02/08/2013
Em textos publicados em “O Globo” e na “Folha de S. Paulo”, os críticos Aloísio G. Branco e Gilberto Vasconcellos aplaudiram a reedição de “Guerra no Contestado”, de Paulo Ramos Derengoski.
Em sua crítica, diz Aloísio G. Branco:
“Eis um livro entre documental e evocativo, escrito empaticamente, com vivacidade jornalística e que se lê quase como um romance, a servir de substancial introdução à Guerra do Contestado, de cujo final, em 1916, agora se assinalam 70 anos redondos. A propósito. Seminário realizado semana passada na cidade de Caçador, Santa Catarina, abordou as implicações jurídicas, sociais e religiosas desse conflito, que no Brasil só encontra paralelo na Guerra de Canudos.
Paulo Ramos Derengoski, o autor, lamenta não tenha surgido um Euclides da Cunha para dar projeção épica a esse movimento – fenômeno no qual o fanatismo religioso constituiu-se num dos componentes – surgido no início do século na região contestada entre Paraná e Santa Catarina. Fenômeno aliás de maior extensão no tempo e no espaço do que o verificado alguns anos antes do sertão da Bahia e a envolver maior número de pessoas.
Talvez pudesse Derengoski enfatizar um pouco mais as origens sócio-econômicas dessa saga protagonizada pelos chamados jagunços, muitos dele adventícios, desempregados após a conclusão das obras da Brasil Railway no planalto sulino. Levas consideráveis de trabalhadores ali ficaram, desocupados, apesar da promessa de serem recambiados aos seus Estados de origem. Coincidentemente, ocorreu forte especulação imobiliária e posseiros foram desalojados de terras devolutas, irrompendo insegurança e descontentamento na região. Essas circunstâncias foram expressadas pelo próprio General Setembrino, principal encarregado de reprimir os rebeldes. Que pretendiam eles? Desesperados, marginalizados, sonhavam, como lembra o autor, com uma nova era, um novo milênio, na terra ou fora dela, procurando para isso fundar sociedade à parte, com leis próprias, não escritas.
Derengoski se reporta às inúmeras batalhas e escaramuças desenvolvidas em Irani, Caragoatá, Taquaraçu, Timbó, no Vale do Santa Maria, em conseqüência das quais houve “mais de dez mil mortos, feridos ou estropiados”, de 1911 a 1916. Considerável era a capacidade de deslocamento desses guerreiros primitivos, precariamente armados, que estabeleceram focos, com suas “quadras de reza”. Em pelo menos 12 Municípios, a maioria em Santa Catarina.
Do messiânico guru João Maria até o feroz líder Adeodato, o movimento milenarista passou da intensa e desorientada impregnação religiosa ao puro banditismo, segundo o autor. Ele resume suas conclusões: “A saga do contestado não foi episódio apenas social, político ou religioso. Representou um forte surto messiânico, mas também envolveu questões limítrofes, fiscais, provincianas, reações monarquistas, ausência de tradição religiosa clássica na região, banditismo, grilagem de terras, desemprego nas construções de estradas, ignorância, milenarismo, miséria…”. Podem estar aí algumas causas de mistura a conseqüências, ou vice-versa.”
A crítica de Gilberto Vasconcellos está assim vazada:
“Jornalista de mão cheia, formado na escola de Cláudio Abramo, culto e viajado, sabedor das geografias, Ganges, Tibete, Palestina, Andes, Mongólia, Machu Picchu, Lajes, Paulo Ramos Derengoski se revela um estraordinário escritor ao tematizar a revolta do Contestado, ocorrida entre 1912 e 1916 em Santa Catarina. Um Canudo abaixo de zero.
É preciso engenho para manejar esses assuntos explosivos e esquecidos pela psique coletiva. À influência de Euclides da Cunha na linguagem acrescente-se a apurada cultura cinematográfica.
É o crítico de cinema que confere à narrativa o andamento de tempo presente, como se o “Exército Encantado” e molambento de ratos e homens estivesse se desenhando agora a nossos olhos e ouvidos. Um dia talvez nosso cinema colocará na tela a saga do Contestado “by” Derengoski. Sempre a luta pela terra. Sempre a apropriação semeeira colonial. O cartório. A papelada. A posse contra a propriedade, como queria o pirralho Oswald de Andrade. “O santo dos sertões do Sul – informa Paulo Ramos em seu ‘Deus e o Diabo’ – era um distribuidor de ervas”.
Outro traço do livro, positivo é que a sua abordagem emotiva foge do padrão universitário dos historiadores frígidos, sem estilo. Banindo qualquer emoção. Acadêmicos e chatos.
Ao traçar a genealogia dos benzedores e profetas apocalípticos dos sertões sulinos, Derengoski fornece um excelente retrato antropológico do Brasil Meridional, feito por quem conhece palmo a palmo a Lajes de Santa Catarina, onde nasceu e vive.
Graças à presença rarefeita da Igreja Católica, os líderes do Contestado, hasteando a bandeira do divino com pomba vermelha ao centro, não falaram a língua do “templum” vivar. O redor do “fanun”, ou seja, eram fanáticos pelo paraíso místico vingativo, pronunciando frases enigmáticas do tipo: “Um dia haverá muito rastro e pouco pasto”.
No imaginário popular do Contestado medra o sonho da farinha de beiju brotando nas montanhas e do leite escorrendo pelos rios.
Cuidado: não se brinca com o mundo rural. A revolta messiânica carrega a crença alienada do fim do mundo, porém é irrecusável a conotação antioligárquica e antiimperialista do Contestado, cujo estopim é a concessão que o Governo federal fez à Raiwail Company e, em seguida, a cablocada desempregada pela estrada de ferro multinacional.
A destruição de milhões de pés de araucária. Devastação semelhantes às que ocorrem na Indonésia e na Amazônia. “A causa principal da guerra do Contestado foi avanço selvagem de grupos econômicos estrangeiros.”
Resulta daí o caráter antiestrangeiro dessa luta trágica: Souther Brazil Lumber and Colonization Company em conexão com o universo arcaico e rústico da cablocada sulina.
Evidentemente esse mundo sebastianista morreu. “O neto, o bisneto do homem do Contestado é hoje motorista de um possante caminhão Volvo, ou mesmo operador de computador.” Mas é visível o atual sentimento fóbico das oligarquias em relação ao aparecimento de líderes messiânicos vinculados à terra, ao sol e à água. Na constituinte oral do Contestado, havia o tópico: “Todos devem beber a água limpa que ninguém pode sujar”.
Os elementos primordiais da natureza brasileira estavam presentes nessa rebelião primitiva do Sul, em que o panteísmo ecológico da semente se juntou aos imperativos do estomago: o campônio sulino ficou sem comer o seu pinhão com as araucárias mortas.”