as instituições se manifestem, façam alguma coisa, que não permitam que esses absurdos continuem acontecendo sem fazer absolutamente nada. É muita omissão e eu não vou me desgastar. Eu quero ser artista plástico em tempo integral, fazer meus projetos de escultura, tenho um projeto de exposições. São 44 anos [de profissão], e esse melhor que eu dei me faz sentir com a minha missão de artista cumprida, eu cumpri a minha parte, fiz o que tinha que fazer.
— Deve ter sido difícil tomar essa decisão…
Foi uma decisão muito difícil, que me atormentou durante um bom tempo, mas no dia que eu publiquei a minha decisão foi a primeira noite que eu dormi inteira durante muitos anos. Consegui dormir uma noite inteira sem acordar nenhuma vez, sem ter pesadelos. A única coisa que me motivava é o fato de achar que a gente iria recuperar um caminho humano, um caminho de ética, de respeito, mas voltou tudo, preconceitos, ataques, violência, enfim, estamos vivendo em plena ditadura e estamos fingindo que não estamos vivendo. Então eu prefiro ficar quieto, trabalhar e sobreviver, porque eu quero viver muito ainda para conviver e ajudar meus netinhos, meus filhos, eu tenho uma filha ainda pequena. Então é um momento de muita paz que eu estou conseguindo depois da minha decisão, graças a Deus.
A seguir, o texto publicado por Ique Woitschach no dia 25 de agosto, no Facebook, anunciando o fim do seu trabalho como chargista político:
“Esta charge marca hoje minha despedida como chargista político. Mesmo não sendo uma atividade profissional regular, permaneci produzindo meu conteúdo. É que o vício de transformar minha indignação em charge sempre foi mais forte.
O fato é que as charges, ferramentas imprescindíveis no jornalismo na década de 80, que me deram dois Prêmios Esso de Jornalismo, não têm mais o mesmo impacto, nem mais espaço profissional nos meios de comunicação. Nas redes sociais, manipuladas pelo algoritmo que as restringem a uma bolha, amordaçando sua função jornalística primordial, as charges acabam validando um embate insólito, onde, inacreditavelmente, a vida deixou de ser prioridade, o humanismo desapareceu, o bom senso passou longe, e o negacionismo, que, alimentado por fake news, virou verdade absoluta e ideologia política.
Tal e qual na Alemanha nazista, muita gente supostamente esclarecida, culta e inteligente embarcou numa realidade paralela de uma Terra plana, infestada de comunistas maconheiros que comem criancinhas, e que tem que ser exterminados em nome de Deus acima de tudo. É muito absurdo junto, parece filme de ficção. E nessa insanidade, mais de 600 mil vidas foram ceifadas. Perdi muitos amigos para a Covid, mas perdi muito mais amigos ainda para o negacionismo e para a ignorância.
A julgar pela inércia e omissão das instituições democráticas, o mais provável é que tudo acabe em pizza, como sempre, e que os lados polarizados componham politicamente entre si para que ambos ganhem, a impunidade prevaleça e o povo faminto e sem oportunidades, continue perdendo.
Então, exausto, decidi focar na minha sobrevivência mental e emocional priorizando a qualidade de vida, me dedicando integralmente à minha arte na pintura, no desenho, na escultura, nos roteiros, onde tenho ainda muito a realizar. Com amor acima de tudo, quero curtir meus netos, que vieram pra dar novo sentido à vida, junto com a família que me fortalece, e com os verdadeiros amigos.
Gratidão aos que me acompanharam nos 44 anos de minha carreira como chargista político, da qual tanto me orgulho, e cujo ciclo encerro aqui.
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