09/06/2008
Colaboração de Altamir Tojal, jornalista e escritor
Partidarismo e sentimentalismo são, neste caso, virtudes e não defeitos. A obra
reforça, com alta dose de humanidade, seu conteúdo histórico e político.
O filme “Condor”, de Roberto Mader, é uma obra que toma partido: traz à luz (e esta exposição é por si só uma denúncia) um caso de terrorismo de estado ocorrido há pouco tempo, aqui mesmo no Brasil e nos países vizinhos do Cone Sul, materializado na aliança das ditaduras militares que dominaram a região entre os anos 60 e 80. Essa ação conjunta deixou um enorme saldo de assassinatos, prisão e tortura de adversários, além de “desaparecidos”, entre os quais muitas crianças roubadas de seus pais.
“Condor” é um documentário. E como tal tem sido aplaudido e premiado, seja pela escolha do tema, seja pela qualidade jornalística da investigação, da pesquisa e das entrevistas. Estas trazem revelações e sentimentos extraídos de protagonistas históricos dos dois lados — se assim podemos nos referir a uma luta tão assimétrica — e de personagens trágicos, alguns dos raros jovens-adultos que puderam ser identificados e confrontados com suas famílias naturais, entre aqueles inúmeros bebês criados em outros lares, com outra identidade.
Há uma virtual unanimidade quanto a estas virtudes do filme. Mas há restrições e condenações, que recaem sobre o seu partidarismo e, também, sobre a exploração sentimental do drama das crianças seqüestradas e de suas famílias, as que ficaram sem os seus e as que passaram a viver a ameaça de perdê-los e a realidade de ter de compartilhá-los com aqueles estranhos e sofridos pais, avós e irmãos de “desaparecidos” encontrados.
Entendo que partidarismo e sentimentalismo são, neste caso, virtudes e não defeitos. Qual é o jornalismo que não toma partido? Que jornalismo funciona sem emoção?
Comecemos pelo partidarismo. Quando saí do cinema depois de ver o filme e fui tomar um café, uma senhora me abordou no balcão do bar da Casa Laura Alvim e perguntou se eu gostara do filme. Foi como se ela me despertasse de supetão. Eu ainda estava emocionado, na atmosfera daqueles acontecimentos. Respondi que sim, que tinha gostado. Ela retrucou. Disse que o filme condenava as ditaduras militares, mas era indulgente com os movimentos e as pessoas que pretendiam impor ditaduras de esquerda como a de Fidel.
Respondi que, a meu ver, um mal não deve justificar outro mal, que a existência ou a ameaça de ditaduras comunistas não são razões suficientes para a instauração de ditaduras de direita ou quaisquer que sejam. Bem, não conseguimos concordar.
Acrescento agora: quem acreditar que não tem escolha entre o mal e o mal que assuma as conseqüências. Quem jamais esteve nessa encruzilhada?
O filme de Mader trata de uma história obscura e esquecida. É possível que a grande maioria dos jovens e mesmo dos não tão jovens não saiba ou não lembre o que foi a Operação Condor. Temos aqui um dos bons serviços prestados pelo filme: ele lembra e ensina que este foi o nome dado à cooperação entre as ditaduras militares sul-americanas para seqüestro, prisão e assassinato de seus oponentes. Também lembra a uns e ensina a outros que havia na época um conflito globalizado opondo as potências ocidentais e o comunismo soviético, e que este conflito influenciava e atuava sobre as disputas políticas regionais e locais, como as que ocorriam em nosso continente.
Estamos falando de um filme, de um documentário, não de uma aula de sociologia, mas vale registrar que ele ainda ensina e lembra que havia movimentos revolucionários comunistas, alguns propondo o uso da força, e havia governos democráticos eleitos e com forte apoio popular a seus projetos de mudanças sociais. Em nome de combater aqueles movimentos, os militares e seus aliados derrubaram esses governos pela força e impuseram a repressão e o terror político não só aos comunistas e àqueles que ousavam enfrentá-los, mas a toda a sociedade.
Vivi intensamente aquela era e não poderia deixar de ser tocado e levado a lembranças e reflexões. Eu era um garoto politizado em 1964, como outros poucos. Militava no movimento estudantil. Naquele final de março e início de abril me entreguei febrilmente a comícios e frágeis barricadas para resistir ao golpe. Sofri, então, a minha primeira e maior derrota política. Depois dos primeiros momentos de choro, raiva e de medo, voltei a me reunir com um punhado de colegas da minha e de outras escolas, todos meninos de 16 e 17 anos. Lembro que nos encontramos num fim de tarde na escadaria da Biblioteca Nacional. Havia, na Cinelândia, uma mobilização de gente a favor do governo militar, com faixas e alto-falantes. Ficamos ali refletindo sobre aquilo, sobre o que iríamos fazer, e não saía do meu coração o pavor de passar o resto da vida sob uma ditadura.
Este sentimento talvez seja uma chave para a compreensão dos movimentos de resistência às ditaduras daquela época. Alguns de nós (ou todos) talvez quiséssemos mesmo uma revolução — comunista ou lá o que fosse —, mas também não suportaríamos a condição de viver sem liberdade. Muitos de nós, não tenho dúvida, seríamos os primeiros a insurgir se a tal ditadura comunista acontecesse.
Enfim, “Condor” é mesmo um filme partidário, que lembra, ensina e provoca reflexões que podem nos ajudar a compreender o passado e, talvez, o presente. É também um alerta contra tentações políticas, aventuras e supostas soluções que ameaçam e sacrificam a liberdade e a democracia. O que significam hoje a guerra do Iraque, Guantânamo e a exacerbação do controle em escala global (sobre indivíduos e sociedades) em nome do combate ao terrorismo fundamentalista árabe?
“Condor” também nos emociona com sofridas histórias de vida, histórias de superação, esperança e, ainda, de perplexidade, que reforçam o conteúdo histórico e político do filme com alta dose de humanidade.